António Martinho Baptista, o senhor arte rupestre

Entrevista Alexandra Tavares-Teles Fotografias Rui Ferreira/Global Imagens

Aos 17 anos trocou o Alentejo por Lisboa, para estudar História. No primeiro ano da faculdade apaixonou-se pelas origens da arte. Em 1979 começou a trabalhar como arqueólogo no Parque Nacional da Peneda-Gerês e em 1997 foi nomeado diretor do Centro Nacional de Arte Rupestre, passando depois a diretor do Parque Arqueológico do Vale do Coa, o maior conjunto mundial de arte paleolítica ao ar livre. António Martinho Baptista é, possivelmente, o nome mais emblemático na luta pela preservação e promoção do património daquele vale, classificado pela UNESCO como Património da Humanidade em 1998.

Um alentejano de Alter do Chão em Braga.
Há 38 anos. Em 1979, já licenciado em História em Lisboa, e apaixonado pelas coisas da natureza e pelo mundo da montanha, aceitei um convite para trabalhar no Parque Nacional da Peneda-Gerês. Fixei-me em Braga até 1995, depois foram dois anos entre Braga e Foz Coa. Em 1997 fui para Foz Coa. Reformado há um mês, aqui estou, de novo em Braga, a reinstalar-me. Há muitos anos que sou sinceramente bracarense. Além de foz-coense e, claro, alentejano.

Vinte e dois anos de Coa. Recorda-se da primeira vez que olhou para as gravuras?
Lembro-me perfeitamente, foi em novembro de 1994, a pedido de Nelson Rebanda (o arqueólogo que descobriu as primeiras gravuras paleolíticas), que queria saber a minha opinião. Foi num dia de grande temporal e, por isso, dessa vez, vi apenas os desenhos. Mas não tive dúvida de que se tratava de algo muito antigo. Lembro-me até do que lhe disse: «Se isto não é paleolítico, do epipaleolítico [transição do paleolítico superior para o pós-glaciar] não passa.»

À época, a arte do paleolítico ao ar livre era algo de estranho, quase exótico.
Pior: considerar-se a possibilidade de existir arte paleolítica ao ar livre era quase uma heresia. Durante quase um século, a arte paleolítica era a arte das grutas, a arte ao ar livre era praticamente desconhecida. Nesse sentido, as gravuras do Coa, não só pela quantidade mas pela sua enorme qualidade, foram logo um choque.

Como lida um arqueólogo com a descoberta excecional?
Não é algo que alguma vez tenha perseguido. Mas a verdade é que as descobertas excecionais marcam-nos muito. Há descobertas que assinalam um virar de página e que mudam conceitos e certezas estabelecidas – é o caso do Coa, um paradigma perdido na arte do homem fóssil. A partir daquele momento, a arte das grutas deixou de ser a norma na arte paleolítica.

Tem alguma gravura favorita no Coa?
A cabra das duas cabeças (rocha três da Quinta da Barca), para mim a gravura mais emblemática e icónica do Coa é uma obra-prima absoluta. Os cavalos de cabeças cruzadas (rocha 1 da Ribeira de Piscos). A própria rocha 1 da Canada do Inferno, por ser a primeira a ser descoberta e a primeira que pude apreciar com algum vagar relativamente à problemática das sobreposições de motivos e também a rocha 3 da Penascosa e o seu notável conjunto de representações sobrepostas, cuja réplica fizemos em 2015 para uma exposição que apresentámos na Coreia do Sul.

Inicialmente, eu próprio duvidei de que fosse possível parar o andamento da barragem [PARA PRESERVAR AS GRAVURAS DO cOA], tal a quantidade de obras já no terreno.

Em 1994, liderou a equipa de investigação às gravuras. Testemunha direta, o perigo de se perder aquele património foi até que ponto?
Inicialmente, eu próprio duvidei de que fosse possível parar o andamento da barragem, tal a quantidade de obras já no terreno. Mas no meu parecer para o IPPAR de janeiro de 1995 advogava já que se parasse a barragem, posição reforçada ao longo desse ano, conforme me fui apercebendo da importância do conjunto das gravuras. O movimento ganhou tal força na sociedade civil, na opinião pública e nos colegas internacionais que, a certa altura, percebemos que era possível. Dizemos com algum orgulho que a indemnização à EDP foi a maior jamais paga no mundo para salvar sítios rupestres.

A EDP não se deu por vencida.
A certa altura contratou Robert Bednarik, suposto especialista em datação direta de gravuras. O homem, depois de aplicar o seu método, afirmou, entre outras coisas, que o Homem de Piscos tinha cem anos. Tudo isso foi desmontado por João Zilhão, num congresso de arqueologia em Turim, como uma manobra sem fundamento, de que a EDP estava bem consciente.

Ainda hoje há quem duvide.
Miguel Sousa Tavares continua a dizer que aquelas gravuras não são nada. Que são modernas. Que o lobby dos arqueólogos ganhou ao lobby da EDP. Como se os arqueólogos tivessem um lobby poderoso.

Uma coisa é ir de vez em quando a Foz Coa fazer uns trabalhos, outra é viver ali, isolado, muitas vezes longe dos amigos e da família, durante vinte anos. Há qualquer coisa de monástico nessa decisão, não?
É verdade. Há algo de monástico, só possível devido à importância do projeto.

Solidão?
Alguma.

Como era a sua vida em Foz Coa?
Muito calor. Mais do de quem Braga ou até no Alentejo. Depois, uma casa alugada, muito pouco preparada para clima tão extremo, onde vivi sozinho durante alguns anos, absorvido a estudar a arte do Coa – e outras artes, claro. Mas tive também o outro lado: nesses vinte anos corri meio mundo, da Austrália à Escandinávia, como uma espécie de embaixador do Coa. Dei conferências em todo o lado. Nos últimos anos, já como diretor do Parque, dediquei-me sobretudo à gestão. E à fotografia.

É um fotógrafo reconhecido da arte rupestre.
E todo um ritual. Uma sessão fotográfica começava de véspera pelo estudo da meteorologia, já que a orientação solar e até lunar eram já localmente minhas velhas conhecidas. E quantas vezes abortei sessões fotográficas porque o tempo se alterava. Não porque chovesse – eu até gosto de fotografar à chuva – mas porque as condições não eram as ideais. A luz na região do Coa é muito dura e há que aproveitar os poucos dias em que isso não acontece. As minhas sessões começavam cada vez mais cedo, antes do nascer do sol e depois de ter previamente estudado os locais e saber exatamente o que queria fotografar.

A história da salvação da arte do Coa deixou uma vivíssima impressão por esse mundo, tal o mediatismo que atingiu. Daí os inúmeros convites que ainda hoje tenho. Querem saber quanto custou (e custa) todo este projeto do Coa, sabendo-se a pobreza apregoada do país.

Por esse mundo fora, quais são as perguntas que mais lhe fazem sobre o Coa?
A história da salvação da arte do Coa deixou uma vivíssima impressão por esse mundo, tal o mediatismo que atingiu. Daí os inúmeros convites que ainda hoje tenho. Querem saber quanto custou (e custa) todo este projeto do Coa, sabendo-se a pobreza apregoada do país. E de como foi possível convencer os decisores políticos a pararem uma barragem em avançado estado de construção para se salvarem sítios rupestres. É bom que se recorde que era então primeiro-ministro o atual secretário-geral da ONU, um homem culto e com profundas raízes humanistas. Depois, vêm as perguntas mais arqueológicas e talvez a coisa que mais fascina as audiências: porquê a insistência dos artistas em sobreporem quase obsessivamente as gravuras nos mesmos espaços operativos dos painéis de xisto.

A fotografia começa por ser uma necessidade?
Nos anos dos trabalhos arqueológicos no Tejo, em Vila Velha de Ródão. Na altura não tinha dinheiro mas, mais tarde, com os primeiros marcos que ganhei a trabalhar na Alemanha, fazendo escavações, consegui comprar uma Praktica, uma máquina da RDA toda de aço e sem automatismos. E foi ali que comecei. Depois, nos anos da Peneda-Gerês fiz muita fotografia. No Coa sempre fiz quase todas as fotografias dos meus trabalhos e sempre tive um ponto de honra: privilegiar a apresentação gráfica, quer nos livros quer nas conferências.

António Martinho Baptista
Além do trabalho de proteção e divulgação das gravuras rupestres, o Museu do Coa é um dos mais extraordinários legados de António Martinho Baptista à frente do parque arqueológico.

Ao longo dos vinte anos que esteve ligado ao Coa, houve arrependimentos?
Não me arrependi mas hoje reconheço que a minha ligação a Foz Coa deveria ter terminado com a construção e inauguração do Museu do Coa, em 2010. Os primeiros dez anos, em que fui diretor do CNART (Centro Nacional de Arte Rupestre) foram os melhores que passei em Foz Coa. Os últimos, anos de crise e de uma administração fantasma, não foram fáceis. Mas a importância do projeto justificou o meu empenhamento. A partir de determinada altura senti-me filho da terra.

Alguma frustração?
Bastante. Porque no Coa nunca se sabe onde termina a arqueologia e começa a política, onde se encontram ou onde se misturam. E porque verdadeiramente nunca pertenci à administração, nunca tive real poder no Coa. O meu poder foi o da palavra, nenhum outro. É essa frustração que trago do Coa, salvaguardando, claro, os anos de brasa. Fui um diretor executivo em gestão corrente, sem dinheiro para nada e sempre a mendigar trocos. Os últimos anos foram dramáticos. Passei por duas administrações do museu e Parque, a quem reportava. Tanto uma como outra eram fracas de imaginação, nunca tendo conseguido captar qualquer financiamento que não o do Orçamento do Estado via Fundadores. Cansei-me destas gestões absurdas.

Dez anos bons, dez anos piores. Qual é o balanço?
Positivo. Basta dizer que se salvaram os sítios e isso é o mais importante. Mas também ouvi vezes sem fim aos espanhóis «que pena isto não estar em Espanha». Por isso, é com alguma expetativa que vejo a chegada de uma nova administração. Espero que pegue naquilo a sério, porque até agora foi a brincar. E espero também que se fixe e trabalhe em Foz Coa, porque se assim não for, vai ser mais do mesmo.

Temos o AC e o DC, antes do Coa e depois do Coa. Hoje, a sensibilidade para a arte rupestre é muito maior do que era antes da descoberta das gravuras.

O lugar de presidente da Fundação seria o corolário das duas décadas de Coa?
Ninguém me convidou para presidente da Fundação mas os responsáveis do governo atual perguntaram-me o que gostaria de continuar a fazer pelo Coa, agora que ia reformar-me. Respondi simplesmente: «Façam de mim embaixador do Coa, se é que esse cargo existe ou o que isso possa significar.» Claro que é uma blague e o que interessa é que pugnarei sempre pela valorização do património rupestre do vale do Coa.

A presidência da Fundação estava nas suas expetativas?
Devo dizer-lhe que esteve, já que seria esse o tal corolário lógico do meu longo peregrinar pelo Coa e ao mesmo tempo uma tentativa de ultrapassarmos a frustração da gestão titubeante dos últimos anos. Mas não foi esse o entendimento das tutelas e, como tal, reformei-me.

Reformou-se do Coa institucional, não da arqueologia. Quando é que ela entrou na sua vida?
Desde o primeiro ano do curso de História. Logo percebi que seria esse o caminho.

Nem nesses primeiros tempos teve uma visão romanceada da arqueologia, o fascínio pelos Indiana Jones?
O que mais me fascinava não era o ouro de Tutankamon, os grandes tesouros, mas a descoberta simples que pudesse fundamentar ou infirmar uma teoria. No entanto, reconheço a importância dessa visão romanceada e o caso do Coa é exemplar. Quando em 1994 foram revelados os achados e o então Instituto do Património quis formar uma equipa, confrontou-se com a escassez de investigadores. Naquela altura, em Portugal, quase ninguém estudava arte rupestre pré-histórica. Temos o AC e o DC, antes do Coa e depois do Coa. Hoje, a sensibilidade para a arte rupestre é muito maior do que era antes da descoberta das gravuras. A arte rupestre tornou-se o fenómeno mais mediático da nossa arqueologia.

Sobremediatizada em alguns casos?
É verdade. Qualquer risco que apareça numa rocha, por vezes sem interesse algum, cria imediato sururu. De resto, causa-me algum incómodo esta coisa de hoje qualquer coisa ser logo hipoteticamente considerada património mundial. Está a tornar-se uma praga.

O Coa é uma história interminável, e sinto necessidade de a escrever. É outra obsessão. Tenho muita história para contar.

O que o apaixonou na arte rupestre, que começou por estudar em 1971 no complexo de arte rupestre do vale do Tejo?
Logo no primeiro ano de faculdade, assisti a uma conferência de um catedrático espanhol, em Lisboa, sobre pré-história. Pouco depois, quando colegas meus descobriram as primeiras gravuras no Tejo e procuraram estudantes que quisessem participar nos levantamentos, fui o primeiro a levantar o braço. Posso dizer que nesse momento preciso começou a minha ligação à arte rupestre. Estava no sítio certo, à hora certa.

Pode falar-se em obsessão de uma vida?
Sem dúvida.

Que imagem lhe traz imediatamente à mente a palavra «pré-história»?
Nem dinossauros ou homens das cavernas [risos]. Para mim a pré-história é o paraíso perdido, enquanto comunhão com o mundo natural.

Perante a possibilidade de uma viagem no tempo não hesitava ou preferia ir conhecer o futuro?
Não hesitaria. Só tenho pena de que na pré-história se vivesse pouco tempo. Aos 30 anos era-se velho. Eu já tinha morrido com certeza.

Na arqueologia da pré-história quais são as maiores dificuldades?
A primeira é a destruição do próprio património, por barragens, autoestradas, etc. Outra é a rapidez com que somos obrigados a estudar determinados sítios, sob pena de os vermos desaparecer antes de concluídos os trabalhos.

António Martinho Baptista

As escavações são centrais na vida de um arqueólogo. O que significa para si o trabalho de campo?
Citando André Leroi-Gourhan [arqueólogo e paleontólogo francês], a escavação é como um livro a que se vão rasgando folhas, permitindo que cada página só possa ser lida uma única vez. Portanto, todo o material recolhido numa escavação tem de ser tratado e avaliado com muito cuidado.

Os «cadernos de campo» são parte integrante do romantismo que envolve a escavação. No caso da arte pré-histórica o desenho é fundamental. Guarda muitos?
Tenho dezenas desses cadernos pautados, de merceeiro. Para mim, foi sempre essencial o estudo da gravura e a realização do desenho. O desenho é a repetição do gesto primordial do artista. Não se trata apenas de desenhar para publicar. É também fundamental para perceber o como. E, muitas vezes, do como chega-se ao porquê. Privilegiei sempre na fase do trabalho de campo, a reconstituição do gesto. Entre outras notas arqueológicas.

Notas pessoais, também?
São cadernos onde se escreve tudo – desde o amor do momento à paixão pelo campo, à fauna que se avista, enfim, trata-se de uma espécie de diário. Notas que servirão de ajuda quando um dia escrever as minhas memórias. Tenho a obrigação de contar uma história destas. O Coa foi muito importante na arqueologia portuguesa e o meu papel, tenho de reconhecer, teve uma relativa importância. Não se trata de dar apenas o meu testemunho científico. O Coa é uma história interminável, e sinto necessidade de a escrever. É outra obsessão. Tenho muita história para contar.

Por exemplo?
Desde o «rapto» da delegação da UNESCO que ia a caminho do aeroporto, a mando de Mário Soares, para que explicassem ao Presidente, de viva voz, o que era o Coa, à brincadeira com o secretário de Estado da Cultura, Manuel Frexes, gozado pelas crianças foz-coenses que lhe ofereceram uma placa com uns riscos em resposta ao comentário do senhor perante as gravuras: «Isto são riscos. É por isto, que não se vai fazer uma barragem?». Pequenas histórias do ano de 1995, que tantas vezes contribuem para melhor aclarar a história.

A tentativa de falsificação é facilmente desmontável. A pintura em gruta, então, é muito fácil porque os pigmentos e o envelhecimento dos motivos não são fáceis de imitar.

E há a história destes artistas. Quem eram, porque pintavam/gravavam murais?
Na arqueologia, o porquê é o ponto que gera maior discussão. Para uns, a simbólica rupestre é quase toda religiosa. Eu não a considero assim. O Homo religiosus faz parte, sim senhor, mas a explicação para a simbologia rupestre é isso e muito mais. Desde logo, a sua ligação ao território, uma matéria própria à chamada arqueologia da paisagem, tão cara ao fenómeno rupestre.

Estamos a falar de artistas ou de homens comuns? E onde aprendiam?
Muita da simbólica rupestre do Coa é gravada por mestres na arte do desenho, já que temos ali autênticas obras-primas. É no entanto uma simbólica muito estereotipada. As mãos que produziram aquela simbólica sabiam o que estavam a fazer. No Coa, praticamente não temos esboços. Aquelas gravuras foram feitas por mão certeira. Onde aprendiam? Na terra, na madeira na pele? Muita da produção simbólica pré-histórica não se conservou. A que se conserva é apenas uma ínfima parte da que foi produzida.

Um investigador desta área sabe que a ignorância será sempre superior ao que se sabe. Como se lida com isso?
Mas isso mesmo é um forte incentivo à sede de conhecimento, da qual nunca estaremos saciados. Há descobertas marcantes que podem fundamentar, ou não, as hipóteses que vamos pondo. No caso do Coa, tem sido possível isso.

Que mistérios indecifráveis há nas gravuras do Coa?
Não há na arte do Coa cenas do quotidiano nem uma verdadeira aliança entre o humano e o animal. Também não há representação de solo, os animais são figurados como vogando num espaço etéreo, muito idealizado. Nem de solo nem de árvores – os animais são como que atirados para as rochas, mas em espaços operativos previamente delimitados, claro. Agora, que estão associados entre eles, isso estão. E essa associação é o principal enigma da arte do Coa. Porque um cavalo no paleolítico representa um cavalo e muito mais do que isso e o interessante está aí. O que representa um cavalo para lá de um cavalo: uma figura totémica, uma figura étnica ou de clã, uma figura que assinala um território ou um episódio de caça, como em muita da arte rupestre aborígene? O que para mim foi muito claro desde que comecei a estudar a arte do Coa é que ela era um dos aspetos fundamentais de uma paisagem monumentalizada no Baixo Coa, que assim se constituía como um território de agregação de diferentes clãs paleolíticos provavelmente disseminados por uma região bastante mais vasta a ocidente da Meseta.

Há pouco contava que ao olhar para os desenhos das gravuras identificou imediatamente arte paleolítica. Como se consegue ter tanta certeza na datação a olho nu?
É como chegarmos a um museu, vermos lado a lado uma pintura do Miró e outra do Leonardo da Vinci e dizer que uma é do século XVI e a outra do século XX. No paleolítico, o estilo conta muito e é muito revelador. Associado aos conhecimentos carreados por mais de um século de arqueologia rupestre, pelo menos desde a descoberta de Altamira [Espanha], no último quartel do século XIX.

Podia tratar-se de uma imitação, de uma fraude.
Podia, sim. E há gravuras e pinturas falsas em gruta. Por isso, para atribuir uma primeira cronologia, é fundamental ter um conhecimento profundo da arte pré-histórica. O estilo é o primeiro indicador. Só depois entra em cena o apoio das ciências auxiliares da arqueologia. No caso do Coa, a prova evidente de que se trata do paleolítico foi posteriormente fornecida pelas escavações, quando se encontraram gravuras sobrepostas por estratos paleolíticos bem datados por carbono 14 ou por termoluminescência. Essa é a prova definitiva de que a datação que inicialmente demos, em função do estilo e da associação de gravuras entre si, estava correta.

É fácil detetar uma fraude?
A tentativa de falsificação é facilmente desmontável. A pintura em gruta, então, é muito fácil porque os pigmentos e o envelhecimento dos motivos não são fáceis de imitar. Em certas pinturas foram até encontrados restos de pincéis modernos.

É impossível vigiar permanentemente todas as rochas do Coa (e Alto Douro), mais de mil rochas gravadas. Mas é possível preservar, vigiando as principais.

Há especificidades na arte rupestre do Coa?
Em primeiro lugar, a quantidade. Uma vez que estão sempre a descobrir-se novas gravuras, e os sítios nunca foram completamente estudados, nunca se fez uma contagem. No entanto, calculo que haverá entre cinco e dez mil gravuras paleolíticas, o que faz do Coa o maior conjunto mundial de arte paleolítica ao ar livre. Em segundo lugar, a qualidade: de uma maneira geral, a qualidade estética da arte do Coa é sublime. Por último, a dispersão: trata-se de uma área muito vasta, um pouco mais de 17 quilómetros, abrangendo também algumas ribeiras afluentes e o próprio Douro. Hoje, a periodização cronológica demonstra que a arte do Coa se alonga por um período de 15 mil anos. Isto é único no mundo. Podemos dizer que temos o sumo do que de bom se produziu artisticamente no paleolítico superior europeu ao ar livre.

A preservação desse património é um dos maiores desafios. Como é possível guardar tão vastos sítios com gravuras?
É impossível vigiar permanentemente todas as rochas do Coa (e Alto Douro), mais de mil rochas gravadas. Mas é possível preservar, vigiando as principais. Mas defendo até aquilo que alguns consideram ser uma heresia, ou seja, que se façam réplicas de pelo menos três ou quatro rochas das mais importantes e ameaçadas, que se coloquem no campo e se levem os originais para o museu. Dou o exemplo da rocha 3 da Quinta da Barca, uma rocha que está a ser degradada pelas raízes e pela própria dinâmica da sua situação de jazida, uma situação preocupante, tanto mais que está num sítio não vigiado. É possível que um dia essa rocha seja vandalizada. Também a preciosa rocha 24 da foz da Ribeira de Piscos, com algumas das mais esbeltas gravuras do Magdalenense, está em processo de desagregação e carece de intervenção urgente. Aqui a conservação deve ser feita in loco. Portanto, cada caso é um caso.

Depois, há o vandalismo. É o maior pesadelo de um conservador?
Sem dúvida. Sobretudo sobre rochas com a qualidade da que foi vandalizada. O famoso Homem de Piscos é das mais importantes do Coa porque tem um dos raríssimos humanos paleolíticos gravados e é aliás o mais conhecido da arte do Coa. Suportar esse pesadelo não é brincadeira.

No final de abril, o Homem de Priscos, uma das mais importantes gravuras do vale do Côa, com cerca de 15 mil anos, foi vandalizada, com o desenho de uma bicicleta e de uma figura humana. Os danos são irreparáveis.

Foi encontrada uma explicação para o vandalismo?
Naquele caso, a conclusão linear é que foi por pura ignorância, mas a justiça apurará qual terá sido a motivação. No início do Parque Arqueológico, ainda podia pensar– se que eram atos praticados por defensores da barragem. Agora não creio. Tratou-se talvez de pura ignorância.

Equivalente, por exemplo, a rasgar-se a Gioconda?
Talvez seja um pouco exagerado mas para os arqueólogos anda lá perto.

Há registo das gravuras?
As principais rochas estão inventariadas e registadas em fotografia e desenho. E temos meia dúzia de réplicas, as que estão no museu. Optámos desde o início por não fazer réplicas das gravuras, por duas razões: uma política – a EDP poderia pensar que fazendo réplicas poder-se-ia construir a barragem – e a outra museológica – quisemos criar um discurso museológico que fizesse sentido e levasse o visitante também ao campo, para ver os originais.

Recentemente, houve quem afirmasse que o Coa podia entrar para a lista do património mundial em risco. Concorda?
Penso que se trata de uma boutade dita no Parlamento, mais em jeito de alerta do que como uma certeza. Assisti a esse debate e pareceu-me um excesso de linguagem. O Coa não está de maneira alguma ameaçado porque se retirou a guardaria de Piscos – e que um dia destes será reposta ou então o sítio será vedado como esteve logo após a sua descoberta, no tempo da EDP.

Desde criança, o dinheiro que me davam ia para livros. Era uma paixão irresistível. Enquanto amigos meus brincavam, eu lia.

Repartiu igualmente a vida profissional pelo Parque Nacional Peneda-Gerês e pelo Parque Arqueológico do Vale do Coa. Vinte anos para cada lado. Agora, vai voltar à paixão, a Peneda-Gerês?
Vou voltar à Peneda-Gerês, não ao parque em termos institucionais, mas através de numa série de trabalhos que deixei pendurados nos idos de 95. E tenciono voltar àquela que é a minha paixão primeva: a arte atlântica, uma arte abstrato-simbólica sobre granitos, típica da pré-história recente do NW peninsular e que permanece muito mal conhecida.

Interessa-se por História, Literatura, Música, Artes. Como e quando nasce no miúdo de Alter do Chão, habituado a brincar na rua e na padaria dos pais, essa curiosidade intelectual?
Sempre tive uma enorme curiosidade intelectual. As minhas casas sempre tiveram milhares de livros. Muitos entretanto fui oferecendo-os. Já ofereci ao Museu do Coa um pequeno acervo da minha biblioteca. Desde criança, o dinheiro que me davam ia para livros. Era uma paixão irresistível. Enquanto amigos meus brincavam, eu lia. Sobretudo romances e livros de História, muita História.

Muita História depois, que marca gostava de deixar no Coa? Aceita que o designem por «o senhor arte rupestre português»?
Pode parecer excessivo concordar mas se calhar é um bocadinho isso. Aceito. É uma coisa bonita.

António Martinho Baptista, com o ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, numa visita às gravuras do vale do Coa, no final de junho, no dia em que o novo Conselho Diretivo da Fundação Coa Parque, presidido por Bruno Navarro, à direita, tomou posse.

«NÃO HÁ DINHEIRO NEM ESTRATÉGIA»

Um dos desafios de Foz Côa é o desenvolvimento da vertente turística. Um complexo patrimonial como o do Côa pode ter como alvo o turismo de massas?
Não sou adepto de um turismo de massas no vale do Coa. De maneira nenhuma. Podemos ter mais visitantes? Podemos. Mas os sítios onde estão os originais têm de ter um turismo altamente condicionado.

Quantos visitantes por ano?
Aos sítios propriamente ditos, vão cerca de sete mil pessoas por ano. Podem ter mais uns milhares de visitantes. Mas nunca serão sítios que possam ter muito mais gente do que isso. Tanto mais que terão sempre de ser visitados por grupos com guias devidamente licenciadas e quanto a isso não há volta a dar. Com o museu é diferente. Ao Museu do Côa vão entre trinta e quarenta mil visitantes por ano. E aqui os números podem até triplicar.

Tem havido aposta no marketing?
Zero, ao contrário do que acontece em Espanha e França. Nunca houve coragem de criar um departamento de comunicação e marketing, uma falha inadmissível na Fundação. Os meus alertas sempre caíram em saco roto. O Coa, que é conhecido em todo o mundo, nunca teve marketing nem promoção alguma própria e muito menos desde a construção do museu. A promoção é feita pelos próprios visitantes e por alguns jornalistas – e agora, claro, através das redes sociais. Falta dinheiro e estratégia concertada. A própria região tem ainda poucas estruturas de acolhimento e restauração e estas coisas andam sempre ligadas. Também é importante fazer a ligação às aldeias históricas. Os próprios barcos que, no Douro, passam em frente do museu, só recentemente, e ainda poucos, começaram a incluir o museu na sua oferta turística.

O turismo é sobretudo nacional ou de estrangeiros?
Bastantes estrangeiros, porque o Coa teve eco e esteve na primeira página de jornais de todo o mundo e é Património Mundial há quase vinte anos. Mas maioritariamente é nacional.

António Martinho Baptista

«HÁ ARTISTAS NO COA QUE SÃO MUITO ALMADA»

Como olha um especialista em arte rupestre para a arte contemporânea?
Durante a minha gestão no Coa, a maior parte das exposições que passaram no museu foram de arte contemporânea, que é a sequencia lógica da arte pré-histórica. Há um continuum entre as artes da pré-história e as artes do nosso tempo. E não é preciso irmos ao Picasso e a outros artistas do século XX, marcadamente influenciados pelas chamadas artes primitivas, para detetarmos a grande influência dos mundos rupestres. Temos gente nossa, a começar por Júlio Pomar, que se maravilha com os artistas do Côa. No Côa estão os antepassados na arte do desenho de alguns dos nossos grandes artistas nomeadamente daquele que é o meu artista de referência do século XX, Almada Negreiros. Encontro a singularidade e linearidade daquele traço nos artistas do Coa. Ou, se quisermos, há artistas no Coa que são muito Almada.

Ser pré-historiador trouxe-lhe algum otimismo quanto ao destino da espécie?
Não sou muito crente na natureza humana. Sou um otimista desconfiado, já vi tanta coisa. Mas de certa maneira, sim, dá. Acho que o homem não se vai extinguir no cogumelo atómico.

Aquela beleza reconcilia?
Por isso lhe falei do paraíso perdido.

O que o preocupa nos dias de hoje?
O ponto a que cresceram os muros, por todo o mundo. Tenho em casa um fragmento do muro de Berlim que eu pensava que era vestígio de um dos últimos muros. Mas afinal a história repete-se, agora como uma interminável comédia.

E a pré-História, pode repetir-se?
Poderá, poderá. A evolução humana é tão imprevisível que não sei qual será o nosso futuro. Li há uns anos um livro de um astrónomo inglês em que a humanidade, levada ao absurdo tecnológico, regressa ao paleolítico. E recomeça tudo. Talvez voltemos assim ao tal paraíso perdido, que está aliás muito presente nas mitologias religiosas da criação do mundo.