Sobrinho Simões

Vem de uma família de médicos e tem duas caraterísticas que ressaltam a um primeiro olhar: a curiosidade e a sinceridade. Nasceu no Porto, Cedofeita, em 1947, e nesta cidade, onde vive, fez o percurso escolar, incluindo licenciatura e doutoramento em Medicina. Foi então para um pós-doc em Oslo. Sentia-se demasiado próximo dos doentes para poder fazer clínica, e daí a escolha da Patologia, influenciada por Daniel Serrão. Casado com a médica Maria Augusta Areias, têm três filhos e seis netos.

Ninguém dá nada por ele, disse um tipo em Arouca, e não é verdade porque mal abre a boca ficamos pasmados a ouvir. A frase está certa se o virmos como um homem simples, sem trejeitos de sábio distante e inalcançável, porque é de uma proximidade imediata e genuína. Falo-lhe das camélias floridas pelo Porto todo e responde-me com a história das japoneiras, como chegaram cá, e Darwin entra logo na conversa mais o frade jesuíta Kamel e a quinta dos Ramos Pinto em Gaia. É Manuel Sobrinho Simões, o do «efeito Simões», aquele que ensina os alunos a encontrar os microcancros da tiroide com tal expertise que as estatísticas disparam.

Acaba de ser eleito pelos pares o patologista mais influente do mundo e diz que foi um miúdo gordinho sem graça nenhuma e que está um velho rabugento. É mesmo assim?
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Juro. Não falo da figura pública. Sou um performer, um professor. Se eu chegar a um palco ou a uma sala de aula ou a um curso, adoro que me percebam. A minha grande aspiração é estar a olhar para uns tipos que estão a perceber o que digo. Isto torna-me muito interativo e eu gosto de pessoas. E, portanto, em situação de professor ou de médico ou de treinador de miúdos que fazem patologia, eu sou extraordinariamente ativo e interessante, entre aspas, passe a imodéstia. No dia-a-dia, para a família, não tenho graça nenhuma. Quando era miúdo, não tinha graça nenhuma. Sou muito competitivo mas tinha pouco jeito, perdia em tudo. A única coisa que eu ganhei foi no pingue-pongue e aconteceu porque não puxava. Os adversários perdiam a cabeça comigo porque devolvia as bolas todas. Fui campeão universitário do Porto mas era muito pior do que os outros.

Também jogou hóquei.
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Fui guarda-redes suplente, no Vigorosa, um clube de bairro. Só vai para guarda-redes, no hóquei, quem não sabe jogar. E então suplente…

Pelo menos, andava de patins.
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Ah, isso sim. E andava de bicicleta. Eu sou esforçado. Joguei futebol nos amadores, mas mal, não tinha jeito. E tinha pouca graça porque era muito bom aluno, estudioso.

Era marrão?
_Era muito atento. Topei sempre muito bem os professores. Os meus apontamentos na universidade eram cobiçadíssimos e eu oferecia-os. Eram uma espécie de sebentas e eram fotocopiados. Eu ia às aulas todas e tomava notas. Adoro ir a aulas, quando os professores não são chatos. Distinguia bem o essencial do acessório, fui muito treinado nisso. Era o filho mais velho, o neto mais velho, o único rapaz, e fui treinado para ser muito bom. Era o que se esperava.

Foi sempre ótimo aluno, o melhor aluno.
_Mas isso não me dava graça. Eu não era muito marrão, mas… Nos meus versos de curso, feitos pelo meu cardiologista atual, Luís Maciel, ele diz: «É um grande marrão mas deixa de estudar dois dias antes do exame e vai para a boîte para fazer um figurão.»

Toda a gente estuda nos últimos dois dias.
_Eu não. Portanto, o Maciel diz que eu era um disfarçado porque já tinha estudado imenso antes, era um marrão.

Com tantas coisas que faz, tem de ter uma grande capacidade de organização.
_Eu tinha muito isso. Agora estou pior. Estou numa fuga em frente, a aceitar mais convites do que devia. Uma luta não sei contra o quê. Vejo-me aflito, não dou vazão. Os artigos, as conferências, os cursos… Antigamente, aceitava menos convites, o que não faz sentido. Agora, estou chato em casa, sempre com os papéis, a trabalhar. Porque é que eu aumentei o ritmo? Acho que é medo da reforma, que é, no limite, o medo da morte. É uma forma de iludir a morte.

O deixar de ter trabalho permanente?
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Exatamente. Estou a inventar, não tenho a certeza. Nunca fiz psicanálise mas sou muito amigo do Júlio [Machado] Vaz e até tenho uma tertúlia com ele e com o Jaime Milheiro. O Júlio, de resto, diz que eu sou um Édipo réussi, um Édipo que venceu o Édipo.

Na sua atividade, há outras coisas que pode fazer, a reforma não é o vazio.
_Claro, não sou dançarino nem desportista. Mas sou professor, adoro dar aulas e vou deixar de dar. Até podia arranjar, mas não quero ir para uma universidade privada. Quando acabar a atividade na Faculdade de Medicina como professor no ativo gostaria de ficar ligado à universidade. Gosto daquela coisa da primeira aula, gosto da última. Dou uma aula na última semana sobre uma coisa geral. Tenho muitos alunos, alunos bestiais que vêm mesmo às aulas teóricas, o que não é obrigatório. Mas à última não vêm. Numa aula dessas, tínhamos 21 alunos – o curso tem quase 300. Tiro sempre uma fotografia com os que estão, identifico-os e ponho-os no site. Hoje estava a ver as fotografias: «Qualquer dia já não vou ter isto.»

Começou há quanto tempo nessa angústia?
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Isso tem que ver com os netos. Na nossa família gostamos muito de ver as pessoas formadas. Eu não quero ver os meus netos nem as minhas netas casados, mas adorava vê-los formados. Como bons judeus sefarditas, os meus avós [diziam sempre]: «Tu tens de te formar.» A minha avó do Bombarral era sefardita. Eles são todos da Beira Baixa e o meu bisavô era médico e ficou com o lugar de médico, no Bombarral. Do outro lado, somos de Arouca. Quer de um lado quer do outro, aquilo que marcava era a pessoa ser formada ou não ser formada. Se estou a ler na varanda e vejo os miúdos passar para a praia, tenho aquela coisa de «se calhar, já não os vou ver formados».

Que idades têm?
_A mais velha é a Mariana, tem 10 anos, o mais novo é o Manelzinho, tem 3, e ao todo são seis. Eu não tinha percebido que ia morrer, e quando a Mariana nasceu percebi que sou mortal. O que é uma estupidez: o meu pai tinha morrido, eu fazia autópsias…

A julgar pela longevidade da sua família, vai ver os netos formadíssimos.
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Se eu sair aos meus… O meu avô do Bombarral morreu com cento e tal e a minha avó também morreu com 102. A minha mãe, com 87 anos, está estupenda.

O seu trabalho obriga-o a estar sempre atualizado. É isso que lhe «tira» tempo?
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É isso. E cada vez é pior.

Porque o fluxo da ciência é cada vez maior?
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Levo para casa a Science e a Nature. Aqui no Ipatimup leem todos online, mas como são simpáticos, eu sou velhinho e tal, deixam-me assinar em papel. Cada vez há mais artigos mais interessantes. A ciência teve um desenvolvimento exponencial. Mesmo no meu pequeno mundo, que é o do cancro e, dentro do cancro, o da tiroide, é impressionante! Como sou muito curioso, cada vez acho mais graça a coisas ao lado. Porque não sou um cientista, sou um professor, tenho de arranjar ligações interessantes do ponto de vista do estímulo da perceção, seja de um patologista ou de um aluno.

Por isso os seus pares o consideram o patologista mais influente do mundo?
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É o entusiasmo e a capacidade de ligar mundos. Fui, muitos anos, secretário da Sociedade Europeia [de Patologia]. Fui tantos anos que eles me disseram: «Manuel, why don’t you step elegantly down from secretary and become president?» Eu tinha criado uma rede na Europa. Comecei com uma Europa que era só a Europa Central e do Sul e apanho a transição para a Europa de Leste, como secretário e, depois, como presidente. Fiz as escolas de patologia em Craiova, na Roménia, em Cracóvia, na Polónia, em Ancara, na Turquia. Tentei fazer em Moscovo, foi uma barraca. Fiz em Hadrec Králové, na República Checa, na Charles University. Vou à Argélia todos os anos e vejo os casos difíceis de cancro da tiroide. Vou com eles para os sítios mais diferentes. No ano passado, íamos para os tuaregues, mas tiveram medo do perigo. Muitos brasileiros passaram por aqui e continuo a treiná-los; treinei imensos latino-americanos. Treinei muita gente das periferias. É por isso que ganho a eleição do mais influente. Eu não sabia que havia a eleição porque foi online. Recebi um e-mail do Mike Wells, professor de Leeds, a dizer: «Manuel, parabéns. Ganhaste a eleição do mais influente. Se quiseres vai ver ao link.» Eu não sei ir ver o link. Pedi à Fátima [secretária] para ir ver.

E percebeu que era fácil ir ver o link da revista The Pathologist?
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Era muito fácil e lá aparecia a minha carinha, com mais 99, e percebi que havia, há dois meses e tal, uma eleição online. Não sei como é que aquilo se passou. Eu tive os votos dos meus amigos daqui e dos espanhóis.

E de toda essa gente da sua rede…
_Sim, dos tais que conheci e treinei. Eu adoro isso, não faço por sacrifício. Dou aulas a alunos e faço cursos para patologistas que me dão um gosto extraordinário, pela coisa de aprender. Mas não sou um tipo em profundidade, faço muitas coisas. Trabalho muito em genética. Nós somos uma espécie acidental e acho imensa graça discutir com as pessoas, perceber como a gente se relaciona com as plantas, com os animais, como a gente domesticou os animais por causa da proteína… Mas faço isto num registo mais de divulgação do que de ciência. A minha única ciência é o diagnóstico do cancro da tiroide, que é um mundo muito pequenininho. Mas como estou interessado noutras coisas, quero ler o que é transversal.

Por que somos uma espécie acidental?
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Havia esta coisa do homo, tínhamos vindo dos macacos… Depois, o Homo sapiens tinha vindo do neandertal e a gente ia até ao Homo erectus. Tínhamos vindo de África, ninguém duvida disso, e havia uma lógica linear. In the back of the mind, as pessoas continuavam a achar que nós éramos uma coisa especial – influências religiosas… A grande dúvida era como é que a gente se tinha posto de pé. A teoria era que a nossa cabeçola tinha crescido e nos tinha dado capacidade e estratégias de fugir aos predadores, o que nos permitiu começar a ficar de pé. Quando passámos das quatro patas para andar de pé passámos a ter muito mais dificuldades. E depois ainda mais: para as mulheres terem as crianças – as crianças tinham cabeçolas enormes, porque a gente passou de 400 a 450 centímetros cúbicos, como os macacos, para um quilo e meio, 1500 centímetros cúbicos. Para vocês terem as crianças era o carago!

Por causa da cabeçola?
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Para sair. A Lucy, a Australopithecus, é como o homem, tem umas ancas muito estreitinhas e corre muito. As mulheres passaram a ter a anca muito larga, não podem correr com aquela velocidade. E nós tínhamos a ideia de que o cérebro se tinha desenvolvido antes dos membros. E os membros desenvolveram-se mesmo: somos a única espécie no mundo que pode correr 40 quilómetros. Mas a ideia era: desenvolveu-se o cérebro; o desenvolvimento do cérebro deu a capacidade de fazer o fogo…

… e de comer carne…
_… sim, porque não comíamos – apanhávamos raízes. O fogo também nos ajudou a proteger dos animais, dos predadores, porque antes subíamos às árvores. Quando ficámos de pé deixámos de poder subir às árvores. A teoria era esta: a cabeçola tinha crescido primeiro. Mas começaram a aparecer uns tipos com cabeça pequena. Primeiro, o Homo floresiensis, na Ilha das Flores, na Indonésia. Um tipo que era pequenino, mas de perna e de braço, pezinho e mãozinha iguais a nós. Simplesmente, a cabeça era pequenina: 450 centímetros cúbicos. E percebeu-se: isto não é a sequência Homo erectus. Então houve duas hipóteses: uns diziam que era por ser uma ilha, e é verdade que, nas ilhas, há fenómenos muito estranhos – há elefantes que ficam muito pequeninos, sardões que são muito grandes – porque são microcosmos onde a seleção natural não é tão habitual. A outra hipótese foi pior, quando disseram «são microcéfalos», são doentes. Isto foi há oito ou dez anos. Houve tipos a dizer: «Não, é uma espécie.» E no ano passado aparece, na África do Sul, o Homo naledi, um tipo – e são muitos – com 450 centímetros cúbicos de cabeça.

Sendo muitos, não podia ser uma doença?
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Não. Têm 400 ou 500 centímetros cúbicos [de crânio], mãos e pés iguais a nós, pernas também. Estes exemplos são prova de que fizemos imensas tentativas e houve algumas em que a cabeçola era pequenina. Somos uma espécie acidental no sentido em que houve muitas experiências, como há nos macacos, e para tudo, e depois saímos nós. Vingámos porque começámos a comer proteínas. Foi isso que nos transformou agora nesta coisa horrorosa: a biomassa humana é oito vezes superior à soma de todos os animais à face da Terra. Demos cabo de tudo: do clima, da água, da energia. A coisa mais consumidora de água e de energia é a produção de carne. Se associarmos isso ao consumo, estamos na tempestade perfeita. Se dissermos que queremos todos comer carne, estamos lixados.

Falou da domesticação dos animais. Porquê?
_Interesso-me muito pelo modo como domesticámos os animais. Quem estudou a domesticação do coelho foi gente aqui do Porto, do CIBIO – Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos. O diretor é o Nuno Ferrand, um tipo muito bom. As galinhas foram pássaros que trouxemos da Ásia, os cães e os gatos vêm do Médio Oriente e o coelho é o mais recente – tem 2000 ou 3000 anos. Os animais domesticados são diferentes no que respeita às enzimas e à alimentação, porque passaram a comer coisas diferentes. No caso do coelho, há genes ligados ao autismo. Os coelhos domesticados têm os tais genes diferentes da alimentação, mas a grande diferença é em genes com polimorfismos que, na espécie humana, se associam ao autismo. Um coelho manso é uma espécie de coelho autista, que deixa de fugir quando ouve ruído. Está-se nas tintas.

É a curiosidade que não o deixa parar de estudar? A produção de ciência é tão grande.
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É grande, exigente e pouco interessante, porque são pequeninos passos. Como não sou um cientista, a minha deriva foi para coisas de interface com a sociedade, para ensinar. Adoro ir a escolas falar com miúdos. E também gosto de explicar coisas aos adultos. Por exemplo, veja o caso do eye contact. Se estiver a olhar para mim, há algumas hormonas suas que sobem e as minhas também, mas se estiver a olhar para o seu filhote as hormonas ligadas ao afeto disparam. Quando há eye contact com cães, sobretudo com cadelas, acontece a mesma coisa, as hormonas também sobem. E são as mesmas. Agora ando interessado em plantas porque sobrevivem sem sair do sítio. Desenvolveram muitos mecanismos de sobrevivência, que as células cancerosas, depois, retomaram. Para sobreviverem, ficando muitas vezes ao sol e com seca e não sei quê, tiveram de desenvolver mecanismos. Como é que elas resolveram? Têm as sementinhas que mandam para o ar e que se desenvolvem quando caem num sítio mais húmido. Mas é uma luta.

E qual é a relação disso com o cancro?
_O cancro é a prova de que nós estamos a viver tempo demais. Nós, espécie humana.

Não estamos adaptados a viver tanto?
_E não sabemos se viremos a ser adaptados porque, como o cancro é uma doença das idades adultas, não interfere com a reprodução, portanto, não há seleção. As doenças genéticas más matam as pessoas ou tornam-nas não reprodutivas, são selecionadas negativamente. O cancro não interfere com a reprodução, porque aparece tarde. E como estamos a viver muito mais tempo, estamos permanentemente expostos às agressões ambientais, por um lado, e por outro estamos velhinhos e as enzimas são menos eficientes, não conseguimos matar as células. Nós temos muita capacidade de reparar e, quando não reparamos, as células morrem.

Os cancros em pessoas mais jovens são genéticos?
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São genéticos, mas não são genéticos hereditários. Há uma suscetibilidade hereditária e há fatores ambientais que determinaram alterações genéticas.

Recentemente, alertou para um excesso nos rastreios e nas cirurgias do cancro. Tornamo-nos mais defensivos do que é necessário?
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Tornámos. Mas neste caso o nós representa as classes medias-altas das sociedades ocidentais. Não tem nada que ver com a China nem com a Índia. Passámos a ter novas capacidades tecnológicas, com a imagiologia. Vemos coisas minúsculas. E se metermos lá uma agulha, conseguimos estudar as células das coisas minúsculas. Aquela coisa minúscula tem a potencialidade de ser um cancro, mas pode nunca vir a ser. Só que não sabemos.

É uma lotaria?
_De certeza que não é. Mas, para nós, por enquanto é.

Porque ainda não sabemos?
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E não vai ser muito fácil saber, porque tínhamos de fazer experiências em que metade das pessoas continuasse e a outra metade fosse tratada. Isso é a beleza da medicina da precisão. Tínhamos a medicina baseada na evidência, uma evidência estatística. Só podia ser dado um medicamento a uma pessoa se, numa experiência prévia de cem pessoas com aquela doença, se tivesse provado que o medicamento melhorava. Daí passou-se para a medicina personalizada: «Não me interessa a variação estatística de cem. O que me interessa saber, nestes cem, é quais são os 14 que respondem e os 25 que não respondem.» E há dois anos apareceu a medicina da precisão, uma iniciativa que Obama defende. Verifica-se toda a história da pessoa, os doseamentos, é o big data, determinado pelo desenvolvimento da bioinformática e dos grandes computadores e dos tipos que querem viver disso. Já há uma resposta muito negativa dos que dizem que isto vai dar cabo do que resta da medicina.

Da parte pessoal?
_Da parte pessoal, da chamada medicina da narrativa. A [médica norte-americana] Rita Charon tem-se batido por isso: «Atenção, isto é mortal. Estão a transformar a medicina numa coisa de precisão quando há muito mais do que genes e colesterol. Há uma coisa que é a história da vida.» Estamos num momento extraordinário da medicina, porque há estas duas coisas. Chegámos a este paleio por causa da história do Darwin. O cancro também é Darwin. Os cancros que vemos são uma pequena percentagem dos milhões de pequenos cancros que tivemos e que não foram bem-sucedidos.

Quer dizer que o nosso corpo…
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… está-se sempre a ver livre de coisas. É a mesma história da tosse: tossimos porque somos filhos dos que tossiam, os outros morriam engasgados.

No caso do cancro, os cancros bem-sucedidos são aqueles…
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… que nos matam. Mas não interferem com a nossa genética, e por isso não é uma doença que tenha tendência a diminuir. Vai ter tendência a aumentar, por causa da longevidade e da exposição.

Qual é a pergunta sobre o cancro a que ainda não respondemos?
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São duas perguntas. Qual é a causa? Como é que se trata? A que se desenvolveu mais foi «como se trata». Evoluímos imenso nisso. Hoje controlamos mais de 60 por cento dos cancros clinicamente manifestos.

Mas não conseguimos evitá-lo?
_Há muitas variáveis e muitas não são controláveis. Continuamos sem perceber porque, se calhar, é o resultado de uma evolução darwiniana de múltiplas causas, uma geometria variável. E também existe a sorte.

Há alguns fatores psicológicos?
_Na causa, temos a certeza de que não. Mas a imunologia é influenciada pelos aspetos psicológicos através dos mecanismos de defesa do hospedeiro. Temos respostas imunológicas de frenação que controlam o cancro, e temos pessoas com respostas imunológicas que o estimulam. O sistema imunitário às vezes é bom, outras vezes é mau. Mas evoluímos muito no sentido do diagnóstico precoce. E aí aparece a tal história do sobrediagnóstico.

Falou em sobrediagnóstico e também em mutilação excessiva. Porquê?
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Imagine que vai ao médico e queixa-se de andar nervosa, de ter mais ou menos pelos, de estar muito chata ou não sei quê. O médico manda fazer uma ecografia à tiroide. As ecografias evoluíram muito e, portanto, hoje apanham nódulos muito pequeninos. «Você tem um microcancro. Não se aflija. Geralmente não dá nada.» «Pode jurar-me?» E o médico não pode jurar. Embora só um em cem mil dê chatices, Tira-se tudo, fica sem tiroide, tem de fazer terapêutica de substituição, fica nervosíssima porque tem um cancro, as companhias de seguros não lhe fazem o seguro … Você entra numa tragédia. Na Coreia do Sul, onde o cancro da tiroide é o mais frequente, fizeram cirurgias sistematicamente, as senhoras ficaram todas sem tiroide, mas a mortalidade manteve-se. E o sistema nacional de saúde deles não aguentou. O Japão proíbe biopsias a nódulos com menos de um centímetro e as pessoas são seguidas com ecografias: se crescer, fazem a biopsia. E a mortalidade é exatamente a mesma da Coreia do Sul. Os tratamentos brutais, com cirurgias, tiroidectomias, etc., não diminuíram a mortalidade.

Isso acontece em relação a outros cancros?
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Acontece na próstata dos velhinhos. Se tiver falta de caridade, vai rapar a próstata a todos os velhinhos, porque todos os tipos de 80 anos têm, pelo menos, um micro[cancro]. Deixem as pessoas! E agora começamos a ter mais problemas com os carcinomas in situ da mama. O diagnóstico precoce, que apanha coisas muito pequeninas, é feito com métodos radiológicos. Alguns são ecografias que não põem problema nenhum, outros são raios-X ou outros processos cancerígenos. Temos de decidir, em termos de custo benefício, quando devemos começar a fazer mamografias. Sabendo que entre os 40 e os 50 anos a probabilidade é pequena, vale a pena fazer a todas as senhoras e sujeitá-las a uma radiação aumentada? A terapêutica no cancro da mama é estupenda. Melhorou-se imenso na cirurgia, na radioterapia, nos medicamentos.

E com menos sofrimento?
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Muito menos. A qualidade de vida melhorou imenso. Mas a estratégia de tratar à bruta mas bem tem sido mais eficiente do que esta frescurice de ter diagnóstico muito precoce, que têm o risco de overtreatment.

Como é que os médicos reagem a essa ideia?
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Os médicos estão muito treinados, e bem, para fazer prevenção e diagnóstico precoce. A prevenção é boa para tudo. Se uma pessoa não fizer disparates alimentares, não comer sal a mais, não se expuser ao sol nas horas de maior calor, não fumar, não beber álcool, isso é muito bom. Não é só para o cancro: é para a diabetes, para as coisas cardiovasculares, para os acidentes vasculares-cerebrais. Onde não há certezas é na definição de quando se deve começar a fazer exames de rastreio, qual a frequência e quais os comportamentos a seguir.

Então qual é o futuro?
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Nós também vamos resolver o cancro, não tenhamos dúvidas. Porque vamos só ter os das pessoas novas, que têm de ser tratados à bruta. E os velhinhos vão morrer com os seus cancros, mas vamos deixá-los sossegados. O problema é onde vamos meter os velhinhos que nos vão morrer de infeções respiratórias, de insuficiências cardíacas, falências sistémicas… e não do cancro. Também não morrem de Alzheimer nem de doenças neurodegenerativas. São doenças crónicas não mortais. A medicina geral e familiar tem de ser protegida, e temos de ter uma rede de cuidados continuados e paliativos. A minha ideia era separar as coisas: tornar a medicina geral e familiar uma área per se e a área dos cuidados continuados e paliativos também uma área a sério em que podia haver descentralização. Sou a favor da centralização dos hospitais, temos de ter menos e melhores, e uma rede de referenciação.

Não precisamos de ter tudo em todos os sítios?
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Se houver tudo em todo o sítio, os médicos não chegam a ver o número de casos suficientes. Deixei de me bater pela regionalização porque, conhecendo os políticos que temos, era uma tragédia.

Está preocupado com a ideia de fim?
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Não tenho aquela coisa que vejo nas pessoas de idade: «Não me importava de morrer se fosse sem sofrimento.» Não é esse o meu problema. É mesmo o fim de uma atividade, da utilidade social.

Está preocupado com tanta antecedência que, com certeza, vai criar alguma coisa para fazer entretanto.
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Eu sei. Se eu fosse um tipo com categoria real, dedicava-me mais aos netos. Tive o mesmo problema com os meus filhos. Viajei muito com eles, mas eram já grandes. Até aos 6 anos, não lhes achei grande graça. Sou muito egoísta. Como lidar com o fim de uma atividade que nos preencheu a vida? Eu sou professor. Esta evolução para o i3S foi muito boa, uma enorme alegria para mim, um avanço extraordinário. Ficámos com um centro de investigação e temos ali o [Hospital] São João, o IPO, as faculdades todas. Vou continuar a achar muita graça a trabalhar aqui, mas não é ser professor. Estou claramente assustado.

Entretanto os seus netos crescem…
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Já comecei a levá-los. Dou uns cursos na Sorbonne há 13 anos, para patologistas já adultos. Vêm tipos do Japão, da Nova Zelândia, da Austrália, da América do Sul. E sempre levei os meus filhos, primeiro ainda solteiros, depois casados mas sem filhos, e agora já vão os netos.

Conhece o mundo inteiro, com tantas viagens?
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Sim, mas sempre em trabalho. Não me lembro de fazer férias no estrangeiro. Na Turquia, fiz cursos em toda a parte. No mar Negro, em Trebizonda, que é o fim do mundo, estava um ex-jogador do Porto, o Bosingwa, e as pessoas só me vinham falar dele. Perguntavam-me se o conhecia. Fiz um curso espantoso em Gaziantep, na fronteira com a Síria, ao pé de Aleppo. A diretora de patologia tinha estado comigo aqui seis meses. Uma simpatia, a Suna Erkilic. O presidente da Turquia veio ao Porto, o Rui Rio perguntou se eu queria ir à receção e eu propus que ela fosse. Imagine: a televisão turca veio e, portanto, os filhos, e o marido, em Gaziantep, viram a mãe no Porto! Isto são histórias ao lado, no fundo estou a falar da recompensa de ser professor. Tenho a sorte de poder fazer isto numa área em que sou útil, que não me dá muito trabalho, do ponto de vista da preparação, porque eu vejo os casos difíceis deles. Vejo ao microscópio com eles. Eu tenho muita experiência, é um bocadinho arriscado, mas sempre fiz isso e daí a nossa grande proximidade. E mandam-me casos de consulta. Voltamos ao mesmo: por isso tudo fui considerado o mais influente.

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OS OLHINHOS DOS OUTROS A BRILHAR

«Eu tenho prazer por interposta pessoa. Por isso sou professor, por isso levo pessoas nas minhas viagens. Por exemplo, estive na Patagónia, primeiro com a minha filha, e depois gostei tanto que voltei com a minha mulher. Ver brilhar os olhinhos dela e dos filhos e, agora, dos netos… Adoro ir aos mesmos sítios, vou sempre aos mesmos restaurantes. Sou um gajo muito medroso. Tenho medo da noite, do gás, da eletricidade… Tenho medo de tudo. É engraçado como eu, que não sou burro, com outras pessoas deixo de ter medo.»

«E NINGUÉM DÁ NADA POR ELE!»

«Aconteceu-me uma história com graça. No fim de semana a seguir a ser anunciado aquilo de ser o patologia mais influente do mundo, a minha mulher estava em [Vila Praia de] Âncora e foi ao supermercado onde compramos as coisas. O homem do supermercado deu-lhe os parabéns: «O senhor doutor não veio? Muitos parabéns, recebeu aquele prémio!» Estava um tipo encostado no balcão e disse assim: «E ninguém dá nada por ele!» Foi pela positiva, está a ver? A dizer que eu sou um gajo simples. É uma história do caraças!»