50 anos desde as cheias que afundaram Lisboa

Texto de Ana Patrícia Cardoso | Arquivo DN

«Era ao cair da tarde — e havia mortos. Todos muito juntos, enlameados, compridos. Alinhados, distanciados para sempre, ali aguardando o arrumo definitivo. Ali, ali no cimento frio de um quartel de bombeiros, no fim de um domingo de inverno.» A crónica do jornalista Pedro Alvim para o extinto Diário de Lisboa dizia tudo. Palavras de quem relatava, incrédulo, uma das maiores catástrofes naturais de que há registo em Portugal.

Sábado, 25, amanheceu chuvoso. Por volta das 19h00, começou um dilúvio que não deu tréguas durante cinco horas. A manhã de 26 dava luz à tragédia que a escuridão tinha camuflado. Odivelas, Urmeira, Póvoa de Santo Adrião, Frielas, Vila Franca de Xira e Alenquer foram as localidades que mais sofreram. As casas, em madeira, construídas ilegalmente em bairros de lata junto ao Tejo não estavam preparadas para a força da água que as engoliu sem piedade.

A mobilização estudantil levou 6 mil jovens (entre eles, Marcelo Rebelo de Sousa, António Guterres, José Pacheco Pereira ou Mariano Gago) às zonas afetadas para ajudar no que fosse preciso.

«Foi um choque perceber as condições miseráveis em que as pessoas viviam nestes bairros», lembra Diana Andringa, na altura com 20 anos. A jornalista fez parte da mobilização estudantil que levou 6 mil jovens (entre eles, o presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, António Guterres, José Pacheco Pereira ou Mariano Gago) às zonas afetadas para ajudar no que fosse preciso.

«Eu fui para um centro médico. As pessoas tinham de ser vacinadas contra a febre tifoide imediatamente. Vi pessoas que perderam famílias inteiras, que perderam tudo. É um desespero que não se mede», lembra Diana.

Helena Roseta, então também com vinte anos, não esquece aquele fim de ano. «Foi como uma bomba na nossa geração. Parecia que vivíamos uma revolução, fazíamos reuniões gerais, íamos nas brigadas de ajuda para o terreno. Não podíamos ficar parados.»

À data, o governo estava focado na guerra colonial em África que durava desde 1961. Salazar não queria um escândalo e a mão da ditadura fez-se sentir na rua e nas redações. As instruções eram claras: «Os títulos não podem exceder a largura de meia página e vão à censura». Era também proibido mencionar «o mau cheiro dos cadáveres».

O Diário de Notícias acompanhou o rescaldo da tragédia na capital e as expressões «Calamidade», «quadro de desolação», «região martirizada» ou «a grande catástrofe» fizeram cabeçalhos durante vários dias.

A contagem dos mortos foi suspensa poucos dias após a tragédia. Os últimos números oficiais publicados davam conta de 462 mortes. Porém, os corpos não pararam de aparecer. Estimam-se que mais de 700 pessoas perderam a vida mas não há um número certo. «A PIDE deu instruções para não haver mais contagem de óbitos. Na rua, estávamos nós, os estudantes e os bombeiros, o exército não estava lá. A GNR chegou a aparecer para nos prender “por desacato”. Não fazia sentido», conta Diana.

O Diário de Notícias acompanhou o rescaldo da tragédia na capital e as expressões «Calamidade», «quadro de desolação», «região martirizada» ou «a grande catástrofe» fizeram cabeçalhos durante vários dias. A 27 de novembro, o DN afirmou: «Quintas “morreu” na noite trágica». Referia-se à aldeia onde 100 dos 156 habitantes perderam a vida para o dilúvio.

A zona foi considerada inundável, as habitações destruídas pela enxurrada não foram reconstruídas e os terrenos foram deixados ao abandono. «De repente, o desordenamento do território e a desigualdade social eram muito claros. O centro de Lisboa não tinha desmoronado porquê?», questiona Helena. A forma como o estado lidou com a situação «radicalizou ainda mais as opiniões. Este governo tinha de ser derrubado», remata Diana Andringa. Aconteceria sete anos mais tarde, a 25 de abril de 1974.