Numa escola primária de Gaia, há voluntários que pegam nos miúdos com maiores dificuldades de aprendizagem e, mais do que ensiná-los a ler, ensinam-nos a gostar de ler. Algumas destas crianças parecem não ter hipóteses: vêm de contextos educacionalmente baixos e de famílias estruturalmente pobres. Um livro, para elas, pode muito bem ser tábua de salvação.
São quase duas da tarde e o Rafael, que tinha estado a jogar à bola no recreio, sobe as escadas a correr, dois degraus de cada vez. Tem 9 anos, vem suado e ofegante, mas ainda acelera a maratona até à biblioteca. Quando chega à porta da sala, trava a fundo, fosse um automóvel e ter-se-ia ouvido chiar de pneus. «Posso entrar?», pergunta com respiração pesada, e entra com passos certeiros. Vai diretamente ter com João Costa, o voluntário de leitura que desde fevereiro anda a ajuda-lo a ler. «Recebeste o recado?», pergunta o miúdo, e o mais velho acena com a cabeça, dá-lhe os parabéns. Pela primeira vez desde que chegou à escola, Rafael teve positiva no teste de Português. A primeira coisa que fez quando recebeu a nota foi dirigir-se à biblioteca e pedir para ligarem ao João. Aqueles 58 por cento eram, afinal, um triunfo dos dois.
Todas as terças e sextas, ao início da tarde, acontece este pequeno milagre na escola primária da Quinta da Chã, em Vila Nova de Gaia. Seis adultos que gostam de livros vêm ensinar seis miúdos a articular as leituras. «O efeito que estão a conseguir é nada menos do que espetacular», diz Paula Coimbra, diretora do estabelecimento. «Além de uma melhoria muito acentuada no aproveitamento escolar, estamos a assistir a uma viragem completa destes alunos em termos comportamentais.» E explica que algumas das seis crianças escolhidas eram casos complicados, crianças com famílias mal estruturadas, uma boa parte sinalizada pelos técnicos da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em Risco. E, das duas uma: ou eram crianças revoltadas e agressivas ou eram demasiadamente introvertidas. «Agora, todos eles estão a florescer. Mesmo os que vinham de contextos familiares estáveis estão a mudar. Participam nas aulas, querem responder às perguntas, querem ser bons alunos. E isso é o primeiro passo para se tornarem, um dia, adultos funcionais.»
A Brenda, que está no 2º ano, hoje vai ler uma história para a turma toda. Chama-se A Girafa Que Comia Estrelas, um livro de José Eduardo Agualusa com ilustrações de Henrique Cayatte. Mas, em vez de se agarrar à obra, a rapariga traz uma caixa de cartão com uma girafa de plasticina, que ela fez com apoio de outra voluntária de leitura. Por cima tem uns cartões que ela própria elaborou, é o resumo do texto, é a interpretação da gaiata.
«Tentamos desenvolver um projeto pedagógico sustentado, que não sirva apenas para aprender a ler mas também para aprender a gostar de ler», diz Maria João Castro, coordenadora interconcelhia da rede de bibliotecas escolares.
Os voluntários, antes de começarem a ser voluntários, recebem formação, aprendem a estipular metas com os alunos. Brenda acaba de ler para a turma e recebe uma ovação dos colegas. Há três meses, não conseguia juntar duas sílabas, agora gosta de ler em casa – e anda de roda dos livros da Anita.
Maria João Castro, que coordena mais de setenta bibliotecas escolares do 1º ciclo em Porto e Gaia, diz que a Quinta da Chã é o único estabelecimento de ensino com voluntários de leitura. O programa, que tem três anos e meio de existência e foi idealizado por Isabel Alçada, antiga ministra da Educação, está em crescimento. Mas ainda longe de chegar a todos os lugares onde é necessário. Desde a sua fundação, em setembro de 2012, tinham-se inscrito 1396 voluntários. Destes, 548 foram colocados em 389 escolas. E, no total, o país tem 1408 escolas básicas do 1º ciclo. Ainda são poucos os miúdos que têm oportunidade de aprender a gostar de ler.
Uma hora por semana, é isso que as bibliotecas escolares pedem aos voluntários. Não querem alguém que vá ler para turmas inteiras, antes o acompanhamento personalizado de uma criança com dificuldades de aprendizagem. «Gostaria tanto de poder estender este projeto a outros sítios», suspira Rita Cabral, professora bibliotecária da Quinta da Chã e de mais duas escolas em Gaia. «É que há muitas crianças que se sentem chutadas na vida para um canto, porque as famílias não as acompanham ou não conseguem acompanhar. Aqui, elas estão no centro, sentem que são o foco da atenção de um adulto, e isso faz maravilhas por elas.» Na biblioteca há cartazes de cartolina em que os alunos escreveram o que sentiram ao ler para toda a turma. E lá está uma frase que o Rafael escreveu e é bem capaz de explicar tudo: «Senti-me importante.»
A inscrição como voluntário de leitura é um processo simples. Estes seis adultos que ajudam em Gaia fazem-no ao abrigo de um programa de responsabilidade social da empresa onde trabalham, a Cetelem. «Dispensamos uma hora por semana do nosso horário para vir fazer isto», explica Marta Caldeira, que trabalha com a Melanie, outra miúda que tem feito progressos notáveis.
Mas toda a gente pode apresentar uma candidatura individual e ser colocado numa escola ao pé de casa. Basta preencher uma ficha no site do projeto, receber a formação e dispor de uma hora por semana. «É muito importante assumir isto em pleno, não faltar uma única vez», diz Marta. «Estas crianças contam connosco e falharmos representa para elas uma desilusão extrema.»
Ciências puras, matemática, ciências aplicadas, ciências sociais, religião, artes e desporto, filosofia, psicologia, geografia e história, generalidades. Nos 300 livros que compõem a biblioteca desta escola, há oferta em todas as áreas pedagógicas, e há muitos livros que integram as listas do Plano Nacional de Leitura. Mas, encostados a uma parede, também há cestos de plástico com uma boa vintena de obras e uma placa em cada um, com o nome de cada criança que recebe ajuda e de cada voluntário que a presta.
Ali está o símbolo do triunfo de cada aluno, e é por isso que Sawandi, um aluno do 3º ano, vem agora mostrar as suas vitórias: «Já li este e este e este. E agora estou a conseguir ler este sozinho, queres ver?» Em casa, todas as noites, lê uma página para a mãe. «A leitura estabelece novas cumplicidades no contexto familiar, ajuda as famílias a organizarem‑se e a entenderem‑se. E, muitas vezes, o estímulo que os miúdos recebem na escola é passado para dentro de casa», diz Rita Cabral. E isso só pode ter efeitos positivos.
No caso da Rafaela, a mãe até tentava oferecer-lhe livros, mas a rapariga não queria saber das letras, só dos bonecos. Anabela Fernandes sempre tentou estimular a leitura da filha, nos presentes de Natal e aniversário insistia na literatura, mas a coisa não funcionava. «Tinha más notas a Português, agora tem suficiente mais. E às vezes apanho‑a a ler livros sozinha, e depois vem contar‑me as histórias. É uma mudança da noite para o dia.» À hora do jantar, quando passa o telejornal, a rapariga do 2º ano põe‑se a ler os oráculos em voz alta, e depois comenta as notícias.
«Eu noto que, com este gosto que ela está a desenvolver pela leitura, está também a tornar‑se uma criança muito mais curiosa. E isso é o que vai fazê‑la ir mais longe na vida. Eu sou empregada de limpezas, nunca gostei de ler. Espero que a Rafaela continue a gostar e a querer saber mais coisas, para crescer e poder ter uma vida melhor do que a minha, para sair deste ciclo», diz a mulher à porta da escola. A rapariga ouve a mãe e sorri, dá‑lhe a mão e diz que, quando for grande, quer ser top model. Depois para, fica uns segundos em silêncio e atira. «Ou então cientista.»