César Mourão: “Normalmente sou muito antipático. Faço questão de ser”

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Entrevista Alexandra Tavares­‑Teles Fotografias Orlando Almeida/Global Imagens

Ator de improvisação, 39 anos, de onde (ou de quem) vem o fascínio pelo risco, pelo trabalho sem rede?
Vem um bocado por acaso. Quando há 17 anos fundámos – eu, o Ricardo (Peres) e o Carlos (M. Cunha) – o primeiro grupo de comédia improvisada em Portugal, a Commedia à la Carte, só queríamos fazer diferente. Não tivemos bem noção se era com ou sem rede. Provínhamos todos do Chapitô, uma escola que nos deu uma versatilidade incrível e esse «sem rede». Portanto, o fascínio por esse risco vinha já do tempo em que fazia trapézio. Para ter uma noção, o meu estágio foi de duplo de cinema.

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Está na sua natureza.
Estava. Deixou de estar a partir do momento em que nasceu a minha filha. Não direi que passei a ter medo, mas procuro evitar os perigos.

Por exemplo.
Na neve. Faço neve há anos e sempre procurei pistas perigosas. Nunca me passou pela cabeça que podia magoar-me até ser pai. Agora evito expor-me desnecessariamente a esses perigos.

E sem perigos a vida é mais aborrecida?
Vou buscar prazer a outros sítios. Na improvisação é o mesmo. No Chapitô havia a ausência do medo. Portanto estar em cima do palco com os dois pés no chão a inventar umas coisas – era assim que pensávamos na altura – era muito menos perigoso se comparado com o que fazíamos diariamente na escola.

Porém, o improviso pode correr muito mal, e não há corretor à mão. Que reações físicas provoca uma situação complicada em palco?
Transpira-se muito. A nossa cabeça anda a mil, numa velocidade muito superior à da improvisação. Uma vez dirigi-me a uma senhora que não tirava a cara do chão: «A senhora é a única que não se ri». E alguém disse «porque é surda». Foi uma brincadeira mas podia ter acontecido.

Qual é a grande diferença entre fazer um monólogo para sete mil pessoas (como que fez no Campo Pequeno) ou para sete?
Se em sete mil se rirem quatro mil, já há muito riso e o ator fica galvanizado. Se estiver a jantar com sete pessoas na minha sala e só se rirem duas é muito embaraçoso. Prefiro fazer para sete mil do que para sete.

Quais são as personagens mais pedidas?
Nós cometemos a estupidez de tentar fazer sempre diferente. Mas é evidente que em 17 anos já repetimos muitas personagens. O padre e o ginecologista são muito pedidos.

Porque será?
Porque será» Mas cabe-nos a nós tirar também o tapete ao público. Não lhe dar apenas o que quer ouvir. É preciso tomar o pulso ao público. Por isso, prefiro fazer um espetáculo pago a um espetáculo de empresa, em que somos quase intrusos. Num espetáculo pago sabemos que aquelas pessoas, as sete mil que entraram no Campo Pequeno por exemplo, ou gostam de mim ou gostam de improvisação ou gostam muito do Campo Pequeno. Portanto à partida as pessoas estão bem.

A improvisação tem que ver com risco e também com espontaneidade. Mas é preciso pensar duas vezes antes de falar, mesmo em palco?
Com o tempo vou pensando cada vez mais. Em palco só tenho duas hipóteses: improvisar bem ou mal. Se decidir ficar calado dez minutos não posso ser acusado de não estar a improvisar. Só que é mau, é fraco. Quando estou a improvisar abrem-se mil caminhos na minha cabeça. Há mil respostas para cada pergunta. E quando digo «mil» estou a pecar por defeito. Para a pergunta «É aqui que se apanha o autocarro?» tenho milhões de respostas. Hoje em dia excluo sempre a primeira que me surge. Se é a primeira é porque é fraca, é simples. Num dia mau, darei a segunda resposta. Num dia ótimo, a sétima.

A primeira resposta, a fraca, seria «não, não é aqui»? Ou «sim, é aqui»?
Exatamente, a que nunca se deveria dar numa improvisação porque corta o jogo. Eu posso dizer «não, não é aqui» desde que acrescente «porque este prédio caiu ontem, matando 215 pessoas e esta paragem foi para obras». «Está a falar a sério?» «Estou, estou.» E agora vamos por ai fora.

Que outro caminho podia levar a conversa?
«Não, o senhor está enganado. Isto não é um autocarro é um avião», por exemplo. Essas são as respostas simples. Não quer dizer que o público não lhes ache graça. Acha. Se eu disser «isto não é uma paragem de autocarro, é um aeroporto» as pessoas pensam «Ele tramou-o». Mas sei que não foi uma boa opção, e é por isso que rejeito as primeiras respostas.

Improvisar requer rapidez na resposta e capacidade de reação em segundos. O domínio de uma técnica. Muito treino, portanto.
Há muito treino mas não é visível. Tirando as horas de sono, estou sempre a treinar. Não tenho grandes horas de descanso em que não esteja a pensar se isto ou aquilo dariam uma boa piada, uma boa solução. É de tal forma constante que nem me apercebo. E só muito raramente tomo notas ou apontamentos. Muito raramente, também, vejo coisas de humor.

«O humor é o parente pobre da representação e a improvisação é o parente pobre do humor. É muito complicado. Felizmente consegui encontrar uma brecha no meio disto. Mas a porta do cinema, por exemplo, tem­‑se fechado.»

Há nisso um propósito?
Na improvisação trabalhamos muito com o imediato. Tenho medo que me saia algo que não seja inteiramente meu, um plágio.

A que ou a quem vai buscar inspiração?
Ao quotidiano. Às pessoas do dia a dia. Não tenho, eu e os meus colegas, piadas preparadas. São raríssimas as vezes que no meio de uma improvisação falo de um problema atual.

O que é mais importante na improvisação?
A disponibilidade. Se eu entrar em palco a pensar fazer aquela piada ou convencido de que sei o que vai o meu colega perguntar-me, é certo que vou errar. Se estiver completamente disponível, sem nada no cérebro, pergunte ele o que perguntar vou ter resposta imediata. É preciso ter essa disponibilidade. Se entrasse agora um rapaz nesta sala e dissesse «isto é uma assalto» como iríamos reagir? Normalmente. Porque não estamos a pensar nisso. Isso é bom.

Qual é o maior elogio para um improvisador?
Os improvisadores distinguem-se pela velocidade. Uma das melhores críticas que podem fazer é dizerem-me «aquilo esteve tão bem e foi tão rápido que já devia estar combinado». Ainda ontem uma grande amiga minha de infância me perguntava sobre o programa: «aqui entre nós, diz-me lá a verdade: quando tiras as profissões já sabes quais são, não sabes?» Esse é um grande elogio.

Um ator de improviso treina menos a memória.
É verdade mas não é o meu caso. Estou em palco a improvisar e reparo em tudo. Sei tudo o que se está a passar. Nos outros trabalhos, sou até obsessivo a decorar as marcações. Decoro à exaustão. Tenho ótima memória.

O que é que um ator tem de ter a mais para ser um bom improvisador?
Tem de ter a menos. Menos consciência. Tem de se levar menos a sério. Para os que se levam muito a sério a improvisação é muito difícil. Há grandes atores que fazem muito bem improvisação e há grandes atores que não improvisam bem. Passa por se levarem muito a sério. Pensam que um tão bom ator não pode brincar e que a improvisação é brincar ao teatro.

E não é?
A improvisação é quase brincar ao teatro. Desde logo, porque não há uma preparação prévia. Fiz teatro muitos anos, já preparei muitas personagens, sei do que estou a falar. Mas quando assumimos que estamos a brincar à interpretação e o fazemos com toda a sapiência que temos, torna-se mágico e muito bom. É bom que os atores muito bons assumam que também podem brincar ao teatro.

Improvisar em televisão é muito diferente?
Muito claramente. O tempo da improvisação em sala é mastigado de outra forma. Em teatro é mais fácil ter o público na mão. Em televisão, isso só se consegue com ritmo e constantes piscadelas de olho a quem nos está a ver. Por isso, não querendo nunca seguir a piada básica, em televisão sou obrigado a recorrer às cinco primeiras que me ocorram.

O programa [D’Improviso] estreou e logo liderou as audiências. É bom ou mau?
É sempre bom. As audiências têm várias leituras – há programas como o Big Brother, que odeio, mas que têm muita audiência e há programas excelentes que tiveram muito pouca. No caso do D’Improviso é impossível as pessoas não quererem ver porque é como se eu estivesse num trapézio. E as pessoas querem ver se caio ou não. Aquele programa está muito na iminência de correr mal. A cada segundo pode correr mal, é isso que prende o espectador. Tal como fica preso ao Big Brother, na expectativa de alguém dar um estalo em alguém. No caso do D’Improviso é isto, só que para o lado bom. Felizmente.

No seu caso, até que ponto as audiências são um cutelo?
Durante a execução e gravação dos programas não penso um segundo nas audiências. Nem me vendo por elas. Não estou a pensar «se despir a parte de baixo da roupa a audiência sobe»( ou desce, mas, vá, à partida subiria). Estou a fazer o melhor que sei e quero fazer. Isto vale para o programa direto. Depois de sair preocupo-me, claro. Será que ganhámos? Na SIC tiveram a coragem de não me pedir nada. Mas da mesma maneira que sei que temos de encher o teatro Sá da Bandeira todos os dias – e enchemos – tenho consciência de que estou a trabalhar num canal privado, que luta nas audiências com a TVI.

Em Portugal o ator de improvisação paga um preço?
Paga, paga. O humor é o parente pobre da representação e a improvisação é o parente pobre do humor. É muito complicado. Felizmente consegui encontrar uma brecha no meio disto. Mas a porta do cinema, por exemplo, tem-se fechado. Sou um ator com uma formação igual à de qualquer outro. Se sou bom ou mau ator já é outra conversa, mas a verdade é que, à partida, há papéis para os quais não sou convidado.

Que castings gostava de ter disputado?
Especificamente nenhum. Mas a verdade é que não me propõem castings para personagens mais densos. Não sei se tenho todas as mais valias para esses papéis, mas sei que sou workaholic e preparar-me-ia seguramente. Recusei quatro novelas da SIC justamente porque me queriam incluir no núcleo de humor na novela. Quem faz humor tem um estigma, pior se fizer improvisação e pior ainda se for em televisão.

Cúmulo: ser isso tudo e ter um programa com sucesso?
É exatamente isso. Mas não digo que essas pessoas estão incorretas. O cinema precisa de caras menos conhecidas.

Uma licença sabática faz falta?
Faz, muita. Há pessoas que gerem muito bem as carreira e lembro-me sempre do exemplo do Nuno Lopes, um ator incrível que desaparece quado deve. O Nuno opta por ter menos coisas que eu – eu tenho uma filha; ele tem outras opções. Há, porém, que saber fazer pausas. Em termos de produção, os meus melhores anos foram aqueles três em que não fiz televisão.

Vai fazer improvisação até quando?
Quero fazer outras coisas, vou fazer outras coisas mas uma vez que abri em Portugal, nos Commedia à la Carte, as portas da improvisação, só as fecho quando deixar de subir a palcos.

Quando diz «outras coisas» está a pensar nos tais trabalhos e personagens ditos «sérios»?
Não projeto nada mas não tenho dúvidas de que vão acontecer. Em Portugal há uma coisa curiosa: a partir de certa idade, tudo o que um ator de humor e comédia fez prescreve. Como se já tivesse pagado a multa do humor e pudesse, finalmente fazer coisas «sérias».

Nicolau Breyner.É um exemplo. De repente foi descoberto como grande ator. O Sr. Feliz e o Sr Contente? Prescreveu. Daqui a vinte anos pode acontecer-me o mesmo.

Por falar em feliz e contente, o que aprendeu com Herman?
O Herman é muito inteligente e muito minucioso a tratar o seu produto. Podemos perguntar-nos se é bom ou mau, mas que ele o faz com toda a minúcia, faz. Do atual programa dele (Cá Por Casa) há quem diga que é mais do mesmo. Não sei se é ou não é. Sei que ele o faz com toda a minúcia. De todas as coisas que tive do Herman, todas boas, guardo sobretudo a generosidade e a minúcia no trabalho.

Referiu no início que não vê programas de humor. O que o faz rir hoje?
Quase nada. Não tenho uma gargalhada nada fácil.

A última vez que riu muito, riu de quê?
Rio-me muitas vezes com a minha filha [8 anos] porque ela tem imensa graça. Ainda hoje, fui leva-la à escola e diz-me uma amiguinha «pai da mariana, ela é igualzinha a si, estou sempre a rir-me com ela». Da última vez que me ri com muita vontade falava-se de um senhor que é tudo menos bom da cabeça. Uma história descabida a tal ponto que alguém disse que não há muito tempo vira o homem no supermercado com um papagaio no ombro. E perguntou um ouvinte: «um papagaio verdadeiro?» Comentário hilariante do meu amigo: «Claro, o homem não é maluco.» Contando assim tem pouco graça mas eu caí para o chão a rir.

 

«Para os atores que se levam muito a sério a improvisação é muito difícil. Há grandes atores que fazem muito bem improvisação e há grandes atores que não improvisam bem. Passa por se levarem muito a sério. Pensam que um tão bom ator não pode brincar e que a improvisação é brincar ao teatro.»

Estudou desporto, podia ser hoje um treinador de futebol. Quando descobriu que não iria por aí?
Ao mesmo tempo que estudava desporto fazia teatro amador e os meus encenadores, todos eles, me diziam que eu devia seguir por ali. Tanto insistiram que decidi entrar no Chapitô mesmo sabendo que tinha de repetir os 10.º, 11.º e 12.º anos.

Ainda hoje pratica desporto?
Atualmente só paddle e poucas vezes. Falta-me tempo.

Há dois anos que não tem Facebook. Falta de tempo também?
Nesse caso foi por aborrecimento. Lembro-me do dia. Tinham acabado de descobrir um novo planeta e não é que toda a gente percebia imenso do assunto? Aquilo enervou-me. Como me enervou ter postado uma fotografia de sushi e levar logo com comentários do tipo «ah, tu comes porque podes». Antigamente era a janela. Todos nós tivemos uma vizinha uma vizinha maluca que ameaçava da janela que nos tirava a bola. Hoje é o Facebook.

Disse numa entrevista que se «vende mal». Mas o Facebook é uma boa ferramenta de trabalho.
Lá está, nas redes sociais vendo-me mal. Mas se isto fosse uma reunião de trabalho, duvido que não saísse daqui com o trabalho. Adoro apanhar pessoas duríssimas e raramente perco uma reunião. Tenho de estar embriagado para perder uma reunião de trabalho. Para as redes sociais, de facto, não tenho muito jeito. Mas repare: larguei o face com trezentos mil seguidores e muitos perguntavam «e agora?» Agora? Agora continuamos a encher o Teatro Villaret e todos os teatros onde vamos. Não por aí. Mas ajuda, claro. E se calhar devia voltar.

Se esta fosse então uma reunião de trabalho como abriria a conversa?
Normalmente sou muito antipático. Faço questão de ser. E sou também tão assertivo e com uma confiança tal que não precisava de dizer nada de especial para vender o programa. Já cheguei a dizer ao comprador: «a sua opção é fazermos mal feito, a minha é fazermos bem feito. Agora faça o que quiser». E ele: «Então fazemos pela sua.» Eu: «Vê como é inteligente?» Tenho muito mau feitio e gosto muito. Sou muito agressivo. Se a agressividade fosse física diria que sou o Mike Tyson e por mais que a pessoa tenha razão, arrumo-a. E só sai da sala quando estiver KO.

É assim nas relações pessoais?
Nada. Na vida não sou nada assim.

TALENTO FAMILIAR

No tempo em que estudava desporto e se dedicava ao teatro amador em ensaios, era hábito ser recebido em casa com coreografias musicais humorísticas, danças e cantorias interpretadas pela mãe e pela irmã – a que por vezes se juntava o pai – numa brincadeira que se tornou um clássico familiar. Um dia ripostou. «Quando estiverem a aplaudir-me nos maiores palcos de Portugal sempre quero ver se gozam comigo.» Os pais, técnico de eletrónica e bibliotecária, ainda hoje recordam a profecia. Nunca interferiram na escolha do filho. «Se calhar preferiam que tivesse uma profissão mais estável, mais clássica, mas a verdade é que nunca me disseram nada.» Na família não é talento único. Da irmã, licenciada em ensino especial, diz que tem provavelmente mais talento que ele. «Muito humor, canta muitíssimo bem, dança muitíssimo bem, mas nunca quis ir por aí.» Herança paterna, casal imbatível em concursos de dança, e que o filho se lembra de ver ensaiar ao som dos Rolling Stones. A terceira geração está bem representada em Mariana, 8 anos, a quem o pai reconhece «imensa graça e sentido de humor desconcertante». E não esconde o orgulho. «Se fosse eu a escolher provavelmente escolheria outra profissão para a minha filha, mas se ela decidir ser atriz ficarei muito vaidoso.»