Texto Ricardo J. Rodrigues | Fotografias JFS/Global Imagens
No último dia de julho, um casal de grifos chegou ao Centro de Educação e Recuperação de Animais Selvagens de Castelo Branco (CERAS). Gerido pela Quercus, é um dos sete organismos que existem em Portugal para resgatar e cuidar da fauna silvestre. Dias antes de as duas aves serem encontradas, um incêndio tinha fustigado o Parque Natural do Tejo Internacional, na zona de Vila Velha do Ródão. Era precisamente naquelas escarpas que os animais se tinham estabelecido.
«Percebemos imediatamente que eram juvenis e ainda não sabiam voar, mas tiveram de saltar do ninho para fugir do fogo e do fumo», diz Samuel Infante, coordenador do centro. «Passaram três dias dentro de água e um deles acabou por não resistir aos ferimentos. Morreu sem que conseguíssemos salvá-lo.» O outro sobreviveu, apesar das lesões na asa esquerda. Depois de uma temporada nos cuidados intensivos, está agora numa unidade de fisioterapia com outros grifos e um abutre-negro. Ali ficará nas próximas semanas, até recuperar a mobilidade total e consolidar a aprendizagem de voo e caça. «Um dia há de chegar a altura de devolvê-lo à natureza.
E acredite em mim, não há espetáculo mais belo do que ver um animal reconquistar a sua liberdade.»
Nesta manhã há 56 animais hospitalizados no CERAS, mas todos ali sabem que ao fim da tarde o número pode aumentar para 60, ou 70 ou mais. A falta de espaço é nítida, há bichos que não têm espaço nas salas preparadas para os receber e permanecem em caixas de cartão ou plástico, dentro da sala de necropsias. Chegam muitas aves de pequeno porte, mas também raposas, águias, grifos, abutres, tartarugas, veados, às vezes lobos, menosvezes linces.
«Em média, recebíamos anualmente 250 pacientes. Este ano, atingimos esse número no início de junho e, desde que começou a época de incêndios florestais, não param de chegar novos exemplares.» O CERAS, afinal, atua no interior centro, abrangendo toda a área dos distritos de Santarém, Castelo Branco, Guarda e Portalegre, mais uma boa parte de Coimbra e Leiria. E é este o país que tem ardido de forma mais severa em 2017.
Os dias estão a revelar-se de trabalho intenso e tudo piora quando os telejornais abrem com notícias de mais infâmia. «De Pedrógão Grande, por exemplo, recebemos uma vintena de animais no mesmo dia. Raposas, esquilos, noitibós, açores, grifos, mochos, cegonhas, até um gavião. Cada um com um problema específico, que tem de ser tratado individualmente.» O alerta soa em Abrantes, depois em Ferreira do Zêzere, depois em Vila de Rei. E toda a gente ali sabe o que isso significa. Que é preciso mais espaço. E menos sono.
Além de Samuel, o centro só tem oficialmente um veterinário a ser pago pelo seu trabalho, tudo o resto são voluntários. Maioritariamente estudantes de veterinária ou biologia, como Clarice Piloto, que é finalista de veterinária em Lisboa. Passou duas semanas em Castelo Branco, pagou transportes, alimentação e alojamento do seu bolso e, como todos os outros, não teve sequer direito a um dia de folga. Ninguém tem. Ninguém pode ter.
Agora é preciso fazer fisioterapia a uma coruja que partiu uma asa. Daqui a pouco será a vez de mudar os curativos de uma cegonha com uma fratura na pata. Há uma raposa com lesões oculares por causa do fumo, além de ter queimado orelhas, bigodes e patas – e é preciso perder uma boa hora só a cuidar dela. Para cada animal, são normalmente necessárias três pessoas. Uma que o segure, outra que faça quaisquer operações necessárias, uma terceira que registe dados biométricos e a evolução dos tratamentos. No máximo, trabalham ali 15 voluntários. Normalmente só estão metade.
«Recebíamos anualmente 250 animais. este ano atingimos esse número em junho», diz o coordenador de um centro de recuperação a rebentar pelas costuras. Os incêndios fazem cada vez mais vítimas na fauna selvagem.
Cinco mil animais selvagens são socorridos anualmente em Portugal. Em 60 por cento dos casos, são recuperados e devolvidos à natureza. Dos restantes 40 por cento, 10 têm de ser eutanasiados para evitar sofrimento crónico. Os demais são reencaminhados para programas de reprodução.
«Neste momento temos aqui uma águia-imperial, que é uma das espécies mais ameaçadas do mundo e que tem boas possibilidades de reintegração.» De facto, não existem mais de 180 casais em todo o mundo, e 11 deles nidificam em Portugal. Este espécime nasceu este ano e, como os grifos, saltou do ninho depois de um golpe de calor. Também lá está uma fêmea de abutre-preto, oficialmente em vias de extinção. Essa perdeu uma boa parte da asa, terá de ser transferida para que possa acasalar.
O CERAS abriu portas há 19 anos e está instalado no campus de agronomia do Politécnico de Castelo Branco, uma propriedade nos limites da cidade onde há pomares e montado, gado e pastagens. O edifício da Quercus ocupa a antiga casa dos caseiros, um pequeno monte com quatro divisões, mais um pedaço de terreno em redor. À volta, várias placas pedem silêncio, e essa é uma das caraterísticas mais notórias à primeira vista. Uma azáfama de gente a trabalhar, animais a entrar e a sair, tudo na mais rigorosa mudez.
Daqui a pouco é preciso dar alimentação aos bichos. Há uma sala com um balcão de mármore onde são dispostas as rações. Numa das paredes alguém instalou um quadro com um gráfico para saber quem come o quê, mas o espaço tornou-se escasso e foi preciso acrescentar uma grelha escrita a marcador azul sobre os azulejos brancos.
Um pequeno leitão, uma dúzia de codornizes mortas e outras tantas vivas, pintos, pedaços de frango, minhocas, gafanhotos, ratos – mais cobras e lagartos que são encontrados nas estradas e congelados em velhas arcas. Uma boa parte dos animais são necrófilos, só comem cadáveres. Mas há outros que precisam de presas vivas, sobretudo os que têm de aprender a caçar. Por isso, a hora de almoço no CERAS é um espetáculo sangrento, pouco recomendável a mentes impressionáveis.
A comida e os medicamentos são a maior fonte de despesa dos ambientalistas. «Não recebemos qualquer apoio do Estado, o único patrocínio – e que muito agradecemos – são as contas de água e luz, financiadas pelo Politécnico», diz Samuel Infante. Com o aumento do socorro, é preciso operar uma grande engenharia financeira. Nas traseiras da casa, há uma sala que se chama biotério. Tem uma série de prateleiras e em cada uma vivem três ratos, um macho e duas fêmeas. A cada 21 dias têm ninhadas que podem ir das 3 às 12 crias.
Também há maternidades para gafanhotos, minhocas, larvas de todo o tipo. Junto às portas, fitas autocolantes apanham moscas, mosquitos, melgas. E tudo se aproveita. Há bichos que são criados para alimentar outros bichos e outros que, quando morrem, também servem como repasto. Dificilmente poderia ser de outra maneira.
Aqui os problemas são básicos e têm de resolver-se dia-a-dia. Há dias maus, em que uma arca congeladora avaria e perdem-se reservas de comida ou os cadáveres de animais que aguardam estudos começam a entrar em putrefação. E depois há outros melhores, como quando a Good Mood, empresa que organiza a cada dois anos o Boom Festival em Idanha-a-Nova, decidiu oferecer-lhes uma máquina de anestesias gasosas que custa uns bons milhares de euros.
«As aves, que são o grosso da população que atendemos, não sobrevivem às anestesias líquidas e isso foi uma dádiva muito útil, que nos permite salvar muitos mais animais», assegura o coordenador do centro. Também há particulares a apadrinhar alguns bichos, o que ajuda nas despesas. Para saber como contribuir, basta ir ao site quercus.pt/apadrinhamento.
80 por cento da biodiversidade europeia ocorre na península ibérica, o que também significa receitas com ecoturismo
e venda de produtos florestais. é uma vantagem competitiva, mas portugal está a perder
esse trunfo para o fogo.
Com o aumento de afluência ao centro por causa dos incêndios, há algumas unidades de tratamento que têm de sofrer intervenções imediatas. Mesmo em frente à casa há quatro antigos currais que servem para atender animais que têm de estar em isolamento e precisam de cuidados constantes – são escassos para as emergências.
Depois há os túneis exteriores para os animais em fisioterapia. Áreas generosas, forradas a rede por todos os lados, para que não consigam fugir mas possam aprender a voar e a caçar. E aí são necessárias mais duas estruturas, pelo menos. «Agora vemo-nos na contingência de ter de colocar animais a partilhar espaços e disputar território, podendo inclusivamente combater
para esse efeito. E isso pode pôr todo o tratamento em causa.
Samuel Infante, como a maioria dos voluntários que trabalham no centro, acredita que a preservação dos animais selvagens não é um fim que termine em si, também têm sérias vantagens para os humanos. «Repare, oitenta por cento da biodiversidade europeia ocorre na Península Ibérica. Temos, por exemplo, em Portugal 80 tipos de libelinha, mais do que o resto do continente todo junto. E é preciso perceber que isto significa muitas receitas para o país.»
Para já, diz ele, pela diversidade incrível de produtos de alta qualidade que se produzem no território. Da cortiça ao mel, dos cogumelos à castanha, a biodiversidade da floresta ajudou o país a afirmar-se como player global em produtos com muita procura – e capazes de gerar riqueza.
«E depois assistimos a crescimento avassalador do turismo de natureza. Há, por exemplo, cada vez mais voos charter a chegarem a Lisboa e trazerem para aqui grupos de autocarro que querem unicamente praticar birdwat-ching. A destruição da floresta e da biodiversidade, e o falhanço na proteção aos animais selvagens, é um dos maiores tiros no pé que o país está a dar em termos de investimento.»
Os dias que se aproximam são de corrida contra o tempo. No final de agosto muitas aves migratórias regressam a África e, se não estiverem recuperadas até essa altura, terão de passar um ano inteiro em cativeiro, reduzindo drasticamente as suas possibilidades de sobrevivência. Mas as aberturas dos telejornais continuam a dar conta de um país a arder. E isso significa que há cada vez mais animais mortos, cada vez mais feridos, cada vez mais que não recuperarão a tempo. Caem de ninhos, ficam queimados, sofrem amputações, embatem desorientados contra postes de alta tensão. 2017, que aliou a seca extrema aos mais trágicos incêndios florestais da história, é já um ano negro para a biodiversidade portuguesa. E entretanto chegou mais um animal ao centro.