Saudades de todas as peças que não cheguei a ver

Notícias Magazine

Estava eu a dar explicações sobre a minha ausência prolongada do Teatro de Almada e Joaquim Benite disse, impávido: «Não há nenhuma justificação para não ir ao teatro.» Estava a ralhar comigo e eu não tinha resposta. Porque é que não vamos ao teatro? Os horários, a lufa-lufa do trabalho-casa, o gigantesco apelo do sofá, mais as constipações e outros mal-estares, vou amanhã, vou na próxima semana, os desgostos e as preocupações, blá-blá-blá. Nada que não seja demolido quando estamos sentados numa sala com dezenas ou centenas de pessoas em volta, e o palco vazio se enche de atores, palavras, luz. Esse deslumbramento de ter alguém na nossa frente numa entrega total, a contar-nos uma história, sem truques nem cortes nem retoques. Ali, exposto ao nosso olhar.

É uma atividade humana com milhares de anos e que floresceu em todas as sociedades, tão natural nas crianças: e agora eu era o herói e tu estavas em perigo e eu salvava-te.

E então saí de casa numa noite fria e fui até à melhor sala de espetáculos do Poço do Bispo, como lhe chama o Miguel Seabra, a alma do Teatro Meridional. António e Maria. Lobo Antunes e Rueff. Mesmo antes de entrar encontro amigos, velhos e novos, já estou em casa. Conversas retomadas, recordações, abraços, chá e café que dão sempre conforto, bolo de chocolate também.

O milagre vem quando estamos todos sentados e as luzes se apagam. Maria Rueff, virada de avesso como o casaco que veste, uma hora e dez minutos em que nem por um momento pensamos se a cadeira é confortável, se a sala está fria ou quente. Maria, Celina voando sobre as nossas vidas, e nós a viajarmos com ela como num quadro de Chagall. Extraordinária Maria. Lotações esgotadas todas as noites, e agora de novo a levar pelo país fora o texto de Lobo Antunes, cosido – e tão bem – por Rui Cardoso Martins.

Noites depois, estou a descer a Rua do Carmo, embalada pela interpretação de Maria João Luís no Terno Pássaro da Juventude. Extraordinária Maria João. Vou a pensar isto rua abaixo, dou de caras com um amigo, homem do teatro, e já agora, do Teatro Trindade, que sobe ao Chiado vindo do D. Maria II, ocupado pelas Comédias do Minho. Ficamos a trocar impressões, ambos impressionados, e passa por nós uma amiga estrangeira que já não é estrangeira coisa nenhuma, de tantos anos e tanto amor que tem a esta terra. Ela vem do São Carlos, e não está a caminhar, é como se flutuasse, e diz: genial, o Luís Miguel Cintra é genial, aquela encenação dos Dialogues des Carmélites… e não ouvimos mais nada porque já está a acenar, quase a chegar à esquina do Rossio. E já vêm a descer uma professora de teatro e uma outra da Casa da Cerca, e ficam ali connosco. Vêm do Teatro Mário Viegas, encantadas com as marionetas da italiana Marta Cuscunà, sala esgotada, A Simplicidade Traída. Na rua passam outros que saíram das mesmas salas, uma turma de jovens que estavam no São Luiz a absorver o texto de Tennessee Williams. O teatro. O prazer de ver o que é bom, a quase ofensa quando não gostamos, porque queríamos gostar, queremos sempre, e sofremos com os artistas que ali estão para nós e que dão tudo por tudo.

«Parece que estamos no século xix», diz a professora, porque um encontro na Rua do Carmo com gente que saiu de quatro salas diferentes é um quadro tão divertido que nos põe a pensar no Eça. Depois ele vai à sua vida, as três descemos para apanhar transportes, e nos bolsos vão as próximas peças onde vamos cruzar-nos com outros amigos, outros desconhecidos. Joaquim, tinhas toda a razão. Não há justificação para não ir ao teatro.

[Publicado originalmente na edição de 14 de fevereiro de 2016]