Celeste Pereira: esta mulher é de Marte

Notícias Magazine

Texto de Ana Pago
Fotografias de Adelino Meireles/Global Imagens

Bastou a Celeste Pereira candidatar-se a veterinária, quando teve de escolher o curso no fim do 12.º ano, para perceber que queria mesmo era ser engenheira química. Nem pensar em perder a matemática ou o estudo dos materiais! Ainda agora não sabe como chegou a esta conclusão dois dias antes de fechar o prazo de acesso às universidades, mas o facto é que acertou em cheio.

«Acho que muitas coisas na vida acontecem por circunstâncias que nem sempre têm a ver com a nossa vontade mais imediata», observa a investigadora de 45 anos, natural de Viseu. É ela a diretora operacional da HPS Portugal, a empresa tecnológica do Porto que concebeu os escudos térmicos da sonda europeia ExoMars, chegada a Marte a 19 de outubro do ano passado. Seguem-se as missões Euclid, para mapear o universo, e a Juice, rumo a Júpiter e à exploração das luas, ambas em curso. Até o seu nome é sideral: Celeste. Como qualquer um dos corpos existentes no espaço.

«Marte foi muito mediático, mas estamos a trabalhar na Euclid desde finais de 2014 e a dimensão nem se compara», revela a responsável, falando num contrato de dois milhões e meio de euros para o novo projeto (o de Marte andou à volta dos 800 mil). «Temos a nosso cargo fazer o MLI [isolamento térmico multicamada usado em veículos espaciais] e revestir com ele o escudo térmico da sonda, tal como fizemos para a ExoMars.»

Cada peça foi trabalhada em ambiente de extrema limpeza para evitar a contaminação biológica em todas as etapas, até à integração do hardware na sonda, em 2015.
Cada peça foi trabalhada em ambiente de extrema limpeza para evitar a contaminação biológica em todas as etapas, até à integração do hardware na sonda, em 2015.

Também farão alguns componentes mecânicos, metálicos e em compósito revestidos a MLI, além de equipamento de montagem do próprio satélite. «A Euclid está prevista para 2022 e vamos fabricar este ano o MLI para o escudo. Na Juice, agendada para 2024, temos não só o MLI como ganhámos, em fevereiro, o contrato para fazer o modelo do corpo central, que validará uma série de tecnologias térmicas.» Nem a missão europeia a Marte a fez sentir tantas borboletas de expetativa no estômago.

«A ExoMars 2016 foi a primeira de duas missões para se procurar sinais de vida no Planeta Vermelho, numa colaboração entre as agências espaciais europeia (ESA) e russa (Roscosmos)», explica a engenheira química, apaixonada pelo seu trabalho. A sonda – composta pelo satélite Trace Gas Orbiter (TGO) acoplado ao módulo de aterragem Schiaparelli (assim batizado em homenagem ao astrónomo italiano Giovanni Schiaparelli) – foi lançada a 14 de março do ano passado do cosmódromo de Baikonur, no Cazaquistão.

«Lembro-me de ver o Espaço: 1999, uma das séries de ficção científica mais marcantes, e ficar maravilhada por eles andarem dentro daquela nave a viajar, ou entrarem num tubo para se teletransportarem. Creio que isso motiva muita gente que trabalha nesta área – a mim motiva-me.»

Voou num foguetão russo Proton-M e levou sete meses a atingir o destino. A missão previa colocar o TGO na órbita de Marte para estudar os gases e partículas atmosféricos, o que sucedeu com êxito. A parte de aterrar o Schiaparelli em solo marciano, num ensaio para se enviar um veículo de recolha e análise de amostras na segunda missão (ExoMars 2020), é que não correu tão bem.

«Houve uma falha de medição num sensor e os propulsores desligaram-se antes de o módulo estar no chão. Desceu em queda livre de uma altura entre dois e quatro quilómetros, segundo a ESA. Explodiu ao embater no solo.» À equipa de Celeste coube sobretudo desenvolver, construir e montar as coberturas térmicas que impediam as estruturas de sofrer variações de temperatura durante a viagem e entrada na atmosfera de Marte.

«Fizemos o MLI que revestia o escudo térmico do Schiaparelli, o MLI para o interior desse módulo central e ainda para dois instrumentos a bordo do TGO, que está neste momento em órbita.» Cada peça era trabalhada em ambiente de extrema limpeza para evitar a contaminação biológica em todas as etapas, até à integração do hardware na sonda em 2015, na Thales Alenia Space Itália (o consórcio internacional que integrou os contributos das empresas envolvidas nas missões).

«Claro que entregámos a nossa parte e ficámos a acompanhar o resto como curiosos interessados no assunto.» Não dá para desligar, diz. Às vezes, quase lhe parece que o seu destino estava escrito nas estrelas. «No último ano de licenciatura em Engenharia Química, de 1994 a 95, na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), tive uma cadeira chamada Projeto de Investigação que nos prepara, de algum modo, para sermos investigadores. Isso coincidiu com a vontade de fazer Erasmus no sudoeste da França e ter ido estudar o comportamento de materiais no vazio para Pau, uma comuna francesa perto de Toulouse, que hoje é um grande centro de aeronáutica e do espaço.»

Celeste compara estes saltos no desconhecido aos Descobrimentos: a imagem dos navegadores portugueses a partir em busca de aventura, muitos deles para morrerem no mar, todos à procura de algo mágico.

Concluída a licenciatura, foi proposta a doutoramento em engenharia química na mesma faculdade (de 98 a 2002). Sentia-se no bom caminho a lidar com processos de fabrico e reação de materiais, a desenvolver modelos numéricos, na polimerização (a união de moléculas de um dado composto para formar novos). Passava ainda curtas temporadas em França, Espanha, Brasil, ao abrigo de uma rede colaborativa de investigadores, para aprender nos laboratórios de outras faculdades. «Como bolseira de pós-doc surgiu a oportunidade de vir para o INEGI [o Instituto de Ciência e Inovação em Engenharias Mecânica e Industrial, no campus da FEUP] dinamizar a área das nanotecnologias quando quase ninguém fazia isso cá», conta Celeste Pereira.

Aos poucos, ia-se especializando nos requisitos dos materiais para o espaço até trabalhar exclusivamente neles – são esses que mais a intrigam e atraem entre todos os outros. Em 2007, colaborando com a HPS – High Performance Space Structures na Alemanha, arrancava o seu primeiro projeto com a Agência Espacial Europeia. «Por essa altura foi também criada a HPS em Portugal, sediada no edifício do INEGI, no Porto, e eu entrei como sócia em 2013: precisávamos de todos os investimentos possíveis para sustentar o boom de crescimento que tivemos com a missão ExoMars 2016.» Em 2014, assumia finalmente a direção operacional da empresa luso-alemã, especialista no desenvolvimento e produção de estruturas para missões espaciais.

A equipa de Celeste teve a seu cargo fazer o isolamento térmico multicamadas do Schiaparelli.
A equipa de Celeste teve a seu cargo fazer o isolamento térmico multicamadas do Schiaparelli.

E o que é que o espaço tem, afinal, que nos deixa de olhos perdidos no céu? «Acho que é o fascínio do desconhecido que todos sentimos», aponta. O querermos saber de onde viemos, porque estamos aqui. O que somos. «Lembro-me de ver o Espaço: 1999, uma das séries de ficção científica mais marcantes, e ficar maravilhada por eles andarem dentro daquela nave a viajar, ou entrarem num tubo para se teletransportarem. Creio que isso motiva muita gente que trabalha nesta área – a mim motiva-me.»

Lá em casa estão sempre a queixar-se de ela ter a cabeça na lua, mas o deslumbre é geral: há dias estava a ver uma reportagem sobre a descoberta do sistema de sete planetas semelhantes ao nosso, pela NASA, e o filho de 10 anos surpreendeu-a ao falar da Terra como um grãozinho face à imensidão do universo, tão encantado como a mãe.

«Tenho outros dois filhos, de 13 e 21 anos, e noto que os miúdos têm uma consciência diferente da que eu tinha nas idades deles. Já não é só saber os planetas de cor.» Celeste compara estes saltos no desconhecido aos Descobrimentos: a imagem dos navegadores portugueses a partir em busca de aventura, muitos deles para morrerem no mar, todos à procura de algo mágico. «Penso que será possível viver em Marte no futuro, porque se está a fazer tudo para torná-lo viável. Mas ainda me interessa mais o facto de sermos capazes de entender melhor os fenómenos na Terra – alterações climáticas, fluxo das correntes marítimas, evolução da biosfera – desde que começámos a exploração espacial.»

Se hoje podemos fazer uma TAC é graças a desenvolvimentos engendrados para o espaço. Tal como usar smartphones. Ou o GPS. Ou comunicar aqui e agora. Bem dizia o capitão Kirk no início da série Star Trek: o espaço é a última fronteira.


 

A ExoMars 2016 foi a primeira de duas missões para se procurar sinais de vida no Planeta Vermelho.
A ExoMars 2016 foi a primeira de duas missões para se procurar sinais de vida no Planeta Vermelho.

De Portugal para o universo

O mesmo espírito de descoberta. A mesma vastidão de possibilidades infinitas. João Esteves ouve Celeste Pereira falar do espaço nestes termos e confirma serem os mesmos que movem a Critical Software, outra empresa portuguesa envolvida na ExoMars 2016: «Marte é aqui ao lado, dá para aterrar. Será o próximo porto», afirma o diretor técnico da Critical.

O Schiaparelli despenhou-se, embora tenha conseguido registar as condições de descida como era suposto. Por outro lado o TGO, cujo sistema de controlo foi desenvolvido pela equipa de João Esteves, é um sucesso absoluto: não só funciona a 100 por cento, como entra em breve numa fase de travagem aerodinâmica para ficar em órbita estável à volta de Marte. «Neste momento estamos com o satélite de observação da Terra Sentinel-6, em funções de desenvolvimento do software de controlo da nave, e também em fase avançada de participação na missão Solar Orbiter, para estudar o sol.»

Quanto à Active Space Technologies, sediada com a Critical no Parque Industrial de Taveiro, em Coimbra, participou na missão de 2016 a Marte selecionando os melhores locais de aterragem do Schiaparelli (numa zona plana perto do equador, a Meridiani Planum). Entre 2015 e 2016 ganhou novos contratos com a Airbus para a missão a Júpiter – fará «o mecanismo crítico de uma antena de meio metro de diâmetro para comunicar com a Terra», segundo o CEO Ricardo Patrício – e a Euclid – criando estruturas que a Airbus usará para montar todo o satélite. E regressa à segunda missão a Marte em 2020: além de estar envolvida no sistema de locomoção do veículo, testando as seis rodas motorizadas para a Thales Espanha, fabricará alguns sistemas eletrónicos, componentes estruturais e protótipos da viatura.