Um novo herói desenhado a régua e esquadro

Notícias Magazine

Tenho um novo herói. Chama-se Bill. Não é o que estão a pensar: não é o Clinton nem tão-pouco o Gates, embora admire ambos por razões diferentes que, aliás, não vêm agora ao caso. O meu herói é um bonequinho igual aos que todos desenhamos quando queremos desenhar um boneco. Tem um círculo como cabeça e o resto do corpo é todo feito de riscos. Um direito para o tronco, outros quatro oblíquos para as pernas e para os braços. Sabem? Como aqueles bonecos que fazemos no jogo da forca?

Sim, esses mesmos. Infantis e simples. O que torna o Bill um herói para mim é o que ele faz, ou diz, nos memes que andam a circular na internet, uma espécie de desenhos virais. O Bill é o suprassumo da delicadeza e da etiqueta, quando a delicadeza e a etiqueta andam tanto pelas ruas da amargura – sobretudo no mundo online. O Bill aparece num quadrado branco acompanhado de algumas frases que são lições de vida. Dantes, seriam do mais imaculado bom senso. Agora, são pérolas. Acabam sempre com: «O Bill é esperto. Sejam mais como o Bill.» O que é, ao mesmo tempo, irritante mas tão, tão bom.

Dantes, quando o privado e o público tinham linhas firmes a dividi-los, as pessoas sabiam exatamente o que guardar para elas próprias e o que divulgar. Depois, essas linhas divisórias e essas fronteiras começaram a esbater-se. Foi no mundo pós-moderno, do vale tudo. No entanto, enquanto o mundo mediático continuou a ser mais ou menos hierárquico, com um controlo rigoroso do fluxo de informação, só alguém que era alguém – ou seja, que tinha vida pública, era uma figura pública – podia dar-se ao luxo de confundir as duas, a pública e a privada.

Mas hoje, com as redes sociais, o mundo está todo esventrado. Deixámos de ser uns assistência e os outros estrelas. Agora somos todos estrelas. Sobre as consequências deste choque para a nossa epistemologia havemos de conversar. Estarmos todos no palco implica o sério risco de deixarmos de ouvir e ver para apenas falar, ser vistos.

Por enquanto falemos dos efeitos desta incontrolável verborreia no civismo e convivência social. Já para não falar da nossa paciência. E é aqui precisamente que entra o Bill, esse bonequinho que espalha bom senso na internet. Por exemplo: «Bill não diz no Facebook que acabou de ir para o hospital. O Bill não é um tonto à procura de atenção.» Ou: «Bill gosta de uma miúda. Bill ganha força e vai dizer-lhe, em vez de lhe mandar pistas no Facebook. Bill é esperto. Sejam como o Bill.» Ou ainda: «Bill está no Facebook. Bill não posta memórias de há sete anos porque sabe que ninguém quer saber. Bill é esperto. Sejam mais como o Bill.»

As suas máximas começaram por ser de etiqueta digital, mas rapidamente passaram para o dia-a-dia. «Bill está a conduzir. Bill não conduz com as luzes de nevoeiro ligadas quando não está nevoeiro. Bill sabe que isto é irritante e encandeia os outros condutores. Bill é esperto. Sejam mais como o Bill.»

Sim, o Bill é assim. Tão snob como verdadeiro e sincero. Tão cheio de bom senso que irrita. Diz aquilo que todos pensamos e não conseguimos dizer, tantas vezes por delicadeza. E, no entanto, Bill é delicado. E devo agradecer-lhe por me dar oportunidade de escrever talvez a crónica mais reacionária da minha vida.

[Publicado originalmente na edição de 24 de fevereiro de 2016]