Um antigo caçador de skinheads a viver em Trás-os-Montes

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Texto de Ricardo J. Rodrigues | Fotografia de Leonel de Castro/Global Imagens

João Cordeiro, ou Rocky, liderava, nos anos oitenta, em Paris, um gangue que tinha por alvo os skinheads e contestava a extrema direita com o bastão na mão. Enchiam a imprensa francesa de histórias violentas. Agora vive numa aldeia transmontana, passa dias a cuidar de oliveiras. E vê o fim da Europa na televisão. «O fascismo está de volta», diz ele.

Esta semana, as autoridades ucranianas anunciaram a detenção de um nacionalista francês da extrema-direita que preparava ataques terroristas a mesquitas e sinagogas em França. Foi por uma unha negra, ou por escassos 50 mil votos, que o candidato da extrema-direita Norbert Hofer não ganhou a segunda volta das presidenciais austríacas, no final de maio.

Nas últimas regionais alemãs, também em maio, a grande surpresa foram os mais de 20 por cento conquistados pelo Alternativa para a Alemanha, um partido declaradamente anti-islâmico. A semana passada, a Frente Nacional de Marine Le Pen liderava as sondagens para as presidenciais francesas do próximo ano com mais do dobro das intenções de voto que o seu principal opositor, François Hollande.

Na Hungria, na Holanda, na Dinamarca, na Suécia, no Reino Unido, na Polónia e em Itália estão a crescer os resultados das formações políticas declaradamente antiemigração ou antissemitas ou antimuçulmanas. Donald Trump, que defende a criação de um muro para separar os Estados Unidos do México, é o candidato republicano à sucessão de Barack Obama.

Rocky vê o mundo mudar pela televisão. «Há uma ofensiva em marcha da extrema-direita contra os valores do humanismo», diz. «No meu tempo era fácil detetá-la, porque era feita por tipos de blusões de cabedal e botas Dr. Martens. Agora são intelectuais, donas de casa e engravatados, têm o aspeto de cidadãos bem comportados por piores atrocidades que digam. E isso é muito mais perigoso.»

Por estes dias, João Cordeiro é um tipo preocupado. Tem 49 anos, uma vida pacata a produzir azeite, mas as marcas de um passado violento ficaram-lhe marcadas no corpo. São cicatrizes, o olhar duro, as tatuagens. A sua preferida é a que enverga no braço esquerdo: o símbolo dos Ducky Boys, gangue que fundou em Paris há 33 anos, a cruz celta amputada de um braço.

«É preciso uma nova revolução das ruas. Estes tipos da Frente Nacional falam sem que ninguém os conteste, não o fariam se levassem uns bons tabefes.» Violência não traz mais violência? «Traz. E um discurso que cria guetos para os árabes e para os imigrantes, não é ele também violento? É também por causa disso que crescem os jihadistas na Europa. Por não fazerem parte da sociedade, por não terem a mínima hipótese de encontrar emprego, oportunidades ou amigos brancos.»

Vive numa pequena aldeia do concelho de Mirandela, Cedães, num antigo armazém transformado em casa de dois pisos. Cá fora pintou uma série de graffiti nas paredes, urbanidade improvável em povoação de 200 almas. Dentro, também experimenta os dotes de pintor. Há telas com caveiras e telhas pintadas com desenhos seus, algumas com símbolos dos Ducky Boys.

Fotografias dos tempos de gangster por toda a parte, alguns recortes de jornal antigos, uns em francês, outros em português. Livros, alguns, e quem os devora quase todos é a mulher, Maria, uma brasileira do Mato Grosso com quem vive há meia dúzia de anos. E há dois aparelhos que ocupam o centro emocional da habitação: a televisão, normalmente sintonizada em canais de notícias francófonos, e a aparelhagem, onde só passam discos de rock dos anos cinquenta, de Elvis a Buddy Holly, Fats Domino e Johnny Halliday. Foi por causa daquela música que João se tornou Rocky, há mais de três décadas.

Aos 13 anos o rapaz mudou-se para a capital francesa. Tinha nascido em Castelo, freguesia de Alfândega da Fé, mas mudara-se para casa dos avós na Pontinha aos três, depois de os pais fugirem a salto de Trás-os-Montes. Em Lisboa, via um tio ocupar casas, deixar crescer a barba, discursar sobre a revolução. E isso marcou-o.

Quando chegou a outro país, sem amigos nem palavras para os conquistar, só tinha a música. Um rapaz argelino, com quem partilhava a carteira nas aulas de integração e os headphones do walkman, tornou-se companheiro do mundo novo. «Chamava-se Mourad Habil e era louco pelo Elvis. Comprávamos cassetes no mercado de Tati, rapávamos o cabelo de lado e fazíamos popas à rockabilly, como víamos nos filmes.» Ainda guarda os VHS desses dias, tesouros de cores desbotadas. Sobretudo The Wanderers, uma obra de culto de Philip Kaufman lançada em 1979 com o título português Os Vagabundos de Nova Iorque. Foi daí que, em 1983, retirou o nome para o seu gangue.

Nessa altura, João e Mourad estudavam em escolas separadas, mas costumavam apanhar o metro para a estação de Franklyn Roosevelt e passar as tardes com um grupo de amigos na Galerie des Champs, um centro comercial nos Champs Élysées onde havia uma loja de hambúrgueres, um salão de jogos com máquinas de flippers e umas cadeiras redondas em que traçavam planos para as noites. «Era eu, três franceses, um senegalês, mais dois argelinos.»

Chamavam-lhe Rocky, mais por causa do gosto musical do que pelo filme de Stallone, e não era raro seguirem dali para os grandes clubes de rock parisienses, o Les Saints e o Tropical. «Nesses tempos, imperavam os Teddy Boys, que ouviam o mesmo som que nós mas vestiam-se com fatos aprumados e usavam bandeiras da confederação americana nos casacos. Defendiam o racismo e nós não nos identificávamos com eles.» Em Paris, organizavam-se em bando, chamavam-se Rebels, tinham mais de uma década de domínio na rua. «Até ao dia em que nos envolvemos à pancada num concerto.» Pela primeira vez, alguém fazia frente aos monarcas. Depois da confusão, Rocky juntou o grupo e formou os Ducky Boys.

Era missão para abandonar a escola e passar muitas noites fora de casa. Os Ducky treinavam todos os dias em Trocadéro, boxe tailandês e muay thai. Dormiam em comboios vazios, roubavam comida dos carregamentos que ficavam à porta dos supermercados durante a noite, assaltavam betinhos se precisassem de dinheiro.

«Na altura não tínhamos qualquer ideologia, éramos antirracistas e antirrebels.» De noite, iam aos clubes e aos pontos de encontro dos rivais, combates de meia-noite.

No início, as armas eram anéis e cintos tríplex, mais as biqueiras de aço que anexaram às botas. «Depois arranjámos licenças para tacos de basebol e sempre que derrotávamos alguém levávamos-lhes as facas, as pistolas e os casacos de cabedal. Descosíamos as bandeiras da confederação e substituíamo-las por americanas.»

Um ano depois, tinham dominado os Champs Élysées e agora juntavam-se em Les Halles, bem no centro da cidade. Paris era invadida por um novo estilo musical e um novo grupo: os skinheads, também racistas, e bastante fáceis de identificar. «E foi aí que começou a verdadeira caça.» Aos Ducky Boys tinham-se juntado outros grupos que queriam combater as ideologias nazis, feitos sobretudo de gente que tinha chegado de fora – armenos, jugoslavos, argelinos. «Estávamos no tempo da Guerra Fria, havia muitas ideias em oposição e não era como agora, em que parece que está tudo adormecido. Por 1986, devíamos ser uns 30, mais coisa menos coisa.»

O combate das ruas de Paris não passava despercebido à imprensa francesa, e até a algumas publicações internacionais. Cada confronto era relatado nas páginas do Le Monde e do Libération, e Rocky guarda orgulhosamente esses artigos de jornal. Quando Alain Juppé, então deputado da Assembleia Regional de Paris, os referiu numa sessão sobre segurança pública, o nome espalhou-se pelos cantos do mundo. A revista Paris Match dedicou-lhes uma grande reportagem em 1987, que arranca assim: «Rocky, o chefe dos Ducky Boys, reina no bairro de Les Halles. São mestres em artes marciais e no manejamento de tacos de basebol – e treinam-se como verdadeiros atletas. Como em Nova Iorque, Paris foi tomada por gangues, e nenhum manda mais do que o do português.» A revista Globe também falou deles em 1990: «Eles são o terror dos skinheads e dos fascistas de Paris. Rocky, o português, controla Les Halles. O seu credo é beber, foder e lutar.»

Num livro de Patrick Louis, professor de Ciências Políticas no Instituto Nacional de Comunicação de França, sobre tribos urbanas, os Ducky Boys são definidos como «a maior lenda que a França viu crescer nas suas ruas». A obra é de 2000, e aí já os rapazes há muito que estavam politizados: «Eles acreditavam que tinham uma causa de utilidade pública. Ao combaterem a extrema-direita tornavam-se a poesia das ruas e a escola dos pobres.»

A educação política dos Ducky Boys deve-se em grande medida a um intelectual de extrema-esquerda chamado Frank Tricheur, que fazia fanzines revolucionárias em que os Ducky Boys eram, inevitavelmente, as figuras de destaque dos textos. Aquilo que tinha começado como caça tornava-se agora ideologia. «A extrema-direita culpa nos outros as falhas da própria sociedade», diz ainda hoje João Cordeiro. «Era bom que, antes de recusarmos os refugiados, nos lembrássemos que somos nós que vendemos as bombas ao Médio Oriente. Ou que continuamos a ter uma sociedade que protege os mais ricos.»

No início dos anos noventa os Ducky Boys deixaram então de ser apenas caçadores de skins e passaram para a primeira linha de combate à extrema-direita francesa. «Como roubávamos as roupas aos neonazis, havia quem dissesse que éramos parecidos com eles. O símbolo do grupo que todos tínhamos tatuado – uns nos braços, outros nos lábios, outros nas pálpebras – é que nos diferenciava.» Isso e a ação estratégica.

Faziam o corpo de proteção aos encontros do SOS Racismo e à Festa do l’Humanité, o equivalente francês da Festa do Avante!. Guardavam os piquetes de greve e os comícios dos sindicatos. Atacavam os comícios da Frente Nacional, o partido da direita radical fundado nos anos 1970 e que Jean-Marie Le Pen estava a catapultar na década seguinte para resultados encorajadores. Maio era mês de pancadaria certa, com a direita a subir a avenida do Rivoli nas manifestações em honra de Joana d’Arc e eles a descerem com bastões até toda a gente dispersar. «Não posso dizer que fôssemos políticos. Mas apoiávamos os nossos amigos e esses estavam na esquerda.»

Três vezes foi Rocky preso. Por ter lançado uma granada de cal e pregos sobre a universidade de Assas, onde decorria uma reunião do Grupo União e Defesa, um movimento extremista. Também por ter esfaqueado um skinhead nos Champs Élysées. «Agredir um racista não é crime. Agredir um fascista não é crime. Eu sou um homem religioso, sei distinguir o bem do mal.» Cita a Bíblia, o livro de Deuterónimo, para explicar que é preciso eliminar os pecados capitais para «eliminar o mal no meio de ti». A terceira vez que foi preso aconteceu em Portugal, e contou isso mesmo ao jornal i, que fez uma reportagem sobre Rocky em 2014: «Fui a um bar em Bragança e, quando estava a passar, houve um indivíduo, que estava num grupo de quatro, e me deu um empurrão. Virei-me e fui pedir-lhe explicações.» A coisa descambou. «Quando fui a tribunal, apanhei quatro anos e meio de prisão, e cumpri dois anos e oito meses.»

Foi há precisamente duas décadas que Rocky decidiu pôr fim aos Ducky Boys. «Já não havia mais skinheads para caçar e os antifascistas, em vez de quererem andar à bulha, preferiam colar cartazes nas paredes. Os gangues, no final dos anos 1990, combatiam por território e pelo tráfico de droga. Nada disso me interessava.» Os pais planeavam voltar à terra e tinham ganho dinheiro para comprar casa e uns hectares de terreno. Instalaram-se em Cedães, Mirandela, som de passarinhos em vez de sirenes de polícia. Agora, andam documentalistas franceses e portugueses a propor-lhe longas-metragens sobre a sua vida. Andam ativistas a contactá-lo, querem que regresse a França. «Sei que os fascistas estão a crescer e vão começar a comer-nos. Mas tenho responsabilidades aqui. Se for lutar contra a extrema-direita quem é que toma conta das oliveiras?»