Autoentrevistas

Notícias Magazine

Nunca entendi a razão de não haver o género jornalístico de autoentrevista. Como é habitual nas entrevistas, ninguém ligaria à pergunta. Mas o respondedor estaria mais bem preparado para dizer o que tem para dizer e não ser empurrado para bitaitar o que se espera dele. Eu, que sou suficientemente comum para só ter dado meia dúzia de entrevistas, reduzi ainda mais o número delas pelo pânico de me poder calhar uma pergunta do tipo: «E de Arnold Schönberg, que lhe apraz dizer?»

Eu sei que seria pouco provável, mas dá-me suores frios a hipótese de ser assim interrogado em direto. Acho, mas não garanto, que diria «quem?!», em vez de «quê?!», com o espanto certo, mas tudo o que viesse a seguir seria uma vergonha. Ainda há pouco, ao sair do Colombo, dei meia volta abrupta, só explicável pelo inibidor efeito Schönberg que há em mim: uma jovem, em treino de estagiária de jornalismo, aguardava-me à porta com o microfone. E, suspeitei, ela tinha uma pergunta artilhada sobre a música dodecafónica.

A autoentrevista resolveria esse problema. Eu próprio, entrevistador, escolheria as perguntas. E eu próprio, entrevistado, responderia, pausado e sábio, cofiando a barba. Eu não tenho barba, mas isso vocês não sabem, como aliás não sabem que eu combinara a entrevista comigo. «Ah, o velho Arnold… Sem desprimor, o dodecafonismo serial está um pouco datado e o serialismo de Milton Babbitt mexe mais comigo», diria eu.

A verdade é que a esta resposta minha – do entrevistado, eu – o entrevistador, eu, não diria «quem?!», nem mesmo «quê?!», apesar do espanto que lhe (me) ia na alma. Eu, o entrevistador, perguntaria pelo Babbitt, como se alguma vez tivesse ouvido o String Quartet nº 3 (eu sei, ele nunca ouviu).

Isto para dizer que o programa da RTP 1 (às terças) Fugiram de Casa de Seus Pais começa sempre com uma entrevista em que o humorista Bruno Nogueira pergunta e o cronista Miguel Esteves Cardoso responde. Entrevista de mentira, supina mentira, aquilo é uma autoentrevista a dois, uma mentira partilhada. Mas bendita mentira. Porque é uma conversa. As palavras são preparadas e escolhidas, como, no primeiro episódio, Bruno Nogueira apareceu a marcar os ângulos para a câmara vasculhar, a iluminação, o inclinar do corpo do parceiro MEC…

Essa conivência inicial – como se eles tivessem dito «vamos fazer de conta que isto é exato» – ajuda a que a conversa simples se instale. Com os dois acertados componentes de uma boa conversa: palavras e silêncios. O tom de voz, o look, o espetáculo, apagam-se (aliás, nunca aparecem) e deixam-nos ouvir e impor-se as palavras e o silêncio.

São dois nomes sonantes, Bruno Nogueira e MEC, mas o que se ouve não é de vedetas (nem mesmo o ator), mas é de autores. Palavras, conversa. Tão fortes, que a primeira das convidadas (a dado passo do programa entra um convidado), dessa vez, a fadista nortenha Gisela João, larga a meio de uma frase, falando de um homem e de uma mulher em mútuo encantamento, duas palavras que só podem vir do reino do Norte e do bom português a toda a sela «O marreco e a marreca…»

Volto ao que vinha dizendo, gostava mesmo de ser autoentrevistado. Alguém que soubesse de mim (julgo conhecer uma pessoa), que me perguntasse o que eu saberia dizer. Por exemplo, desafios assim: «Pergunta – Uma recordação de uma cidade e uma época?» E eu, fingindo-me surpreendido, fingindo pensar, responderia a verdade: «Era novembro, 1933 ou 32, e eu vinha de bonde, de Vila Isabel para a Praça Tiradentes… Sentado ao meu lado, um tipo de queixo esquisito e de fato de linho branco batucava levemente nas costas do banco fronteiro. A cidade era o Rio e ele era Noel Rosa… E agora me lembro, era mesmo 1933», responderia eu, sincero e comovido.