Ana Bacalhau: «A música resgatou­‑me aos meus demónios»

Entrevista de Alexandra Tavares­‑Teles | Fotografias de Jorge Simão

Pequena, bonita, movimentos largos, gargalhadas abertas. A entoação da voz acompanha­‑lhe a expressividade do rosto – no espanto, na hesitação, na certeza. A entrevista foi marcada para as quatro da tarde. Em casa dela. Uma sala de estar luminosa. Na cozinha, a filha, bebé de 6 meses, experimenta uma papa nova pela mão do pai. Estará a gostar? Ana quer estar lá, mas nem perante a nossa insistência interrompe a conversa. Duas horas em que fala dela, das suas múltiplas declinações. Da música. Do apaziguamento e dos demónios, das sombras e da luz. Da família. Com bom­ humor, lucidez e honestidade.

Este álbum, o primeiro a solo, resultou de uma «tentativa de saber quem sou quando faço música em nome próprio». Nessa psicanálise, quem descobriu?
Desde logo, descobri­‑me capaz de ultrapassar o desafio maior que me coloquei ­– apresentar uma proposta só em meu nome. Depois, descobri­‑me capaz de encontrar um fio condutor para os meus mundos sonoros, as minhas influências muito variadas, vão desde o soul ou do folk americana à nossa tradição e à pop. Até há algum tempo não sabia como casar as tantas noites de verão que passei na aldeia da minha avó em ambiente rural e as festas de verão com a urbanidade de Lisboa e da cidade grande. Finalmente, encontrei. Este disco é a minha impressão digital.

Que impressão digital?
Para mim era muito importante que este disco mostrasse as minhas várias faces. Por isso, a capa e o trabalho gráfico dizem logo do que se trata. De todas as minhas facetas – e tenho muitas. A que as pes­soas mais conhecem é a que é mostrada nos Deo­linda. A castiça, brincalhona, com um sorriso na cara, a Ana que veste as histórias alheias e as entrega às pessoas. Neste disco quis mostrar que também existe a Ana que está no seu mundo, no seu quarto, no seu interior, a Ana sonhadora, cabeça de vento, mais romântica, se calhar até mais feminina. E sou a Ana lunar, que não sorri assim tanto, melancólica, falsa extrovertida, que recarrego baterias na gruta, apenas com os mais próximos, ou então só comigo. A Ana…

Triste, deprimida?
Também. A Ana que está a olhar para trás na vida e que agora o faz com naturalidade.

Porquê agora?
Porque estou mais madura. Chegou só depois de uns aninhos de muita estrada, com os Deolinda.

«Ainda tenho muitas inseguranças, o que também não é mau. São a minha matéria­‑prima, é a elas que me agarro para avançar no meu trabalho. As zonas confortáveis deixam­‑me nervosa.»

Maturidade significa segurança, é isso?
Sim, ganhei alguma e fez­‑me bem. Oooh, mas ainda tenho muitas, o que também não é mau. As inseguranças são a minha matéria­‑prima, é a elas que me agarro para avançar no meu trabalho. As zonas confortáveis deixam­‑me nervosa. Estou bem é no caminho, na jornada. E chegada ao destino não me demoro lá muito.

«Ando à procura, é o que sei fazer e se me encontro torno a baralhar», canta no tema Só Querer Buscar. É isso?
O Samuel Úria topou­‑me bem [gargalhada].

Tinha, disse, muita curiosidade da leitura que os autores convidados para este disco fazem de si. Gostou do que leu?
A leitura é certeira e isso deixa­‑me feliz como pessoa e artista [risos]. Percebi que sou transparente. Tenho, é claro, o meu cantinho próprio a quem ninguém acede, ninguém, só eu, porque isso é importante, ter um espaço fechado a sete chaves. Mas – e essa foi também uma motivação para este disco – se morresse amanhã morria descansada. Deixava um legado pessoal e público que me faz feliz. O trabalho que fiz com os Deolinda, até o que fiz com os Lupanar, a minha primeira banda, e agora este disco, representa­‑me bem.

Presumo então que três letras que assina sejam autobiográficas.
São.

«A adolescência foi terreno fértil para os meus demónios. Eu era uma miúda gorda e tinha este apelido. A maior parte das minhas lágrimas veio daí, de uma violência que comecei a sentir na primária.»

«Eu queria que esta solidão me largasse um dia», «Eu hei­ de curar esta maldita ferida com uma canção», diz em Deixo­‑me Ir. De que dor a salvou a música?
A música transformou essa dor, essa solidão, em algo positivo. Tenho perfeita consciência de que na adolescência podia ter resvalado para o lado do mal. Podia lá ter entrado e feito algumas coisas não muito boas. A música resgatou­‑me aos meus demónios.

A adolescência é sempre um terreno fértil para os demónios.
Para mim mais ainda, miúda gorda e com este apelido. A maior parte das minhas lágrimas veio daí, dessa violência que comecei a sentir na primária. O grupo das meninas giras, liderado por uma particularmente bonita, loira de olhos azuis, fez­‑me sofrer bastante. Passei da miúda contente e amistosa a uma miúda cheia de medos, medo de atender o telefone, medo de perguntar quem é quando batiam à porta, medo de pedir uma borracha emprestada. Uma miúda que queria ser invisível, por não saber como defender­‑se. Agora olho para mim e penso «eras mesmo parva».

O lado do mal é uma expressão forte.
O lado da tristeza profunda. As drogas, por exemplo, nunca me tentaram. Nunca experimentei. As pessoas não vão acreditar nisto mas, verdadinha, nunca apanhei uma bebedeira. E porquê? Porque a música me deu o êxtase de que precisava. Com a música perco­‑me. Com a música deixo para trás as coisas que me fazem mal. Ou então canto­‑as, deito­‑as cá para fora, entrego­‑as a quem estava ouvir-me e fico mais leve. É uma sublimação para as sombras.

Que depois voltam?
É aquela coisa do papel amarrotado, por mais que se estique ficam os vincos.

«Os meus pais eram despachantes oficiais e em 1992 ficaram no desemprego. Os dois, ao mesmo tempo. Falar­‑lhes de música era espetar­‑lhes facas. Portanto, tal como eles queriam, licenciei­‑me.»

Criança e adolescente vítima de bul­lying, insegura, muito sofrida, decide ser cantora, ficar exposta a milhares de olhares, ou seja, permanecer no recreio.
Pois, parece uma coisa um bocado masoquista mas quando aos 15 anos fui estudar guitarra e comecei a cantar, alguma coisa mudou. Rapidamente percebi que cantava melhor do que tocava, e mais ­– que a minha voz não era assim tão fininha. Por exemplo, que era capaz de cantar por cima da Linda Perry e aguentar­‑me à bronca. Aquilo apanhou­‑me. Até aí a música servia para me acalmar e consolar. Mas nessa altura percebi que eu podia ser um elemento ativo, que podia fazer a minha música e cantar as minhas sombras, espantar­‑me e rir em palco. Então, sentava­‑me na cama com a guitarra e sonhava. E o roupeiro fazia de público [gargalhadas].

Demorou muito a que a rapariga da guitarra fosse o centro das atenções?
Não. E até começou a fazer dieta [risos]. Os último anos do liceu e os da Faculdade de Letras foram anos muito felizes. Percebi aí que era o futuro. Que cantar me dava muito gozo. Mas ainda fiz o curso [Português e Inglês]. Os meus pais eram despachantes oficiais e em 1992 ficaram no desemprego. Os dois, ao mesmo tempo. Falar­‑lhes de música era espetar­‑lhes facas. Portanto, tal como eles queriam, licenciei­‑me.

Era uma menina obediente?
Sim, mesmo. Nunca fui problemática. Filha única, senti o peso das esperanças que os meus pais depositavam em mim.

Como foi o embate da baixa auto­estima com tanta atenção masculina?
Reagiu como pôde. Mas eu era esquisitinha, tinha a mania de que era intelectual, escrevia muito, e se o rapaz não tivesse conversa não havia pachorra.

Descobriu aí que é bonita?
Ai, não, nem pensar. Passei a conviver melhor com a minha aparência, é verdade, mas muito ligeiramente. Nada mais. Essa coisa de me sentir bonita é muito difícil. Aliás, é­‑me dificílimo lidar com elogios.

Porém, no Instagram, passa a imagem de uma pessoa cheia de certezas físicas. Disfarce, só, ainda?
Pois, uma grande parte ainda vem do bullying. A certa altura, percebi que se eles percebessem que não estavam fazer-me mossa se cansariam. E isso ficou­‑me. Ainda hoje, quando estou desconfortável ou alguém diz alguma coisa que me magoa, reajo com uma gargalhada ou falo despropositadamente alto, para disfarçar. Mas também é verdade que o Instagram reflete uma mudança.

«Quando me perguntam se Que Parva Que Eu Sou foi um hino eu respondo sempre com as palavras de Elis Regina: «Eu mando o tiro, quem mata é Deus.»

A Ana a descolar da Deolinda?
A Ana do início tinha mais pudor de se dar a conhecer. E medo. Medo da rejeição. Por isso submergiu tanto na Deolinda. Este disco vem na esteira de uma mudança. Da mudança que se nota no Instagram. Revela uma pessoa que já não se importa tanto com o que pensem dela, que passou a gostar de si. Revela uma pessoa que já convive pacificamente com o seu corpo, principalmente depois de ser mãe. Que está até a aprender a gostar de roupa [risos].

Passou a ter, também, uma personal trainer. No pain no gain?
É um sofrimento. Os agachamentos são uma coisa horrível, mesmo ao fim de um ano e tal de aulas. Mas sou de sofrer calada [gargalhada]. A Mariana [PT] tem­‑me ajudado neste processo. Comecei a perceber que a imagem é importante e é bom não termos medo de ir à televisão ou de levarmos com bocas.

Por exemplo?
Do tipo «pelos vistos o sal engorda». Lá está, o apelido e o peso. Curiosamente, ou não, a gravidez ajudou­‑me a sentir­‑me mais confortável na minha pele, a assumir o que sou neste momento. Houve fases da minha vida em que me senti descentrada. Neste momento, não. De qualquer forma, manterei sempre um lado Deolinda, de miúda castiça, lisboeta lisboeta. Só não gosto que me confundam com a personagem, que me prendam ao molde.

Por isso, a Deolinda começou a vestir minissaia.
Caramba, se a miúda do bairro já foi cantar em todo o lado ­– só nos falta o Japão mas ainda havemos de lá ir ­– pode bem usar mini­ssaia. Não é por isso que deixa de ser do bairro [gargalhada].

Se não fosse Deolinda seria…
Só me lembro de uma alternativa, sugerida pelo Luís José Martins: Ivone. Quería­mos um nome próprio feminino, muito português e com boa sonoridade. O Luís lembrou­‑se de Ivone. Até que o José Pedro Leitão atirou Deolinda. E assim ficou. Pedimos ao João Fazenda para lhe dar cara e fazer o primeiro cartaz do concerto. No primeiro esboço, a Deolinda era mais modernaça. Não era aquilo que queríamos. Acabou por ficar uma Deolinda de xaile. O primeiro xaile dizia SLB. Tirando o Zé, que é do Beira­‑Mar, somos uma banda benfiquista mas, caramba, neste ano não está a correr nada bem.

«As zangas nunca vão para o palco, nunca interferem com a música, fazem uma pausa de duas horas. E no final já não estamos tão zangados. A música tem isso de fantástico. É apaziguadora.»

Não está a correr bem, não.
Sejamos otimistas [risos]. Bem, depois pensámos melhor e decidimos retirar a referência clubística.

Forma a banda no dia 15 de agosto de 2006, com dois primos e o marido. Misturar família e trabalho pode ser complicado.
As zangas nunca vão para o palco, nunca interferem com a música. No palco, as zangas fazem uma pausa de duas horas. E no final já não estamos tão zangados. A música tem isso de fantástico. É apaziguadora.

Mas o facto de serem familiares torna a relação profissional mais sensível ou não?
O grupo só terminará se sentirmos que artisticamente já não temos nada a dizer. Podemos fazer pausas mas enquanto houver algo artístico para dizer há algo por que lutar.

Já levam uma década. Desses dez anos Que Parva Que Eu Sou é incontornável. Sentiu na pele aquela letra?
Senti, senti. Na banda, todos tivemos experiência no mundo do trabalho bastante desagradáveis. Sabia perfeitamente o que estava cantar, a sentir perfeitamente a frustração que resulta de darmos o litro sem receber nada de volta. Aquela letra era a minha verdade.

Que tinha tudo para se tornar um hino. Perceberam isso desde logo?
Quando a cantámos para os técnicos, para o pessoal da agência, para amigos, percebemos que conforme ouviam iam levantando os olhos. Mas nunca imaginámos que se tornaria uma canção de intervenção. A primeira vez que a levámos para palco, no Coliseu do Porto, foi espantoso. Comecei a sentir o burburinho, o peso do ar – o meu lado esotérico. No final levantaram­‑se, o Pedro Silva Martins e o Zé viram algumas pessoas emocionadas. Aconteceu algo que ultrapassou a música e se transformou numa ligação muito forte.

«O palco continua a ser um sítio aterrador, de medo. Mas se antes estava ali numa luta para não ser engolida, hoje não temo que algo me escape da mão.»

No dia 12 da março, que levou milhares de pessoas à rua, cantou na Galiza.
Com muita pena não fomos à manifestação. Mas nesse concerto percebemos que os galegos também sentiam aquelas palavras na pele. Até cravos nos mandaram para o palco.

Que feedback tinham diariamente?
Muito, nas redes sociais. As pessoas diziam­‑nos quão importante era para elas aquela canção. Agradeciam­‑nos por termos ajudado a dar força ao 12 de Março. Foram quatro Coliseus, dois no Porto e dois em Lisboa. Mais de três mil pessoas por noite. Tomaram então consciência da sua força. Mais tarde, é verdade, chamaram­‑lhe hino. Sempre lhes respondi com as palavras de Elis Regina: «Eu mando o tiro quem mata é Deus.»

Quanto pesa Que Parva Que Eu Sou no seu percurso?
Muito orgulho e alguma desilusão. Foi o fim de uma certa inocência, de um olhar inocente para o mundo, já abalado pelo bullying. Na banda, estamos em grande sintonia em relação às questões políticas e socio­económicas e alinhados pelo humanismo. Só isso. Mas por pura conveniência houve quem interpretasse mal a canção. Na altura do 12 de Março criou­‑se muita contra­informação. Aprendi que o jogo político é mesmo o jogo político, por vezes a tender para o circo. Deixa­‑me muito feliz a decisão que então tomámos de nos recusarmos a debater a canção. Em certos momentos senti­‑me muito injustiçada mas também percebi que com espinha dorsal e teimosia a coisa vai.

Os Coliseus foram de facto enchentes. O que faz um bom concerto?
Antes de mais estarmos num bom dia. E um bom dia pode até ser um dia em que estamos muito cansados. Temos é de estar em sintonia connosco e com os outros músicos. E, claro, um bom concerto depende muito, também, da energia do público.

De que tipo público precisa?
Daquele que por vezes nos coloca perante imprevistos mas que ao mesmo tempo se entrega.

E quando não se entrega?
Já aconteceu não conseguirmos encontrar a chave para chegar àquelas pessoas. Aí, olhamos uns para os outros e fazemos o concerto para nós.

«Eu sei que daqui a cinco anos vão lembrar­‑se de mim. Daqui a cem não sei. Vamos andando e vamos ocupando lugares diferentes.»

O que tem sempre no camarim?
Água, fruta, toalhas. Gostava de ter sempre um charriot para pendurar a roupa. Por vezes não há. Já pendurei roupa nos sítios mais inusitados. Mas comparados com os anos 1970 e 80 são um luxo.

O medo do palco ­– o que muda com os anos?
O palco continua a ser um sítio aterrador, de medo. Mas se antes estava ali numa luta para não ser engolida, hoje não temo que algo me escape da mão. Por vezes até ajuda um concerto em que isso aconteça.

E na voz?
Aprendi imenso. Conheço muito melhor as minhas limitações e isso é meio caminho andado para melhorar. Quando vou abordar novas canções já não tenho medo de mim.

E dos fãs? Tem bons fãs?
Tenho um grupo de pessoas que vai a muitos concertos e que me dá muita força e alento. Que está sempre lá.

Críticas que doeram ­– qual é a primeira que lhe vem à memória?
Lembro­‑me de alguém dizer que comparar Deolinda com Zeca Afonso era comparar a Vista Alegre com a loiça das Caldas. Caramba, também não era preciso tanto. Atenção, até gosto muito da loiça das Caldas mas é maldade a mais. Era desnecessária. Não quer dizer que os Deolinda sejam a última coca­‑cola do deserto mas têm valor artístico. Nas composições, nos arranjos, nas interpretações, senão não tería­mos dez anos de carreira. Mas lembro­‑me de outras. Um dia levei à televisão um vestido amarelo. «Olha, tem os dentes da cor do vestido», alguém disse no Twitter. Levei toda a noite a olhar para os dentes. A certa altura deixei de ler o Twitter. Porque, ainda que lide cada vez melhor com isso, há comentários que continuam a magoar­‑me. Porque apesar de ter perdido a inocência, de ter ganho uma pele mais grossa, não perdi a espontaneidade. Não, não me tornei cínica nem azeda. Isso, sim, seria horrível.

«A Elis Regina e a Amália Rodrigues são para mim cantoras totais. Têm tudo. Voz, musicalidade, profundidade emocional, inteligência interpretativa, bom gosto, presença cénica arrebatadora. Aprendo sempre que as ouço.»

Como é o ambiente entre os pares?
Sou muito feliz porque no meu meio estabeleci relações muito próximas, de muita amizade com colegas. Temos uma relação de casa.

Olhando à volta, qual acha que vai sendo o seu lugar na música portuguesa?
Não penso nisso. Não quero sentir pesos. Quero estar leve como uma pena. E estou. Eu sei que daqui a cinco anos vão lembrar­‑se de mim. Daqui a cem não sei. Vamos andando e vamos ocupando lugares diferentes.

Nunca se deixou tentar pelo fado. Porquê?
Porque não sou fadista. Sei que não sou. Também por isso demorei tanto a chegar a este disco. O que eu não era, eu sabia ­– não sou fadista. Mas também não sou completamente pop. Ando algures entre os dois mundos. O que é mau ­– no sentido em que não tenho uma corrente definida a que possa agarrar-me ­– mas tem também uma lado bom ­– dá­‑me total liberdade para criar o meu caminho. Por isso fui sempre dizendo aos autores das músicas que queria fazer algo entre o Fausto e o António Variações. O Fausto, para trabalhar aqueles ritmos e danças populares de uma forma muito idiossincrática; o António Variações pelas influências anglo­‑saxónicas, que eu também tenho, e a ligação à musica tradicional portuguesa, que me vejo a trabalhar. Mas porque sou miscigenada e gosto de misturadas e de indefinições, nunca de uma forma tradicional ou pura.

Ouve muito os seus discos?
Na altura em que os lanço, sim. A partir do momento em que vou para o palco, não. Odeio ouvir­‑me, estou sempre a ver onde errei. É muito raro ter prazer a ouvir­‑me.

Quais são as vozes femininas da sua vida, em português?
A Elis Regina e a Amália Rodrigues são para mim cantoras totais. Têm tudo. Voz, musicalidade, profundidade emocional, inteligência interpretativa, bom gosto na escolha dos recursos vocais que utilizam, presença cénica arrebatadora. Aprendo sempre que as ouço. E aprendo sempre que vejo uma entrevista delas. Discurso lúcido, certeiro, inteligente.

Depois deste disco o que não pode voltar a ser o que era?
Nada. Não gosto de me repetir. Poderá haver uma continuação mas sempre com coisas novas. Não gosto de estar sempre no mesmo lugar. Mesmo que esse lugar signifique sucesso.

Quando há sucesso, as editoras gostam pouco de mudança. Tem tido liberdade criativa sempre?
Sei que há queixas, eu não as tenho. E quero que assim continue. Não gosto de repetir­‑me. Posso até revisitar alguns trabalhos mas sempre sob nova luz. Sou muito nova para me meter em caixinhas.

Qual acha que vai ser a reação do público a este trabalho?
Como em tudo o resto: espero sempre o melhor, mas preparo­‑me para o pior.

«Algum dia eu podia adivinhar o que me veio a calhar», canta em Só Eu. Olhando para trás, mudaria alguma coisa?
Não mudaria nada, foi tudo importante para chegar onde estou hoje, estou muito confortável na minha pele e precisei de todas as experiências que tive para chegar até aqui. Não direi que me sinto feliz mas sinto­‑me apaziguada. Pelo menos para já. Nunca sabemos quanto tempo estes estados vão durar.

E olhando em frente o que vê?
Gostava de me ver no palco até ser bem velhinha. Sei que não depende só de mim. Sobretudo depende do público. Mas que seria feliz, seria.

«Que a minha filha não tenha medo das batalhas»

Duas meninas da sua vida: a avó Luz e a filha Luz. Fale­‑me da avó.
A minha avó Luz, minha avó materna casada com o meu avô Mário, foi uma figura fundamental na minha vida. Para dizer a verdade, só percebi a tremenda importância dela quando a perdi. Ao contrário do que aconteceu com o meu avó Zé Bacalhau e com a minha avó dos quais não tenho memórias porque partiram muito cedo, a avó Luz e o avô Mário fizeram sempre parte da minha vida. A casa em Benfica era tão grande que eles viviam connosco. A minha avó Luzita era simples, muito luminosa. Foi a Luzita até ao fim, sempre menina.

São os avós de Carvalhal de Mouraz, perto de Tondela, a aldeia das férias de verão?
Sim, ambos eram de lá, embora se tenham conhecido em Lisboa. E era com eles que eu passava as férias de verão. Memórias muito boas. Já lá não vou há algum tempo, porém Carvalhal de Mouraz é ainda hoje o meu porto seguro.

Uma das letras deste disco é inspirada na avó e numa frase que lhe ouvia ­–«Só eu, mais ninguém não». Fale­‑me dessa letra.
Um dia estava a pensar na minha avó Luz e nas expressões que usava, lembrei­‑me desta e achei que era um bom ponto de partida para uma canção. Tem aquela coisa do «só a mim é que me acontece isto», que é muito portuguesa. Então construí a letra à volta de um sentimento de culpa por algo de mal que acontece e a contradição de achar que não havia nada a fazer, porque estava escrito que tinha de acontecer.

«Ouvido de mãe consegue ouvir até os pensamentos dos filhos, mas essa coisa da divisão que sentimos, do coração que fica apertado para sempre, é real.»

A Luz, que tem 6 meses, está na cozinha a experimentar uma papa. Ao longo da entrevista, quantas vezes pensou nisso e no facto de não estar a assistir?
Ui, tantas. Mas ouvido de mãe consegue ouvir até os pensamentos dos filhos e percebi que estava a correr tudo bem, ouvia os sorrisos, a excitação e fui ficando mais descansada. Mas essa coisa da divisão que sentimos, do coração que fica apertado para sempre, é real. Quando estamos a trabalhar, só pensamos que estamos a perder momentos importantes com os nossos filhos, ainda mais quando são bebés. Mas sem o meu trabalho nunca conseguiria ser feliz e acho importante que a Luz cresça sentindo que a mãe e o pai são felizes com o que são e com o que fazem.

A maternidade modifica em que medida?
Desde logo, traz momentos maravilhosos e outros de muito desespero. Por mais especialistas e livros que se consultem, a verdade é que estamos a navegar à vista. E após várias noites mal dormidas nem sempre é fácil discernir.

Quais são os melhores momentos diários da vossa relação?
O sorriso de orelha a orelha que ela me dá quando acorda. O vendaval de beijos que lhe dou com regularidade ao longo do dia, porque aquelas bochechas fofas estão mesmo a pedi­‑las. Brincar, falar com ela, dar­‑lhe muito colo. E o banho, ao final do dia.

No blogue, Ana Bacalhau fala muitas vezes da Luz. Que linha de privacidade traçou e que não ultrapassa?
Mostrar a cara dela. Quero que ela tenha a liberdade de escolher se se quer dar a conhecer publicamente e como ainda é muito novinha para poder fazer essa escolha em consciência resolvemos, eu e o Zé, optar por não revelar o seu rosto.

«Queria sobretudo que a Luz se sentisse livre de escolher o seu caminho e não tivesse medo de enfrentar as dificuldades e combater as batalhas que a vida vai colocar-lhe.»

Sempre gostou de escrever?
Sempre e muito. Enchia cadernos e cadernos. Escrevia ensaios, enfim, ensaios pensava eu, e crónicas em português. Poesia em inglês. Comecei a ouvir Jim Morrison e era uma criatividade meio louca. Lembro­‑me de que nem respeitava as linhas. Sou muito desorganizada.

Trabalhou num instituto de línguas, deu explicações mas também foi assistente administrativa [nos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento de Oeiras e Amadora] e arquivista [no Ministério das Finanças]. Uma arquivista desorganizada?[Risos] Organizo­‑me na confusão.

E escrevia canções, claro.
Sim. E mostrava­‑as aos colegas. Os outros textos nem pensar.

Guardou­‑os?
Uma parte estão na terra [Carvalhal] e a outra nos meus arquivos. Por vezes abria o dicionário de inglês, escolhia uma palavra e fazia poemas à volta dela. Ou então sobre o sentido da vida.

É assumidamente feminista. Que outras heranças faz questão de deixar à Luz?
Queria sobretudo que a Luz se sentisse livre de escolher o seu caminho e não tivesse medo de enfrentar as dificuldades e combater as batalhas que a vida vai colocar-lhe. Assim possa eu ter o discernimento de a guiar no sentido de se tornar um ser humano pleno e realizado. Esse é o meu maior desejo e a melhor dádiva que poderia oferecer-lhe.