André Jordan: «Devia ter mais respeito pelo dinheiro»

Entrevista de vida a André Jordan

Em 1939, com 6 anos, abandonou a Polónia rumo ao Brasil para escapar ao pesadelo nazi. A família abastada de origem judaica de Andrzej (a mãe sempre o chamou pelo nome polaco) adaptou-se bem ao novo país. Foi solteiro rico e cobiçado no Rio de Janeiro, estudou nos EUA, prosperou no Algarve. Chegou a Portugal no início dos anos 70 para criar a Quinta do lado, perdeu-a em 1975, recuperou-a em 1981. Aos 83 anos mantém a lucidez intacta, a racionalidade na dose certa e a emoção à flor da pele.

Aos 83 anos, de que é que não prescinde de fazer todos os dias?
De rezar. Sou polirreligioso. Nasci judeu, fui educado no catolicismo – ainda no primário fiquei militante fervoroso. O que me fascina nas duas religiões são os valores. Que são os mesmos, Cristo era judeu. As regras, essas, são política, nada tem que ver com Deus.

Há cinco anos, a gestão operacional ficou a cargo do filho mais velho, Gilberto. O que é que ainda não delega?
Quando a certeza que tenho de algo me vem da experiência não delego. Há coisas que eu sei porque já as vivi. Tenho enorme apreço e gratidão pelas ideias dos outros – basicamente, sempre roubei ideias –, mas quando tenho a certeza, tenho. Quem ainda não viveu, por vezes não consegue perceber. É muito cansativo ter de me impor ou discutir, mas por vezes é preciso. A estratégia, o marketing, a conceção, a promoção e a publicidade continuam a meu cargo em conjunto com ele. Tenho 60 e tantos anos disso.

É uma das vantagens de envelhecer, a sabedoria da experiência. Há outras?
Há sobretudo desvantagens. As desvantagens óbvias da saúde e da condição física, mas o importante é estar mentalmente são. Estou sempre inventando e arranjando problemas, por isso a maioria dos meus dias é muito interessante.

Vive sozinho em Lisboa. É um solitário?
Gosto muito do silêncio e da solidão, sabendo que posso sair dela. Vejo um pouco de televisão mas poucos filmes, cinema para mim é coisa grande. Vejo os debates políticos em geral mas são cansativos e repetitivos. A minha mãe, pessoa original, no advento da televisão, vivia em França e só ouvia rádio. Um dia perguntei-lhe se não gostaria de ter uma televisão para poder ver De Gaulle, de quem era fã. «Ele não me convida para casa dele, eu não o convido para a minha», respondeu. Com os políticos, faço um pouco o mesmo. Leio e analiso muita informação. Jornais, revistas, publicações. Vejo algumas coisas na internet.

A música tem um papel especial nesses momentos solitários?
A música é algo de maravilhoso na minha vida. Nos anos da Segunda Guerra Mundial, havia no Rio muitos músicos polacos exilados que faziam concertos de música clássica a que a minha mãe me levava. Aos 14 anos, vivia nos EUA, cruzei-me com o swing e com o jazz e foi uma fase muito intensa. Aos 17, de regresso ao Brasil, descobri a bossa nova e a escola de samba. A elite da zona sul sabia muito vagamente das escolas de samba. Era uma coisa distante. Um dia, fui até lá com um amigo e fiquei doido.

Foi no dia em que conheceu Zé Keti?
Exatamente. Acabámos por ficar amigos e irmãos. O Zé Ketinho ficaria famoso mais tarde. As escolas de samba são o maior movimento musical social do mundo.

Uma vida tão cheia – fugas, amores e desamores, desaires e enormes sucessos profissionais, tantas histórias, tantos interesses. Relembra muito?
O meu horário de recordar é de madrugada. Como todos os velhos, acordo muito cedo. Entre as quatro, nos piores dias, e as seis, nos melhores. Nesta noite, por exemplo, dormi duas horas. Então, as madrugadas são as horas egocêntricas. É quando penso em mim próprio, no que fiz, nos amores…

O que o comove nessas lembranças?
A minha família saiu da Polónia eu tinha 6 anos. Ao contrário dos meus pais, que eram patriotas polacos, risquei a Polónia. Nunca quis ir lá. Há dois anos, estava a almoçar no Gigi, na Quinta do Lago, e reparo que na mesa do lado está Lech Walesa. Fui ter com ele, falei-lhe em polaco e ele ficou muito intrigado comigo. Passados apenas uns dias, recebi do embaixador da Polónia um convite para visitar o país. Finalmente decidi-me e levei os meus três filhos homens e a minha irmã, que vive no Brasil. Uma visita interessante e traumática. A Auschwitz não fui. Conheço muitos sobreviventes, conheço as histórias e os relatos. Sou um cardíaco e preferi não ir. Foram os meus filhos. Vinha isto a propósito do que me comove.

As saudades tornam real a felicidade, dizem. De que tem saudades?
Vivo a vida muito por inteiro. O passado é a minha vida. Se me lembro de algo esse algo é presente. Tenho muita pena de já não poder falar com algumas pessoas. Por vezes, nesses momentos de retrospetivas, rio dos meus erros e das ingenuidades.

É um contador de histórias…
Contar histórias é uma caraterística judaica. E tenho para várias ocasiões. No trabalho conto-as para ilustrar uma situação. São, em regra, histórias com graça. As que conto aos netos são educacionais. As memórias têm-me feito descobrir com décadas de atraso as razões que fizeram algumas coisas acontecer. Como tenho fé no ser humano nem sempre percebo na hora o que se passa.

Como é a relação com os oito netos?
Gosto de falar com eles como gente e não como crianças. Com os filhos foi um pouco diferente. Devido a divórcios e separações, surgiram por vezes alguns problemas de comunicação. Mas de uma maneira geral, nos últimos, anos, tenho procurado manter a família unida. E com sucesso.

Como era a relação com os pais?
A minha mãe era de Varsóvia, estudou na universidade e era uma mulher original. O meu pai, genial e complicado, estava sempre em guerra com alguém. Só conhecendo a infância e a juventude dos nossos pais os poderíamos compreender completamente. Devo à minha mãe o interesse pela arte e pela literatura e ao meu pai o conhecimento do mundo dos negócios e da política.

Tem casa em Lisboa, em Washington, no Rio de Janeiro. Andou pelo mundo, viveu em vários países. Onde é o «lar»?
Já tive dezenas de casas. A minha ligação é com pessoas não com prédios, objetos, coleções. A minha ligação é com a comunidade. Esse é o meu país.

Disse numa entrevista que o Brasil é a pátria da juventude, Portugal a da maturidade. Pode amar-se um país onde não se tem amigos de infância?
É verdade isso que diz. Eu sou aceite em Portugal, muito bem aceite até, mas não sou um dos vossos precisamente porque não tenho aqui amigos de infância. Falta-me em Portugal a convivência da fase acrítica da relação. Sabe, a minha mãe foi cremada e está aqui em Lisboa numa caixinha. O meu pai está no Cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro, que deve ser um dos mais feios do mundo. Há uns tempos comecei a pensar no assunto e conclui que não quero ser cremado nem quero ir para o São João Batista. Quero ir para um lugar que tenha que ver comigo. E escolhi o Cemitério de São Lourenço, em Almancil. Almancil tem uma pequena igreja, das mais bonitas de Portugal, e o cemitério, sendo feio, está ali, no lugar onde passei metade da minha vida. Devo dizer que à decisão seguiu-se uma odisseia burocrática de cinco anos para conseguir o jazigo e a aprovação do projeto mas está uma obra bonita. Muito simples e sóbria.

Lida bem com a finitude?
Estou sempre a brincar a respeito da morte. Já perdi gente suficiente para saber que ela existe mesmo. Estou preparado.

Nas deambulações pelos lugares e as pessoas que tem conhecido, encontra mágoas?
Se há mágoas – e há sempre – luto contra elas. Luto contra os ressentimentos. Creio que a minha vida provou que fui capaz de superar os problemas e as deceções. O meu pai, apesar de superiormente inteligente e muito sofisticado, foi um homem complexo e muito difícil e um dos complexos dele era a mania da perseguição. Eu não sou assim.

Os tempos não estão para grande fé na humanidade. Para onde caminha a civilização? O que mais o inquieta?
O otimismo leva-nos a acreditar que acabaremos superando as dificuldades. Mas há nesta equação elementos novos. Um dos mais complexos é a tecnologia. E a tecnologia tem como objetivo eliminar o homem e a interação humana, privilegia as mentes mais bem preparadas. Ora isso é assustador. De cada vez que surge uma nova aplicação para iPad ou iPhone são mais empregos que desaparecem. Todos conhecemos pessoas relativamente jovens, com família, preparadas, que perderam o emprego e não arranjam outro. Ora, a sociedade vai ter de encontrar uma solução para o desemprego de longa duração.

Sempre se disse social-democrata. Como vive estes anos de deriva neoliberal?
Com muita inquietação e irritação. A força do egoísmo primário sobre o raciocínio é impressionante. Estudei nos Estados Unidos numa altura em que Roosevelt já tinha morrido mas toda a minha filosofia política vem dele e do New Deal, da justiça social e da regulamentação do capitalismo. Modéstia à parte, quando Reagan introduziu a liberalização financeira, vi logo que seria um desastre. A direita estava eufórica. Finalmente, ia poder fazer o que lhe apetecia. Depois, um moleque financeiro estudou uma fórmula que deu no subprime. Mas apesar de sabermos onde esteve o erro não se conseguiu impor a regulamentação.

Chamou a Lula «Mandela brasileiro». Muito desiludido?
Há 15 dias visitei em São Paulo o presidente Fernando Henrique Cardoso e cheguei à conclusão de que, tal como eu, também ele acreditou em Lula. E também ele está perplexo. O meu entusiasmo por Lula veio do facto de um verdadeiro homem do povo chegar a liderar a nação. O Lula teve todas as oportunidades mas faltou-lhe a cultura. Ficou vulnerável.

Escreve num dos seus livros: «Oficialmente velho porém inconformado».
Sempre. Não há sensação mais fantástica do que criar uma obra.

«A falta de dinheiro faz uma pessoa infeliz mas o dinheiro não faz uma pessoa feliz.» É mesmo assim?
Exatamente assim.

Tem tido muitos dias felizes ao longo da vida?
Fiz a Quinta do Lago sem dinheiro. E toda a vez que vou lá penso nisso. Quando a vendi disse-me um amigo: «Finalmente pode permitir-se a vida que sempre levou.» E foi assim.

Que relação tem com o dinheiro?
Devia ter mais respeito pelo dinheiro.

Em que gosta de o usar?
Vivo muito bem, com muito conforto, cuido da minha família e de muitas outras pessoas. Não gosto da palavra caridade. Prefiro dizer ajuda. Um gesto de apoio pode dar esperança a uma pessoa para ultrapassar uma situação grave. Fui dececionado algumas vezes mas não muitas.

O que entende por luxo?
A vida que eu vivo é um luxo. Vivo com muito conforto, viajo com muito conforto, fico em bons hotéis.

Vê a vida com sentido de humor, dizem. E a si próprio?
Aí é quando eu rio mais. Mas nem sempre conto.

Uma vida com muitas adversidades. Como reage perante o que corre mal?
Sou um pouco ingénuo. Quando a guerra acabou, o meu pai levou para o Brasil todos os sobreviventes da nossa família, infelizmente não eram muitos – sete, ao todo. Uma delas era uma tia minha, um terror. Eu, então com 13 anos, costumava dizer que ela só sobreviveu porque os nazis tiveram seguramente medo dela. Volta e meia, um desses sobreviventes que foram morar para São Paulo entrava em contacto comigo. Recentemente, marcámos um jantar no Brasil. Ele fez questão de contar todas as histórias do Holocausto, as mais horríveis e deprimentes.

Como castigo por ter escapado?
Senti isso. Foi para me castigar. Sabe, há uns anos, vésperas da final do Campeonato do Mundo de Futebol, quando a embaixatriz alemã em Londres me disse que preferia a derrota da Alemanha porque na vitória os alemães ficam muito arrogantes, respondi-lhe: «Perdoem-se que eu já vos perdoei.»

Hitler tem perdão?
Hitler, bom, não consigo pensar nele como um ser humano. Não consigo. Devia ter sido eliminado.

Saiu da Polónia em 1939, na véspera da invasão alemã. Pensa muitas vezes que podia não se ter salvado?
Em 1939, a minha mãe e o meu pai eram muito jovens. A minha família vivia muito bem, o meu pai era já muito bem-sucedido [negócios de petróleo]. Nas semanas anteriores à invasão alemã, os aviões passavam por cima das árvores. Lembro-me bem deles e de irmos para os porões dos abrigos antiaéreos. Na noite do último dia de agosto, ou do penúltimo, no abrigo, um homem acabado de chegar da fronteira com a Alemanha disse que vira os tanques alemães prestes a entrar na Polónia. Nesse momento a minha mãe decidiu que sairíamos do país no dia seguinte. E o meu pai, contrariado, acatou.

Tinha 6 anos. Iria deixar a escola e os amigos. Tinha consciência do que implicava aquele momento?
Não tinha consciência alguma. Lembro-me de que fomos para a fronteira com a Roménia e que iam uns primos connosco. Mais nada.

O que levava na mala? Um brinquedo, um livro?
Acho que não levei nada.

Que recorda da viagem?
O meu pai era maçon e no trajeto, até na curta passagem por Lisboa, sempre foi apoiado por maçons. Em Bucareste, fomos para casa de um amigo ligado à maçonaria.

Como era o miúdo que chegou ao Brasil?
Queria ser brasileiro. Não queria ser branco, queria jogar futebol, fazer ritmo com a caixa de fósforos e brincar com os meninos brasileiros. Não foi difícil. Depois de um ano no Brasil, o meu pai já tinha criado a empresa que foi uma das pioneiras do imobiliário e já estávamos integrados na sociedade do Rio de Janeiro – naquela altura uma sociedade muito fina, muito distinta, tradicionalista. Nem a língua foi obstáculo. Os eslavos têm muita facilidade em aprender línguas.

Clima complicado para uma família eslava.
A minha mãe era muito branca e muito ruiva, tinha alergia ao sol. Tomava banho de mar apenas quando chovia. «Andrzej, põe o calção, vamos à praia.» Íamos de fato de banho e guarda-chuva e, na rua, os miúdos gozavam comigo.

Falou sempre com a mãe em polaco?
Sim.

Que recorda desse Brasil?
Um país completamente parado, extraordinariamente pouco desenvolvido. Com uma elite pequena e culta. O Rio de Janeiro era capital [Brasília só se tornou capital em 1960], as pessoas mais marcantes eram da vida pública – juízes, professores, grandes médicos e altos funcionários.

Já violento?
Sabe, lidando com o brasileiro é difícil acreditar que tenha vontade de matar alguém. Há uns anos, dei a um menino carenciado que arrumava carros na discoteca mais chique do Rio uma nota alta. Passado umas semanas, de volta à discoteca, o menino vem ter comigo e entrega-me a nota. «A minha mãe diz que o senhor se enganou e manda devolver». Gente séria.

Até que medida o divórcio dos pais mudou a sua vida?
O divórcio teve impacto pelo sofrimento que causou à minha mãe. O meu pai tinha muito respeito e culpa em relação à minha mãe, mas era um sedutor e um homem de aventuras. Fui viver com a minha mãe nos EUA. Os Estados Unidos tiveram uma influência enorme na minha vida profissional e cultural. Li todos os americanos, todos os russos, todos os franceses, todos os ingleses, todos os portugueses e todos os brasileiros. Só não li todos os alemães.

O apreço pela democracia e pela liberdades individuais foram consolidados nos Estados Unidos, quando adolescente?
Aqueles EUA tiveram esse papel. Tal como teve um papel o padre Agostinho, um italiano, que costumava conversar comigo no recreio, quando me expulsavam da aula, no primeiro ano primário, por fazer bagunça. A mesma coisa aconteceu com os livros do Jorge Amado em relação à pobreza no Brasil. Pobre tinha o lugar de pobre e não sabia que era pobre. Ou melhor, sabia mas achava que era assim mesmo. Mais tarde, na Bahia, conheci Jorge Amado, um homem adorável, e ficámos amigos.

Quais são os livros da sua vida?
O primeiro foi Anna Karenina [Tolstoi], ainda criança. Aos 11 anos peguei naquele livro e fiquei fascinado. Quando cheguei ao fim, estava tão baralhado com tantas personagens que voltei a ler tudo outra vez. Antes disso, já tinha lido Monteiro Lobato. Tive a minha fase de Scott Fitzgerald, que foi uma grande influência, e de nós todos sofredores do amor. Marcou a minha geração.

Um tímido sofredor de amor?
Muito tímido, naturalmente. Quando três anos mais tarde regressei ao Rio, fui morar com o meu pai no Copacabana Palace e aí as coisas alteraram-se um pouco. Aos 17 anos passei a fazer vida de rua como se tivesse 25. Só não saía ao sábado porque o sábado era para os amadores. Pensei: «Essa vida que estou fazendo não é compatível com ser tímido, vou deixar de ser.»

Leia a continuação da entrevista ao empresário André Jordan:
«Perdoo mas não esqueço»