Há 69 anos, um chocolate a derreter junto de um radar ativo culminou no invento de um forno especial, que cozinha alimentos agitando as moléculas por ação de microondas. Os primeiros eram grandes, caros e pouco práticos. Os modernos têm estilo e fazem milagres na cozinha.
Quem usa o microondas só para descongelar piza não imagina o quanto ele agiliza a vida das famílias modernas. A aceitação demorou, entravada pelo medo de possíveis efeitos nocivos para a saúde. Isso explica que tenha sido inventado há 69 anos e levado mais de 30 a democratizar-se nos lares de todo o mundo. Um atraso que não impediu o microondas de ter hoje a mesma idade de Elton John, nem de ser mais aclamado do que o músico pelas pessoas com falta de tempo: meia dúzia de minutos, um punhado de ingredientes, e qualquer um é capaz de brilhar à mesa com um caril de frango ou um soufflé de queijo, seguido de bananas flambadas e arroz-doce.
«Uso bastante o microondas no dia-a-dia. Poupa-se tempo e energia, suja-se menos louça (logo, gasta-se menos água), a forma de cozinhar é muito saudável. Este tipo de cozedura praticamente não altera o sabor dos alimentos, pelo que é necessário pouco sal para temperar, quase nenhuma gordura e os alimentos perdem poucos nutrientes», adianta Idalina Baptista, 47 anos e autora do blogue Aroma de Café, onde partilha com os outros o seu gosto antigo pela culinária. Foi há cerca de oito anos que a engenheira civil decidiu comprar um microondas, depois de a filha nascer e o tempo parecer ter encurtado para tantos afazeres.
«Aquecer o leite de madrugada só demora alguns segundos no microondas, quase que nem se acorda. Daí, comecei a usá-lo para descongelar alimentos. Numa urgência em que não tinha sopa para dar à minha filha, fiz uma em 12 minutos e mais umas papas de fruta cozida para a sobremesa», recorda Idalina. Com o tempo, descobriu novas potencialidades no eletrodoméstico, que ainda hoje usa para fazer sopa, além de pipocas, maçã assada, massa (sobretudo aletria), bolos e coberturas, omeletas, batatas a murro (prontas em seis minutos e menos gordurosas que as originais), cozer bacalhau para pataniscas e derreter chocolate (o banho-maria já era).
«Facilita-me muito a vida. Hoje em dia seria difícil viver sem ele», garante a engenheira, rendida às maravilhas do microondas. Aos homens alérgicos à cozinha, aponta, oferece alternativas simples aos cereais e à comida de lata. A ela, que é mulher de carreira e mãe, dá-lhe horas preciosas para desfrutar em família. «Há uns anos lia-se que as microondas poderiam fazer mal à saúde e que alteravam os alimentos, tornando-os nocivos. Conheço gente que ainda não tem, e não usa, por medo. Eu cá sempre pensei que se ele existe há tantos anos, e já lá vão 69, houve tempo mais do que suficiente para testar se provoca doenças», desdramatiza com humor.
Em 2009, as ondas eletromagnéticas foram eleitas pela Associação Britânica de Ciências uma das dez invenções que mudaram o mundo, a par dos cartões de crédito, o GPS, o código de barras, o walkman, a playstation, as comidas pré-preparadas, o serviço para troca de mensagens curtas (sms), as redes sociais e as sapatilhas.
O fenómeno do microondas tornou-se idêntico ao da internet e do telemóvel: quem se habitua a usá-lo dificilmente passa sem ele. Aconteceu com Madalena Ribeiro, tradutora de 42 anos de Vila Nova de Gaia e autora do blogue culinário A Panificadora Ribeiro.
«O microondas é um bom auxiliar. Ainda prefiro o fogão para cozinhar, ou o forno, mas utilizo-o para preparar o pequeno-almoço todos os dias, aquecer café com leite, descongelar o pão em meio minuto ou aquecer o almoço. Também o uso para gratinar e aquecer molhos», enumera, rendida à rapidez naquelas situações concretas. Numa noite em que o velho microondas se avariou, Madalena comprou outro no dia seguinte, tal era a falta que lhe fazia para aquecer pequenos-almoços e lanches. «Houve uma altura de grande medo face aos potenciais malefícios e eu própria acredito que possam existir, apesar de não ter dados para afirmar que faz mal à saúde», concede. Na dúvida, deixa passar uns instantes antes de consumir o que tira de lá e não faz um uso muito intensivo.
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Inovar sem medos
O receio da tradutora parecia ter fundamento no início da década de 90, quando um estudo realizado pelo cientista Hans Ulrich Hertel sugeria que a cozedura alterava os nutrientes, as moléculas alimentares e o sangue dos participantes, o que poderia afetar a estrutura biológica celular e deteriorar a saúde. Também o médico Gabriel Cousens, no livro A Cura da Diabetes Pela Alimentação Viva, relatou um processo movido contra um hospital de Oklahoma, EUA, depois de uma paciente operada ao quadril ter morrido de uma transfusão de sangue aquecido no microondas. Ao fim de todo este tempo, no entanto, não existe informação científica suficiente que comprove a manutenção de nutrientes nos alimentos confecionados no microondas. Nada provou, em definitivo, que o uso contínuo seja prejudicial.
«Cozinhar no microondas não faz mal à saúde. Se calhar até degrada menos os alimentos, porque estão muito menos tempo a cozinhar do que numa fonte de calor normal», desmistifica Amélia Pilar Rauter, especialista em Química Orgânica de Produtos Alimentares e docente na Faculdade de Ciências de Lisboa.
Levada pelos afazeres profissionais e a falta de tempo crónica, a professora é uma utilizadora incondicional do microondas. No trabalho, usa-o para abreviar reações químicas e conseguir, num par de horas, o que antes lhe demorava um dia inteiro a observar. Em casa já nem cozinha: todos os dias chega tarde, estafada, aquece qualquer coisa em três minutos e encerra a questão com o pragmatismo que a caracteriza.
«No início houve medo porque as radiações inspiram respeito. Eu própria resisti até perceber que era seguro, que é só um tipo de calor diferente que coze as substâncias de dentro para fora», revela a especialista, ciente da simplicidade do funcionamento: o interior do forno alberga uma válvula chamada magnetron, que converte eletricidade em microondas. Uma vez sujeitas a essas ondas curtas de alta frequência, as moléculas de água dos alimentos entram numa rotação furiosa, colidindo e gerando calor. «As pessoas têm vidas atribuladas, sobra-lhes pouco tempo para cozinhar», nota Amélia Rauter, apontando o estilo de vida do século XXI como responsável pelo êxito do microondas. «Precisamos de coisas rápidas, senão andamos num stress desgraçado.»
Patrícia Almeida Nunes, coordenadora do Serviço de Dietética e Nutrição do Hospital de Santa Maria, concorda com a visão prática da docente: «Para os homens, em especial os que vivem sozinhos e não gostam de cozinhar, é uma ajuda para aquecerem as refeições compradas fora de casa e reconstituírem outras congeladas e refrigeradas. Também ajuda as mulheres com atividades profissionais muito ativas, e mesmo as donas de casa estão rendidas», sustenta a dietista e autora do livro Uma Especialista em Nutrição no Supermercado, partidária de aliviar os nervos com bons eletrodomésticos.
Patrícia lembra-se de usar o microondas regularmente desde os anos 80, várias vezes ao dia, para aquecer leite, café e sopas, descongelar alimentos, cozinhar pratos simples e preparar uma sobremesa de maçã e canela que a família adora. «A confeção pode significar menos gordura e açúcar e, aí, surge uma das grandes vantagens, aliada ao fator tempo», sublinha. Não há vencedores nem vencidos entre microondas, fogão e forno, «todos se complementam». Se a dietista continua a preteri-lo em pratos elaborados, tal deve-se apenas a uma falha de funções no aparelho que comprou. «Para os croquetes, por exemplo, não tenho a opção que permite que eles fiquem crocantes e adquiram uma crosta semelhante à que ocorre na fritura ou no forno.»
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Fiel amigo na cozinha
Foi em 1945, num acaso que lhe derreteu uma tablete de chocolate no bolso ao aproximar-se de uma válvula de radar ativa na empresa Raytheon, onde trabalhava, que o engenheiro Percy L. Spencer descobriu que as mesmas ondas usadas para detetar aviões em voo davam para aquecer alimentos. Inventor curioso, com 120 patentes registadas em vida, percebeu as implicações do ocorrido e logo se lembrou de fazer pipocas e depois um ovo, que explodiu com a pressão. No ano seguinte, a Raytheon patenteou o processo de cozinhar com microondas e, em 1947, desenvolveu o primeiro forno comercial, o Radarange, com 1,70 metros de altura e 340 quilos, arrefecido a água, que produzia cerca de três vezes mais radiação (3000 watts) do que os microondas atuais. Desde então perdeu tamanho, ganhou tecnologia, um look moderno e conquistou o seu lugar em casa e nos laboratórios de pesquisa científica.
«É um auxiliar insubstituível na cozinha. Bem utilizado, consegue regenerar um prato ou produto na perfeição, seja por descongelação ou por aquecimento. Outras tarefas são também simplificadas, como aquecer leite e derreter manteiga, e pessoalmente uso-o várias vezes ao dia para descongelar algumas coisas, aquecer pratos de sopa para as crianças e reaquecer arroz e gratinados», revela Fernando Melo, gastrónomo, jornalista na área, crítico de vinhos e ex-investigador em física, entendido nos prazeres da mesa. Na parte que lhe toca, selou um pacto de amizade com o microondas de que não se envergonha. Ainda que continue a eleger o fogão na hora de confecionar.
«Cozinhar é, por definição, destruir. Proteína, fibra e molécula transformam-se nesse processo coletivo a que chamamos cozinha, dando origem a alimentos mais digeríveis, com sabores e aromas fundidos.» No caso do microondas, diz, a utilização culinária é relativamente pouco interessante face às fontes tradicionais de calor. «Não há apuramento de sabor e o processo acaba sempre por ser excessivo, secando carnes e peixes por exposição exagerada e desigual», explica Fernando, arrebatado pelo ritual das preparações, temperos e processamentos que só a verdadeira cozinha proporciona.
Idalina Baptista recorda-se, a propósito, de um apontamento no livro A Fórmula do Ambiente, da jornalista canadiana Alex Shimo-Barry, que ressalva precisamente o facto de os microondas não serem adequados a todos os tipos de cozinhados, apesar de eficientes e de pouparem energia e emissões de carbono – um estudo do American Council for an Energy Efficient Economy estima que utilizem menos dois terços de energia do que um forno convencional, poupando 25 quilos de dióxido de carbono por ano se nele se confecionar um quarto dos cozinhados. Por outro lado, insiste Alex, há outros alimentos particularmente adequados a este eletrodoméstico. «Pode usar-se para cozer legumes no vapor, batatas em cinco minutos e ferver água num instante se estiver com pressa.»
Cristina Rodrigues, 29 anos, é uma mulher assim, apressada. Ama de cinco meninos, passa os dias a correr das 7h30 às 19h30 para dar conta de tudo, incluindo da casa, de si mesma, do marido, dos trabalhos de artesanato que faz por encomenda e das invenções culinárias, que adora. Sempre conheceu o microondas como essencial numa cozinha e nunca foi imune aos seus encantos. «Uso-o bastante para descongelar, para aquecer refeições, água para as papas dos bebés e fazer refeições e sobremesas como pudins, bolos, pipocas, batatas “fritas”, arroz e carnes de frango e peru», informa. «Acredito que incentiva um pouquinho mais os homens que fogem de cozinhar e, a mim, faz-me ganhar tempo para outras tarefas.»
Aquela mesma convicção – a de que o microondas facilita imenso a vida das mulheres, não a destreza masculina – tem-na Maria José Rosado, rececionista da indústria hoteleira de 42 anos e artista dos tachos no blogue A Cozinha da Risonha. É entre raspas de laranja, colheres de gengibre e canela moída que melhor solta a imaginação e os nervos, em jeito de terapia. Se no meio puder simplificar, tanto melhor. «Nos dias de hoje, a poupança de tempo conta muito. Uso o microondas várias vezes ao dia, sobretudo para aquecer refeições, fatias de pão e uma chávena de chá ao final da noite», especifica esta cozinheira de mão cheia, que faz ainda beringelas à parmegiana, espinafres com ovo, bolo de chocolate, maçãs com nozes, doce de figo com especiarias, castanhas assadas, puré de abóbora e inúmeras outras receitas que vai inventando.
«Experimente fritar uma fatia de bacon na frigideira», desafia Maria José. «Depois experimente colocar outra entre duas folhas de papel absorvente, leve ao microondas e veja a diferença: o mesmo resultado e sabor, só que a fatia do microondas está sequinha e sem gordura, ao passo que a outra…» Em todo este tempo o fogão continua a ser o primeiro amor, apesar de o microondas vencer em rapidez, pragmatismo e facilidade de limpeza. «As pessoas começaram a perceber que aquilo não é o diabo em forma de máquina», resume a utilizadora. «Tenho o exemplo da minha mãe: quando lhe ofereci o primeiro microondas até tinha medo de olhar. Hoje não passa sem ele.»