Um museu não é só obras-primas

Notícias Magazine

Numa das margens do rio Spree, fica a berlinense ilha dos Museus e, entre estes, o célebre Pergamon. Por três andares, expõem-se uma coleção da Antiguidade Clássica, o museu do Antigo Próximo Oriente e o museu de Arte Islâmica. O melhor do Pergamon são os monumentos, ou parte deles, em tamanho natural, trazidos dos lugares longínquos onde nasceram e reconstruídos ali. Pode lá ver-se, duma beleza requintada, o Quarto de Aleppo, simplesmente isso, um quarto, da cidade síria que conhecemos dos telejornais por ter sido tomada pelo Estado Islâmico. Paredes e portas dum aposento duma casa particular de família cristã, todo em lambris, madeira finamente pintada com motivos árabes e cristãos-orientais por um artista persa, em 1600. Em 1912, o arqueólogo e orientalista alemão Friedrich Sarre trouxe o Quarto de Aleppo para Berlim.

Apetece, como perante tantas obras do Louvre e do Museu Britânico, protestar pelo roubo imperialista a civilizações em mó de baixo. E, logo a seguir, suspirar pela bênção de aquelas paredes serem hoje berlinenses e não estarem em Aleppo… E não, é prudente não deixarmos que a condescendência nos domine, porque lá está, entre os salmos que também foram pintados nos lambris, este escrito há mais de quatro séculos: «A autossatisfação é uma prova de tolice.» Tempos estes, uma pessoa paga caro para ir a um museu e leva com verdades que nos vexam.

É no andar térreo do Pergamon que estão as suas mais famosas obras-primas. A Porta de Ishtar, reconstrução de uma das entradas monumentais da Babilónia; o Altar de Pérgamo, que deu o nome ao museu, uma escadaria que leva ao altar grego construído na cidade da Ásia Menor; e a Porta do Mercado de Mileto. Esta vemo-la como os seus conterrâneos (Mileto tornou-se uma cidade turca) já não a viam há mil anos. E, no entanto, ela só foi trazida para a Europa em 1908. Uma frontaria de 30 metros de largura, 16 metros de altura e cinco de fundo – um monumento metido numa sala de museu. Dois andares, duas dúzias de colunas coríntias, nichos e frisos, com as proporções perfeitas dos gregos.

A Porta do Mercado de Mileto foi construída em mármore dois séculos antes de Cristo. O imperador bizantino Justiniano transformou-a em parte da muralha da cidade mas um terramoto, pelo ano 1000, colapsou-a. Nem os primeiros cruzados podiam ter visto a maravilha se por lá tivessem passado a caminho da Terra Santa. Jazia por terra, com algum do seu mármore roubado para outras construções. Na primeira década do século passado, arqueólogos alemães fizeram escavações e enviaram bocados da Porta para Berlim. O imperador Guilherme II quis mais, aliás, quis tudo. As pedras vieram, mas o imperador não pôde admirá-las colocadas em lego, como ele já as sonhava, numa sala do museu Pergamon – entretanto, havia que tratar da I Guerra Mundial, que ele perdeu. No fim da década de 1920, ainda embrenhada na sua crise de derrotada, a Alemanha decidiu juntar as peças da beleza milenária.

Surgiu então uma discussão. Uns queriam que a Porta do Mercado de Mileto, apesar de algumas pedras perdidas, fosse erguida com autenticidade, só com materiais e técnicas da sua construção original. Outros, aceitando que as faltas de pedra não fossem enganadas por estuque à Hollywood, quiseram usar cimento e ferro, e até perfurar as colunas, para lhes dar consistência com aço. Quem ganhou? Em 1930, a Porta do Mercado de Mileto estava erguida em Berlim, mas só com a II Guerra Mundial saberíamos quem ganhou. Puristas ou oportunistas?

Em 1945, o Museu Pergamon foi bombardeado pelos Aliados, o teto e uma parede onde estava a Porta do Mercado de Mileto caíram, mas a maravilha aguentou. Felizmente, na reconstrução de 1930, não tinham ganho os puristas. Fui ao museu encher os olhos de beleza e trouxe de brinde uma frase popular: o ótimo é inimigo do bom.

[Publicado originalmente na edição de 10 de janeiro de 2016]