1992

Notícias Magazine

Levava o dinheiro contado para comprar uma cerveja — era muito crescido, dezassete anos. A música no Gingão era um barulho baço — cassetes de guitarras distorcidas, como ruído estático da televisão, bateria de pele pouco esticada nos tambores, vozes felinas por cima. Entrava decidido nessa galáxia à meia-luz — rapazes de cabelo comprido sentados à volta de mesas a falarem alto e a rirem-se também alto. Detendo-me em nada, avançava para o balcão. Com os ombros a baterem noutros ombros, segurava a nota de cem escudos como se tivesse várias no bolso.

Olhava sem espanto para a senhora a abrir a garrafa e, enquanto esperava pelo troco, lançava mais um olhar, levemente desinteressado sobre a multidão. Voltava para a rua, voltava para a mesma parede, a mesma posição, e segurava a garrafa pelo gargalo, como se a tivesse esquecido na ponta do braço.

Eu tinha passado os dias anteriores a planear detalhes. Naquele momento, estava a viver esse ideal. Às vezes, olhava para o relógio. Via pela primeira vez personagens que, meses mais tarde, quando fui estudar para Lisboa, haveria de reencontrar muitas vezes — o Motörhead, que era um indivíduo alto, de rastas, que só usava camisolas dos Motörhead; o Ribas, que era o vocalista dos Censurados; ou o Bebé, que era um punk desdentado, sentado no chão ou a cambalear, sempre com a língua enrolada na boca, a pedir trocos.

À hora, ao minuto, pousava a garrafa quase vazia num canto do passeio, sem pressa, despreocupado. A minha espera terminava. Afastava-me com um passo ensaiado, um passo normal na rua do Gingão, no Bairro Alto.

Assim que contornava a esquina, começava a correr. Descia a Calçada da Glória a correr. Tinha de apanhar o metropolitano e, depois, apanhar o último autocarro para os subúrbios, onde os meus pais me esperavam. Não podia perdê-lo, essa hipótese era impossível.

* Escritor