O apalpão da minha humilhação

Notícias Magazine

A brincadeira não tinha grande ciência. Não eram precisos truques ou habilidades. O único requisito era mesmo a velocidade que conseguíamos imprimir às pernas depois daquilo. Basicamente, tínhamos de correr. Mais rápido do que elas. Naquele dia, foi isso que eu tentei fazer. Olhei em redor, calculei a rota, dei um sprint naquela direção. E pumba! Depois fugi.

Tinha acabado de apalpar o rabo a uma miúda, a coisa tinha resultado em gargalhadas pelo resto da rapaziada presente e agora tinha de sair dali depressa porque ela queria bater-me. E, como era mais velha, ou pelo menos tinha pinta disso, as pernas dela eram mais compridas do que as minhas e havia fortes probabilidades de me apanhar. O que significava que eu ia apanhar.

Era uma coisa que fazíamos de vez em quando. Devia ter uns 10 ou 11 anos, andava na Escola Preparatória Roque Gameiro, na Amadora, e via aquilo nos outros rapazes. «Se tu fazes, eu faço também.» Na segunda metade dos anos 1980, em Portugal, os professores chamavam a atenção para comportamentos parvos se os viam ou se alguém se queixava. Mas não havia propriamente Educação para a Cidadania. Nem se falava de assédio, muito menos entre miúdos na escola. Nem as possíveis agressões sexuais entre pré-adolescentes do quinto ou do sexto ano eram motivo de debate generalizado. Os rapazes, ocasionalmente, quando a brincadeira deslizava para aí, apalpavam o rabo às raparigas. A algumas raparigas. Havia umas quantas em quem não ousávamos tocar, porque era certo que íamos apanhar. Não passávamos a vida naquilo, não era em todos os intervalos, não era todos os dias. Acontecia quando calhava, porque alguém tinha uma ideia idiota. A menos que levasse logo uma chapada na cara de alguma vítima mais rápida, e aí acalmávamos e íamos fazer outra coisa qualquer.

Mas naquele dia eu não estava na escola. Estava na rua a brincar, perto da casa do meu amigo Victor, a fugir de uma rapariga mais velha, de pernas compridas, empenhada em fazer-me ver que apalpar-lhe o rabo tinha mesmo sido uma má ideia. E que eu ia pagar por ela.

Nota importante: nunca olhar para trás se corremos em terreno que não conhecemos bem. Pior: se corremos perto de entulho, vestígio de obras recentes. Ainda pior: se atrás de nós vem uma rapariga maior do que nós que se sentiu humilhada pelo que fizemos. Quando tentei medir a distância que me separava da fúria divina na forma de estalada na cara, tropecei no que restava de um pequeno muro e aterrei de calções em cima de tijolos partidos e cacos de garrafas de cerveja que os pedreiros tinham deixado por ali. Mãos esfoladas, cotovelos magoados, joelho cheio de sangue a escorrer rapidamente pela perna. E, pior, uma calmeirona a rir-se de mim, estendido no chão, e a dar-me um calduço valente quando ainda me tentava levantar.

O calduço doeu no orgulho, o joelho doía que se fartava. Mas a ideia de chegar a casa e apanhar da minha mãe porque tinha ido brincar para um sítio onde ela não me podia ver se fosse à janela, era o que mais me assustava. Ou isso ou a adrenalina a correr pelo corpo enquanto a meia ia ficando ensopada de sangue.

Ao fim desse dia, quando já estava de perna esticada no sofá, com uma das minhas irmãs a perguntar-me se eu precisava de alguma coisa e a minha mãe a preparar-me o jantar para eu comer em frente à televisão, dei por mim a pensar que tinha tido uma sorte danada, no meio daquele infortúnio.

Mesmo apesar dos onze pontos com que um bombeiro me coseu o joelho esquerdo no posto de socorros do quartel para onde a minha mãe me levou num táxi a voar, mesmo apesar do responso que ouvi dela por ter ido para longe de casa, mesmo apesar do abanar de cabeça desapontado do meu pai quando chegou do trabalho, eu tinha conseguido esconder de toda a gente a razão de tudo aquilo: tinha apalpado o rabo a alguém e não tinha sido castigado por isso. Safei-me. E ainda ia ter direito a jantar no sofá.

Suponho que, noutra escala e com outras idades, seja isso que passa pela cabeça de muitos homens: safam-se. E durante anos safaram-se.

Não sei se Harvey Weinstein teria brincadeiras do género quando era miúdo. Ou se uma chapada bem enfiada na cara do produtor de Hollywood quando ainda não tinha idade para abusar da sua posição e assediar atrizes em quartos de hotel teria feito a diferença. E se o pequeno Sepp Blatter tivesse esfolado o joelho em tijolos partidos depois de apalpar um rabo sem autorização, continuaria a ter vontade de o fazer aos 76 anos? E o comediante Louis CK, ter-se-ia masturbado perante mulheres que ele sabia que o admiravam se, quando era miúdo, não tivesse tido pernas para fugir de uma rapariga ofendida e tivesse apanhado um calduço?

Não sei. Também não quero pensar que, se não tivesse sido apanhado naquele dia junto à casa do meu amigo Victor, eu viria a tornar-me um abusador quando crescesse. Essa relação causa-efeito parece-me difícil de conceber. Mas de uma coisa tenho a certeza: o calduço que levei foi mesmo, mesmo bem apanhado. E o joelho maltratado uma justa compensação pela idiotice.

Ninguém me disse «foi bem feito». Nem a calmeirona de mão pesada. Nem a minha família, de quem sempre escondi isto – até hoje. Também não foi preciso. A partir desse dia nunca mais apalpei ninguém sem saber que podia fazê-lo. E creio que nunca mais vi a rapariga de pernas maiores que as minhas. Se o fizer, espero ter a lata para lhe pedir desculpa. Há trinta anos tive lata para lhe apalpar o rabo. E paguei por isso.

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Editado. Publicado originalmente na Notícias Magazine de 19 de novembro de 2017.