A mudança da hora tem efeitos que deviam ser estudados. Alterações no sono (mais difíceis de resolver para quem tem filhos pequeninos), surpresa por acordar ainda de noite ou por jantar ainda de dia, ligeiros sustos por culpa dos relógios por acertar. Passados uns dias, a normalidade aguenta-se por seis meses, quando há nova reviravolta mas ao contrário. Talvez Mrs Brown tenha ficado desnorteada com a perspetiva de perder uma hora naquela madrugada de domingo. O que é certo é que se fez ao mar da Madeira para apanhar o barco que passava ao longe. Com isso perdeu não uma mas várias horas.
Já foi contado mil vezes, mas ainda poderá haver quem não saiba ou quem se tenha esquecido. Mr e Mrs Brown, reformados ingleses, fizeram um cruzeiro pelo Atlântico e decidiram, quando escalavam o Funchal, abreviar o regresso a casa de avião. Por alguma razão, desencontraram-se no aeroporto. Ele embarcou, ela preferiu voltar ao balanço das ondas. Quatro horas e quinhentos metros depois, foi resgatada por uns pescadores, gelada mas agarrada à mala de mão que lhe serviu de boia. A hora mudou, estava Mrs Brown a caminho do hospital em hipotermia. Acabou internada numa clínica psiquiátrica.
E agora a sério. Vou recomeçar onde devia ter começado mas não consegui.
Mustafa, de dupla nacionalidade egípcia e norte-americana, desviou um avião na manhã de terça-feira, deixando toda a agente em alarme com mais um atentado terrorista. Em vez de ir de Alexandria para o Cairo, o Airbus aterrou em Chipre. Mustafa, professor universitário, não fez mais mal aos reféns do que um enorme susto e o incómodo de ir parar a uma ilha 600 quilómetros a norte do destino. Rendeu-se e deu razão à frase «cherchez la femme». Foi «tudo por causa de uma mulher», declarou o ministro cipriota dos Negócios Estrangeiros ao lado de Martin Schulz que, por coincidência, estava de visita a Chipre.
Ainda não era disto que ia falar, mas o que querem, as notícias aparecem, distraem-nos.
Eu própria mudei o trajeto entre casa e trabalho para não ver a loja daquela esquina que pertenceu durante anos a um amigo mas fechou por causa de um aumento de renda insustentável. Ia por ali, se ele estava conversávamos um bocado, coisas de amigos que têm passado em comum e continuam a querer saber um do outro, alegrias e tristezas e preocupações e ideias. Agora há papéis a tapar as montras, e não gosto de não espreitar o recheio que era um regalo para os olhos. Há outras ruas, outros cruzamentos, ando a explorá-los.
E isto era só mais uma manobra de diversão, para mostrar que nem tudo o que acontece vem nos jornais, a vida continua a borbulhar por todo o lado, invisível e persistente.
É que não sei o que dizer quando um bombista se faz explodir num parque de diversões cheio de crianças, numa carruagem de metro ou numa estação de comboio em hora de ponta, num aeroporto ou num mercado. Quando atira um avião contra um edifício, dois aviões contra dois edifícios. Quando um bando rapta centenas de mulheres e só se sabe que o destino delas foi sinistro. Há palavras e comentários para estes factos mas tudo parece inútil, repetitivo, nada pode diminuir o horror, a impossibilidade de compreender.
Na Volta ao Mundo em 80 Dias, Philleas Fogg e Passepartout conseguem cumprir o prazo da aposta apesar de se terem atrasado um dia, porque andaram ao contrário da rotação da Terra. Aí está, é bizarro mas ainda assim eu consigo perceber isso.
O vazio das mortes do terrorismo é que não.
[Publicado originalmente na edição de 3 de abril de 2016]