Brincar na rua está em vias de extinção?

Texto de Sara Dias Oliveira

Os três rapazes não querem que os pais saibam. É um segredo que ficará entre eles. Nas três horas de liberdade para brincar no jardim público, ao pé de casa, os três amigos e vizinhos atravessam a Ponte Luiz I, tiram as sapatilhas, despem as camisolas e mergulham no Douro vezes sem conta – e sem darem importância aos miúdos que, ali perto, se lançam ao rio para turista ver e fotografar. É sábado à tarde, estão 30 graus, a Ribeira do Porto está cheia de gente. Os três miúdos, com 11, 12 e 13 anos, partem à aventura. Naquela tarde de calor, o Douro também é deles. Sem os pais saberem.

Arriscam. Arriscam sair do jardim. Arriscam descer até ao Douro. Arriscam mergulhar pela primeira vez nesse rio. Mergulham de cabeça, de pés, de lado, à vontade. Corpos na água, algumas braçadas, saem para a rampa de cimento. E voltam mergulhar. Garantem que sabem nadar e contam que do outro lado do rio, na esplanada de um café em Gaia, há um pai a vigiá-los. Não há, acabam por confessar. Mais mergulhos e é hora de voltar ao jardim e fazer de conta que nada aconteceu.

Os três amigos arriscam. E arriscar também é crescer. «Quando chegam a casa sem um arranhão no nariz ou no joelho, é sinal de que não arriscaram, não aprenderam, não exploraram», afirma Rui Matos, especialista em aprendizagem motora, diretor da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria. «Não há nada pior do que um miúdo do jardim-de-infância chegar a casa limpinho.»

A paranóia com a segurança e a cultura do medo dos adultos é que, na sua opinião, acabam por travar o brincar espontâneo. Há o risco e há o perigo. «Perigo é não deixar as crianças arriscar, devemos sujeitá-las aos riscos de forma controlada.» As brincadeiras até podem não acontecer na rua, devem, isso sim, ser livres, à maneira de cada um. «O que é importante é muito tempo de brincadeira sem ninguém chatear.»

Os rapazes gostam dessa liberdade. Sem ninguém chatear, sem proibições nos mergulhos que são dados com cautela. Estão à vontade com o corpo, adoram jogar futebol, dois andam em escolinhas e têm treinos três vezes por semana.

O corpo é essencial nas brincadeiras. «Aquilo que fazemos com o corpo fica mais gravado do que aquilo que fazemos só com a cabeça», diz Rui Matos.

Há imagens que são um murro no estômago. «Nos meios urbanos, as pessoas passeiam mais os cães do que as crianças. Os reclusos têm mais tempo no pátio das celas do que as crianças nos recreios das escolas», observa Carlos Neto, professor e investigador da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Nova de Lisboa. Nos últimos anos, as crianças perderam, em média, oito horas de brincadeira por semana. Quando se espreita para ver o que fazem, na maioria estão sentadas e quietas em frente à televisão. E isso preocupa-o. «Crianças ativas e que brincam muito têm maior capacidade para aprender na escola.»

Brincar na rua é uma espécie em vias de extinção? Carlos Neto não tem dúvidas de que assim é. Encontrar miúdos a brincar na rua é, na verdade, uma missão complicada. Os tempos mudaram. Os pais protegem demasiado os filhos, controlam energias, evitam o confronto com o risco. «Os pais têm medo de dar autonomia às crianças.» E os tempos de trabalho, da família, da escola, do brincar, andam desequilibrados. «As crianças estão a ser vítimas de um modelo de organização de tempo inconsistente. As crianças só têm tempo para brincar no exterior se os pais tiverem tempo para elas», refere. Carlos Neto avisa que é necessário pensar na «pobreza lúdica» transversal a todas as classes sociais e espaços urbanos e rurais. «Brincar não é uma atividade estruturada, é uma necessidade ancestral.»

Rafaela Sequeira leva os filhos mais novos a apanhar ar no parque de relva, com alguns baloiços, no empreendimento onde vive, em Águas Santas, na Maia. Ricardo, 10 anos, traz a bola. Bruna, de 12, segura o telemóvel e as chaves nas mãos. Está calor e não está muita gente naquele espaço rodeado de prédios. «Brincarem sozinhos na rua? Está fora de questão.» É um medo que Rafaela não esconde. «Não sou diferente de nenhuma mãe», acrescenta de imediato. Por vezes, Ricardo e Bruna brincam ali sob o olhar atento da irmã mais velha, de 14 anos, que leva sempre o telemóvel, como a mãe lhe pede. «A gente ouve cada coisa hoje.» Rafaela, 32 anos, trabalha na cozinha de um restaurante. A sogra fica-lhe com os filhos nas férias escolares. Atividades planeadas de ocupação de tempos livres não fazem parte dos seus planos. Não porque não quer. «Não os pomos nessas atividades porque o dinheiro não dá. Mas seria bom, para não estarem agarrados aos jogos, conviviam, passeavam e conheciam outros sítios.»

Atividades planeadas têm vantagens. «Estruturar não significa gerir cada minuto. Uma atividade pode ser estruturada e dar amplos espaços de liberdade, criatividade e imaginação, gozo e espontaneidade», diz o pediatra Mário Cordeiro. «Em alguns casos, é um pouco utópico e poético as crianças brincarem nas ruas. Todavia, há que ter algumas atividades programadas, mas deixar espaço para a imaginação e a criatividade», acrescenta. O desfasamento entre tempos de pais e filhos é grande. O importante é encontrar soluções e não abafar os momentos livres dos segundos. «As crianças precisam de espontaneidade, ter materiais toscos para gizarem construções, viverem num grande contacto com a natureza, o que é difícil hoje, criando uma geração de incapacitados em termos de usarem os vários órgãos dos sentidos, a perspetiva do tempo e do espaço, e as características inerentes ao ser-se humano», comenta Mário Cordeiro, que tem vindo a dar sugestões neste mundo do brincar.

O stress dos pais que não sabem ocupar os tempos dos filhos é tema de conversa nas consultas do pediatra João Gomes-Pedro. «O papel dos pais é criar e favorecer oportunidades para a brincadeira», refere.

Só que o tempo não estica. Escola, trabalhos de casa, banho, jantar. «Há uma carga de obrigações que ocupam o tempo das crianças. Um dia-a-dia que quase não as deixa respirar. A vida, a falta de tempo, a falta de oportunidades, esse corre-corre, empurram as famílias para atividades planeadas.»

O que é brincar? Eles sabem. Os três rapazes respondem. «Brincar é passar tempo com os amigos que gostam de nós», diz o mais novo, que prefere brincar na rua do que em casa. Troca, sem pensar duas vezes, televisão, telemóvel e tablet pelos jogos de bola ou as escondidinhas no jardim ao pé de casa. Os irmãos Ricardo e Bruna concordam.

Beatriz Pereira, investigadora do Centro de Investigação em Estudos da Criança da Universidade do Minho, avisa: é fundamental ouvir as crianças. «Elas sabem exatamente o que é importante para o seu desenvolvimento.» Há as que gostam de agendas preenchidas, há as que preferem menos agitação. «Há crianças que saem de uma atividade e entram noutra. Mas isso não pode preencher-lhes o dia. Têm de ter espaços livres para decidir o que querem e têm necessidade de fazer. E não devem estar muitas horas expostas ao contacto com uma máquina, computador ou televisão.»

Mas a tecnologia entrou nas brincadeiras. Rafaela Sequeira não gosta que os filhos passem demasiado tempo à volta do telemóvel, da televisão, da PlayStation, do computador do pai.

Os três rapazes que mergulham no Douro também têm telemóvel, televisão, tablet. Alguns têm PlayStation. Esta ligação às máquinas não tem de ser diabolizada. É preciso estabelecer limites, perceber que estimulam o desenvolvimento cognitivo, mas não a motricidade fina e grossa, a coordenação motora. «Brincar é sempre brincar. Porventura hoje, com maior frequência, as brincadeiras são muito baseadas em audiovisual – ecrãs, consolas, tecnologias – ou em jogos já pré-feitos, o que não estimula a imaginação», diz Mário Cordeiro. O pediatra refere que é preciso que os adultos parem para pensar. Quem querem ser? Que grau de liberdade têm para mudar pequenas coisas nas suas vidas e nas vidas dos filhos?

«Muitos pais já perderam a ideia do que é ser humano. Não leem, não ouvem música tranquilamente, não encontram espaços endorfínicos de lazer puro, vivem sofregamente à procura do prazer que nunca alcançam. Que dizer dos filhos destes pais, habituados a um frenesim constante, 24 sobre 24 horas?»