A Padaria Flôr do Monte (e outras ruínas)

Notícias Magazine

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Se, conforme considerou Raymond Queneau, os escritores forem como ratazanas que constroem para si mesmas o labirinto de onde pretendem evadir-se, grande parte deste tonto trabalho consistirá em reunir e assentar com argamassa as pedras toscas que sobejaram das ruínas da infância. Mas não é por isso que regresso quase todos os dias ao bairro onde fui criança.

Faço-o porque os meus pais ainda lá moram e gostam de me receber para almoçar, estragando-me com o mimo das feijoadas copiosas, dos arrozes de cabidela, do cozido à portuguesa e do cabrito assado, entre outras perdições. Fazem-me falta, quando lá vou, a minha avó Augusta à janela e os sítios onde jogava à bola no tempo em que ainda não tinha de me preocupar com a resistência dos ligamentos cruzados dos joelhos.

Sinto também, e particularmente, a ausência da Maria Henriqueta e do Ricardo, os avós que me levavam sempre que regressavam a Castelo de Vide, ao ponto de me terem transformado num castelvidense fora do sítio e num alentejano adiado.

Do bairro onde fui menino sumiram-se as pessoas velhas e quase todas as coisas que compunham a sua identidade estão agora entregues à condição de ruína (física ou emocional). Desapareceu a negra carvoaria com as suas cargas de carqueja, a loja que apenas vendia pão fresco e vinho ruim, as fábricas em torno das quais o bairro cresceu e o minimercado do senhor Melo (mais crescidos, íamos lá às escondidas comprar cigarros avulso).

Já não existem também a mercearia da Gininha com o seu livro dos calotes, o comboio para a Póvoa de Varzim ou a drogaria onde se compravam a lixívia, os pregos e a aguarrás. Da fachada da Padaria Flôr do Monte só restava (há não muito tempo) o acento circunflexo que havia nas flores antigas, mas também esse vestígio sentimental desapareceu. Lembro-me de tê-lo fotografado para poder recordar mais tarde, quando sobrevier a saudade ou necessitar de me enredar mais um pouco na amável perdição dos labirintos da memória.

Ratazana desorganizada, constato, porém, que perdi a imagem. Encontrei, em alternativa, o retrato de um homem dormindo, bêbado, no passeio defronte dos escombros da antiga padaria e do caixote do lixo a transbordar – uma ruína mais entre as ruínas do Porto por onde o turismo não passa.