A Baixa, à noite, mete medo. O Saldanha também. E o Marquês, as Amoreiras, Alvalade. As ruas da cidade tornam-se deserto depois do por do sol – e atravessá-las fora de horas é quase esperar pela emboscada, corpo tenso e sentidos alerta. Podemos contar a mesma história no Porto, na verdade podemos contar esta história no centro de qualquer cidade portuguesa de maior dimensão. Bem podem vir os turistas animar as ruas e estimular novos negócios, lotar transportes públicos e colocar as localidades no mapa. Transformar as urbes em parque de diversões é ilusão e cosmética. À medida que as áreas metropolitanas crescem as cidades estão a definhar – e a uma velocidade alarmante.
Em 1981, segundo o Instituto Nacional de Estatística, viviam em Lisboa 807 937 habitantes. Hoje são 506 892. Ou seja, em 36 anos a cidade perdeu 300 mil pessoas, quase 40 por cento da sua população. É avassalador. No Porto a história é a mesma. Em 1981 havia na cidade 327 368 habitantes, hoje não são mais de 216.405. Um terço dos portuenses fugiram. E, em ano de eleições autárquicas, aquilo que eu gostava de perceber é que soluções propõem os candidatos para resolver esta sangria. Porque este é o verdadeiro problema com que a gestão local tem de se preocupar. A gestão do território das últimas décadas é um crime que ninguém parece estar preocupado em reverter. Portugal precisa de um plano de salvação urgente para os seus centros urbanos.
Os sinais, no entanto, são tudo menos animadores. A marcha dos habitantes para as áreas metropolitanas segue, os concelhos limítrofes estão cada vez mais sobrelotados e vazios de infraestruturas. Com esse esvaziamento, a cidade ganhou novos problemas de estacionamento e mobilidade e segurança – porque agora é sobretudo um centro de não-residentes. Vivemos o esplendor do efeito donut, um buraco no centro e toda a massa em redor.
Nas últimas décadas, as autarquias cederam, primeiro, aos interesses das construtoras e, depois, à especulação imobiliária. Conseguiram com isso tornar incomportáveis os preços das casas, e conseguiram esvaziar em poucos anos um terço das nossas cidades. Serão mesmo necessários mais sinais do que estes? O pior é que a trama se adensa, sobretudo em Lisboa e no Porto. A chegada dos turistas está a criar um mercado de habitação local com dois efeitos: o aumento brutal dos preços e o desaparecimento do mercado de arrendamento – base natural da habitabilidade urbana. O buraco do donut está cada vez maior.
Regular o mercado da habitação é perigoso para qualquer autarca. As probabilidades de afastar eleitores e financiamento partidário são elevadas, é bem capaz de ser uma das áreas onde um político se consegue tornar mais impopular. Mas o assunto tornou-se demasiado grave para poder continuar a ser contornado. Uma cidade não é sustentável sem cidadãos e os nossos estão a desaparecer mais rápido que areia em ampulheta. Precisamos de reabitar rapidamente as urbes e para isso não bastam pequenas medidas de cosmética. É ano de autárquicas e a discussão tem de passar por aqui. Até porque, enquanto os donuts tiverem buracos, vamos todos ter medo de atravessar as ruas à noite.
(Ricardo J. Rodrigues é jornalista.)