Chico, o amor e a igualdade

Notícias Magazine

Se calhar já venho tarde, mas não posso deixar que Chico Buarque seja acusado do que quer que seja sem defende‑lo. Além dos olhos, do tom de voz, da ginga e da música, o Chico – quem fez das suas canções banda sonora de uma vida tem direito a chamar‑lhe assim – é só o maior amante das mulheres em rima e em português.

Chico acusado de machismo é como se Camões fosse acusado de ser xenófobo e supremacista. A questão não se coloca, percebem? Há que contextualizar – nem Camões é xenófobo por ter feito uma ode nacionalista nem Chico é machista por ter feito uma letra em que um homem larga mulher e filhos por outra mulher.

Já nem falo do ridículo que é tentar pôr a arte – qualquer arte, e a poesia de Chico e‑o – num redil ideológico. Quero é referir com mais demora a tonteria que é tentar pôr regras no amor. Caramba, se há algo sem regras é o amor – tudo o resto, casamento, família, relações como instituição social, tudo isso tem regras que foram feitas, como todas, para permitir melhor convivência entre seres. Mas só quem nunca amou pode achar que o amor as tem. Que no amor puro e simples se colocam outras questões que não o próprio. Política ou ideologia? A sério? Como dizem os que melhor amam, os adolescentes.

O amor que bole por dentro, brota à flor da pele, sobe às faces e faz corar, aperta o peito, faz confessar, suplicar, não tem medida, nem nunca terá, não tem remédio, nem nunca terá, e, sobretudo, não tem receita. Quando o amor nos agarra damos para sonhar, fazemos desvarios, rompemos com o mundo, queimamos navios. Nas travessuras das noites eternas confundimos pernas, e, no armário, embutido, os paletós deles enlaçam os vestidos delas. Quando um sente que o outro é pedaço de si, a saudade é o pior tormento, é pior do que o esquecimento, é pior do que se entrevar.

O amor é de mulheres que têm homens com jeito manso, mulheres de homens que deixam mulheres loucas, que arrepiam a pele, beijam com calma e fundo até as almas delas se sentirem beijadas. De mulheres que ficam meninas ao pé desses homens, que são, assim, os rapazes delas, e os corpos delas são testemunhas do bem que eles lhes fazem.

O amor é urgente ou não tem pressa, pode esperar em silêncio, num fundo de armário, na posta‑restante, que não é para já. E também há, infelizmente, o amor que já não vai dar, cujo pranto não vai nada ajudar, porque é o amor que já não existe, aquele em que uma rosa morreu, uma festa acabou, o barco partiu.

E é este o amor que Chico canta: todo. De mulheres, mas também de homens, no sentido em que Chico canta… o amor. Haverá alguém mais subjugado do que um ser apaixonado, homem ou mulher? Haverá alguém mais dependente do que alguém que depende da atenção de outro, homem ou mulher?

Não há conversa sobre desigualdade que resista – a não ser, claro, a que colocar a desigualdade de dimensão do amor, mas quem conseguir comparar paixões que atire a primeira teoria. Nada disto é poesia, embora também possa ser. E é disso que Chico fala como ninguém em português – como se prova nesta crónica, feita em cima das suas letras.