
Era um sábado e lembro-me de ser dia de ir à Baixa, cerimónia que então era rara e importante. Era dia de comprar tecidos para vestidos e saias, botas para o inverno, havia a Lanalgo e o Grandella, os Armazéns do Chiado e lá mais acima o Paris em Lisboa, e a sapataria Lisbonense, que tinha cavalinhos de brincar para entreter as crianças (ou era na porta ao lado?). Mas naquele dia 25 de novembro de 1967 o cenário era anormal e a pressa em voltar para casa tornou-se urgência.
Passaram quase 50 anos e lembro-me com nitidez da dificuldade de caminhar na rua, chlok chlok, sapatos ensopados pela água que cobria a calçada, o autocarro de dois andares a demorar tanto pelas avenidas. Entrámos em casa e fomos rapidamente tirar as roupas encharcadas e esfregar álcool nas pernas e nos pés, para aquecer depressa. Era uma manobra que dava um conforto imediato, o álcool a volatilizar-se, o cheiro a entrar pelo nariz e a pele a ficar vermelha e grata. Para aquecer, outro truque que resulta sempre: uma canja, remédio para todas as doenças. Lá fora, a chuva continuava, não havia meio de parar, o barulho nos vidros, a ventania excecional a abanar as janelas.
Tínhamos televisão desde o ano anterior, comprada para acompanhar Eusébio e Coluna e Simões e os outros todos no Campeonato do Mundo de 1966. Schaub Lorenz, nem sei se ainda existe esta marca, a preto e branco. Na sua mania de superlativizar, o pai chamava-lhe «a eusébia das televisões». Como em todos os aparelhos da época, qualquer problema era resolvido com uma pancada seca, voltava a funcionar como se se enchesse de brios. Naqueles dias, a televisão que se conseguia ver – com cortes de eletricidade pelo meio – era para tentar saber notícias, uma coisa que requeria a capacidade de ler nas entrelinhas, como acontecia com os jornais – o DN, O Século, os vespertinos que chegavam a meio da tarde.
E eram histórias terríveis, apesar de muito limitadas pela censura. Chegou a falar-se em 250 mortes, hoje sabe-se que pelo menos 700 pessoas morreram e muitas desapareceram, em enxurradas que levavam tudo pela frente. Um poder imenso, avassalador, causou destruição nas zonas urbanas construídas sobre linhas de água. Imagens da RTP e fotografias dos jornais mostravam bairros de barracas arrastados sem travão. Na lama misturavam-se corpos, automóveis, móveis, pratos partidos. Milhares de pessoas perderam tudo o que tinham. A catástrofe.
Lembro-me de andar a pedir roupas de porta em porta, um gesto que hoje sei irrisório, comparado com o movimento dos universitários que se mobilizaram para ajudar as vítimas dessas cheias de 1967. Foi uma operação voluntária que incomodou o regime, porque tudo o que cheirava a solidariedade perturbava a boa ordem de esconder a poeira por baixo do tapete. Passaram quase 50 anos e não me esqueço dessas imagens, porque não era só a chuva e o vento, era a morte aqui ao lado. Perante essas imagens, ver e ouvir o Tâmega em turbilhão ou o Tejo inundado é quase só a natureza a dar provas da sua energia.
Na semana passada, a chuva voltou a alagar campos e cidades, uma chuva persistente e pesada que fez rios e ribeiras ultrapassar leitos normalmente tranquilos. O Mosteiro de Santa Clara-a-Velha voltou a ser ocupado pela água, dois dias depois de anunciadas as obras de recuperação da desgraça anterior. E dei comigo a pensar naquele sábado de 1967, e no senhor Arménio, o padeiro que todas as madrugadas deixava pão fresco no saco pendurado na porta e que só voltou passados alguns dias. Tinha perdido tudo, recomeçava a vida com uma cesta de pão às costas.
[Publicado originalmente na edição de 21 de fevereiro de 2016]