Cinco. São cinco prateleiras completas. Seis, se contarmos com a de baixo, onde estão alguns carrinhos, uns livros de banda desenhada sem capa e umas quantas caixas de CD. A música ficou para trás por manifesta falta de gosto: um CD da Gloria Estefan de que nunca conseguiu desfazer-se por ter sido presente de uma namorada, dois da Mafalda Veiga que ganhou numa quermesse, um dos Delfins que a mãe lhe ofereceu porque achava que ele gostava (nunca teve coragem de dizer à senhora que, na verdade, abominava) e uns quantos que foram gravados com alguma coisa que nem ele próprio sabe. As revistas do armário, essas ficaram por falta de espaço. Para casas pequenas só se leva o essencial – e mesmo isso teve de ser discutido com a então namorada, agora mulher. Ele até nem se importava de tentar arranjar lá algum canto para as centenas de edições da National Geographic, mas ela disse-lhe que para isso levava também a coleção de chapéus, e lá acabaram por chegar a consenso.
A história é verídica, as revistas existem mesmo, os chapéus também. O meu amigo Nuno e a mulher já não estão muito tristes por não terem nem uma coisa nem outra na casa deles – a terceira que partilham desde que foram viver juntos, há uns sete ou oito anos. Mas fazem questão de dizer, sempre que isso vem à baila, que não querem que os pais se desfaçam da memorabilia. Os CD podem ir à vida, mas, a menos que os senhores precisem mesmo, mesmo do espaço – como para dar lugar a um quarto para os netos, por exemplo, e nesse caso os filhos enfiam a viola no saco –, as revisas e os chapéus são para ficar lá. «Algum dia havemos de saber o que fazer àquilo», dizia-me ele há dias.
As revistas da moldura amarela dele e os chapéus dela ficaram no mais clássico dos armazéns afetivos que temos, enquanto é possível: a casa dos pais. É lá que deixamos o que não conseguimos levar para a casa nova, é lá que vamos deixar o que temporariamente precisamos de guardar quando fazemos mudanças, é lá que voltamos para procurar um livro especial que queremos mostrar aos filhos e que ficou para trás.
Pelo menos durante os primeiros dez anos depois de sairmos do ninho, os progenitores não se importam que deixemos lá o que quer que seja. Custa-nos a nós desfazermo-nos das coisas, a eles custa-lhes ver aquilo tudo despachado para o contentor. Não pelos objetos em si. Livros amarelecidos, brinquedos que não chegam a ser antigos são apenas velhos, consolas de jogos que ocupam espaço, revistas que são só um apelo à saudade e à memória dos tempos em que as folheávamos não servem para grande coisa. Mas ocupam um espaço importante no despensa dos afetos, não é? E enquanto os pais tiverem arrumação no nosso velho quarto – durante os tais dez anos eles lá arranjam forma de manter o espaço museológico em standby para possíveis viagens de saudade –, as coisas vão ficando a ganhar pó.
Há uns oito anos, durante quatro meses, voltei a casa dos meus pais. Tinha saído com 26 anos, primeiro para viver sozinho, depois para viver com uma namorada, mas as voltas que a vida deu e algumas contracurvas manhosas que tive de percorrer obrigaram-me a pedir-lhes guarida durante uns tempos. Pensei, ao início, que me iria fazer confusão. E fez, de facto. Durante dois dias. Mas depois lembrava-me do que me tinha levado ali. E do colo que precisei de ter naquela altura. Um marmanjão, homem feito, a precisar de colo e teto? Sim, isso mesmo. Já não tinha o meu quarto, já não tinha a minha mobília – tinha sido substituída por outra, mais prática, para os meus sobrinhos. Mas tinha algumas revistas, claro. E o mesmo espaço. E o mesmo afeto. Nunca me vou esquecer. Às vezes, quando tudo o resto corre mal, é bom ter um porto seguro a que voltar.
[Publicado originalmente na edição de 15 de maio de 2016]