Gostar de quem nos diminui causa-nos dor – às vezes até doença -, mas preferimos contentar-nos com o pouco que essa pessoa nos dá em vez de enfrentarmos o medo de ficarmos sós. Margarida Vieitez, especialista em mediação familiar e conflitos, desmonta estes mecanismos no livro Pessoas Que Nos Fazem Felizes (Ed. A Esfera dos Livros). O objetivo: ajudar os leitores a libertarem-se de relações destrutivas.
Parece óbvia a ideia de que sabemos quem nos faz feliz. Mas, na prática, não é tão simples como parece…
Nada simples. Temos grande dificuldade em sentir quem realmente gosta de nós porque crescemos a achar que amar implica sofrimento, sacrifício, dependência. E não precisamos de deixar de ser quem somos para termos uma relação de amor, de amizade ou do que for. Não temos de aceitar o inaceitável, de abrir mão dos nossos princípios e convicções. Cada vez acompanho mais gente que se anula para ser gostada, daí tanta doença mental, tanta depressão. A qualidade das nossas relações influencia de forma inequívoca o bem-estar emocional, psicológico, físico, a concretização dos sonhos. Temos de saber distinguir quem gosta de nós, quem diz gostar e mostra o contrário e quem não gosta de todo. E depois afastarmos as duas últimas situações da nossa vida.
E quando quem nos faz mal é um familiar próximo? Nem sempre é um conhecido ou um suposto amigo.
Serão esses os casos mais delicados, sobretudo se se trata da mãe, do pai ou de filhos – tenho tido alguns casos de filhos que abusam psicologicamente dos pais e outros, mais raros, que os maltratam fisicamente. Neste livro aponto alguns caminhos nesse sentido, porque só fazem connosco o que permitirmos. Se está a acontecer, temos de entender a razão. A pessoa até pode nem estar consciente de que o seu comportamento nos lesa, cada caso é único. Mas uma vez que se perceba que aquela pessoa não vai mudar, não deixa de nos magoar, humilhar, entristecer, chega o momento em que temos de decidir afastá-la, independentemente de quem quer que seja. Tudo tem um limite.
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Como sabemos que uma pessoa nos faz realmente bem? Já todos tivemos gente simpática, que nos põe nos píncaros, e afinal nos consome.
Logo à partida, aceita-me como sou. Não tenta virar-me de pernas para o ar nem está sempre a criticar-me e a sublinhar as imperfeições, até porque somos todos imperfeitos, as próprias relações são imperfeitas. Alguém que goste de nós tenta que sobressaia o nosso melhor lado. Interessa-se pelo que nos acontece, os nossos gostos, os nossos sonhos e impulsiona-nos a ir atrás. Quem gosta de nós desafia-nos, estimula-nos, confia. Está connosco sem exigir nada, a apoiar-nos nos momentos menos bons e nos de pura felicidade. Porque depois há amigos que dizem gostar de nós, estão lá nas horas más…
Mas são incapazes de ficar contentes quando nos veem felizes. É isso?
Sim. Porque não gostam deles mesmos, quanto mais de si! Não gostam nem reconhecem essa necessidade, o problema está sempre nos outros. E então puxam-nos para baixo. Afundam-nos num mar de lamúrias, sofrimentos antecipados e visões fracassadas da vida. Todos merecemos ter amigos de confiança, amores de confiança, colegas de confiança. Não devemos aceitar, por um instante que seja, viver um relacionamento em que não confiemos nessa pessoa. Pode causar-lhe maior angústia do que não ter ninguém e contar apenas consigo.
Isso também é não gostar?
É. Gera confusão, desconfiança, frustração, insegurança, tensão e um imenso desgaste físico e emocional. Faz-nos mal. Diminui-nos. Damos por nós a pensar quem será aquela pessoa, será que nos quer mesmo bem? Mas depois deixamos que permaneça quase sempre na nossa vida, porque parece que nascemos todos com uma necessidade imperativa de que gostem de nós a qualquer custo. Eu digo que quem gosta de mim não me tapa os olhos com medo de me deixar ver até onde posso ir. Não existe gostar pela metade, nem em part-time, nem às prestações. Ou se gosta ou não se gosta.
Apesar de tudo, o sentimento que gera é diferente do de sabermos que alguém nos detesta e nos magoa assumidamente.
Porque aí não há confusão. Nenhuma contradição entre o que essa pessoa diz e faz. É inevitável lidar com gente tóxica no dia-a-dia, inclusive na nossa esfera mais privada, daí ser tão importante aprender a identificar quem vem por mal. Se tem poder sobre nós, cabe-nos impedir que nos influencie. Não permitir que nos roubem a alegria de viver com um sofrimento inútil. Escolher gente e emoções que nos façam bem. Se no trabalho houver quem nos magoe, temos de perceber se se trata só de uma fase má e podemos gerir o conflito com algum distanciamento – a nossa vida não é o trabalho – até encontrar uma alternativa. Se nos convencerem a deixarmos de ser quem somos para ter afeto, não devemos acreditar.
Quem gosta muito de nós não nos quer mudar?
Aceita-nos exatamente como somos, na totalidade, com as nossas perfeições e vulnerabilidades. Aceita a nossa essência, as vitórias, as derrotas, e faz tudo para estimular o sucesso, sem humilhar nem pregar rasteiras. Claro que há caraterísticas que nos são mais ou menos difíceis de encaixar, mas quem gosta recebe-nos por inteiro.
Mesmo se temos tendência a fazer escolhas erradas e é para o nosso bem?
Estamos todos cá com uma missão, a nossa verdade, a nossa própria personalidade. Quem diz que a sua verdade é mais verdadeira do que a minha, e que por isso estou no caminho errado, não pode gostar de mim. Amar não é querer que o outro seja um clone de si mesmo nem pressioná-lo a fazer algo que não quer fazer.
Como atrair pessoas nutritivas para a nossa vida? Às vezes parecemos um íman do contrário…
O princípio fundamental é ter amor-próprio: muitas pessoas presas em relações empobrecidas têm a autoestima fragilizada. Atraímos aquilo que acreditamos merecer e, sendo assim, temos de acreditar que merecemos tudo. Relações plenas, gratificantes, nunca migalhas. Porquê ter migalhas? E não é só nas relações amorosas que isto acontece. Há quem seja maltratado todos os dias, fique doente fisicamente, e ainda assim escolha manter essas pessoas na sua vida por querer tanto um companheiro, colegas, amigos. Morremos de medo de ficar sozinhos, então preferimos ir dando oportunidades a romper laços que nos fazem mal.
Contentamo-nos com migalhas por acharmos que não merecemos mais?
Justamente. Os outros só nos dão aquilo que aceitamos, tratam-nos como deixamos que tratem. Se não nos satisfizermos com essas migalhas de afeto, atenção, respeito, comunicação, apoio ou do que for, provavelmente irão dar-nos tudo. É a minha atitude diante de como os outros me tratam que determina a influência que têm sobre mim. E neste ponto somos pouco exigentes.
É urgente uma educação para os afetos, a começar na escola?
Por não haver nada assim é que existe tanta violência na adolescência, tantos casos de abusos no namoro, tanta violência doméstica e dificuldade em pedir ajuda. São raros os educadores que ensinam às crianças o que é o amor, o respeito, a lealdade, como se gere um conflito, e então crescemos a admitir afetos pobres. Sobretudo as mulheres aceitam muito estas missões. Só serve para se desencontrarem de si nesta luta para mudar quem não gosta delas. Porquê contentarmo-nos com um grão de areia quando podemos ter a praia toda onde passear?
Se temos o dever de ser felizes, por que razão há tanta gente infeliz?
É verdade, os índices de depressão são chocantes e Portugal está no topo ao nível da doença e da venda de ansiolíticos. As pessoas estão presas a crenças, a deveres, a medos, a culpas. Têm dificuldade em expressar o que sentem e ainda mais medo de não voltarem a ter amigos, de não voltarem a encontrar um amor. Então escolhem relações sem sentido. Negar é mais fácil.
Temos medo de ser felizes?
Temos muito medo de perder a felicidade. Mas também me parece que isso tem que ver com o facto de a pormos nas mãos dos outros: podem desaparecer e levá-la com eles, daí a insegurança. Quando a pomos na nossa mão tornamo-nos responsáveis por ela. Somos pessoas inteiras, não gomos de uma laranja à procura de outros gomos.
Isso quer dizer que não existem pessoas certas e erradas? Almas gémeas? Metades de nós?
São tudo conceitos muito redutores do nosso eu, deixam no ar a ideia de que não somos completos sozinhos. Nós somos inteiros. Queremos ser amados, ter relacionamentos saudáveis com outras pessoas, mas que também elas sejam completas e nos estimulem a ser ainda mais inteiros, não metades suas. Gente que nos engrandeça. Considerarmo-nos partes de alguém é meio caminho andado para aceitarmos que influenciem a direção que queremos seguir na vida.
O que é ser feliz? Tem de ser mais do que a ausência de depressão…
É uma escolha que fazemos a cada momento, e às vezes não fazemos por sermos tóxicos para nós mesmos, sempre a queixarmo-nos de tudo e todos. É uma atitude na vida. É abrir a bagagem que carregamos há anos, tirar tudo cá para fora e arrumá-la de novo apenas com coisas que nos fazem bem. As emoções menos boas também têm aspetos positivos, quanto mais não seja o de nos fazer reagir perante a adversidade. Mas há que escolher acordar de manhã e sentir gratidão por estarmos vivos. E quem faz isso? A maioria prefere abrir os olhos e ir logo ao Facebook ver quantos dos seus duzentos «amigos» fizeram like no último post.
As redes sociais vieram aligeirar conceitos importantes como os de amizade, afeto, confiança?
Sem dúvida nenhuma. Os afetos constroem-se em relações pessoais, não em relações virtuais. Numa sociedade dita de comunicação, a solidão nunca foi tão grande. Criam-se imagens para corresponder às expetativas dos outros, máscaras que acabam por cair com o tempo, e às tantas já nem sabemos quem nos faz bem. Que tal construir relações pessoalmente? Rodearmo-nos de gente mentalmente saudável? Arranjar tempo para estar com os amigos? Sermos audazes e presentearmo-nos por cada conquista nossa? Libertarmo-nos da necessidade de aceitação dos outros? Aprender a perdoar? Há tanto que podemos fazer e preferimos ficar fechados entre quatro paredes, enredados em sombras. Nós merecemos ser felizes.
A AUTORA
Há mais de vinte anos (tem 48) que Margarida Vieitez trabalha como especialista em aconselhamento conjugal e mediação familiar e de conflitos. Formada em Direito, trabalhou em direito da família e fez seis pós-graduações, entre as quais Mediação Familiar, pela Universidade de Sevilha, Mediação de Conflitos e Saúde Mental. Orienta vários cursos de Mediação Familiar no Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Em 2008 foi nomeada para o Prémio Mulher Activa, é consultora de diversas instituições e colabora regularmente com os media. É fundadora dos projetos Espaço Família e Love Doctors no Facebook.