Lembro-me do meu primeiro título de jornal. Andava na escola primária, 1ª classe, 1955. O título mete corrida de automóveis, mas hesito em qual. Foi no dia dos meus anos, em maio, com o italiano Alberto Ascari, campeão mundial de Fórmula 1? Talvez não. Era um teste em Monza, Itália, autódromo vazio e foram procurá-lo. O Ferrari emprestado (ele já corria pelo Lancia), travagem marcada no asfalto, carro virado e ele por baixo. Hmmm, se calhar são memórias também emprestadas pelo meu primo Google…
O título deve ter sido o do acidente duas semanas depois: 24 Horas de Le Mans, França. Mike Hawthorn, o campeão de cabelo platinado (esse vou vê-lo, três anos depois, no Porto, a semanas de morrer noutra corrida), ultrapassa um Jaguar. Este guina para a esquerda e serve de rampa para um Mercedes descolar. Estou a ver o voo, um rasto cinza a varrer as bancadas: 83 mortos. Sim, também são memórias emprestadas, do Youtube, outro primo…
Que título, então, foi o primeiro? Honestamente, não sei. O Ascari, talvez só conversa do meu pai ao jantar, deve ter-me preparado para o grito da primeira página do Diário de Luanda, dias depois. Em todo o caso, aprendi, por aqueles dias, o essencial dos jornais. A especialidade são tragédias e o prazo de validade falsamente curto. As notícias ficam-nos a moer e reaparecem ao longo da vida em flashes. Frequentador de hemerotecas, sei o efeito maravilhoso de cair sobre um título que lá atrás me abalou.
A maravilhosa invenção que é a Net torna domésticas e quotidianas essas epifanias. Agora, reencontro-me no acaso diário do computador. Essa facilidade tem o reverso de poder baralhar-me o passado. Foi podendo saber tanto sobre Alberto Ascari que o tornei talvez mais importante na minha infância do que foi. No dia em que morreu, ele apareceu em quatro linhas no Diário de Lisboa, na última página, nas notícias telegráficas. Já confirmei.
Teriam reservado maior espaço em Luanda? Entretanto, sei que Ascari, quatro dias antes de Monza, correndo em Monte Carlo, derrapou no óleo do Mercedes de Stirling Moss e caiu no mar com o seu Lancia. Sapadores bombeiros tiveram de mergulhar para o resgatar. Tendo visto também Moss, três anos depois, no Porto, não vos garanto que não vos venha a dizer que sei disto desde a minha infância.
Há dias, numa notícia qualquer reencontrei Lech Walesa, o sindicalista polaco. Depois de o conhecer, ele já foi muita coisa, até presidente do seu país e Nobel da Paz. No inverno de 1970, eu tinha o melhor emprego do mundo. Estava no Havre, porto francês, e colocava placas de proteção nos depósitos petrolíferos. Trabalhava em andaimes a dezenas de metros de altura. Esse inverno era o mais frio há várias décadas e as tempestades de neve mandaram a minha equipa operária para a pensão, quarto e refeições pagas, à espera de bonança. Livros e o jornal Le Monde eram à minha conta e prazer. Conheci, então, os levantamentos iniciais dos estaleiros de Gdynia e Gdansk, portos polacos.
Frio e causa comum interessaram-me por um movimento que só se tornou célebre dez anos depois, quando o sindicato Solidarnosc foi fundado por um eletricista dos estaleiros do Báltico, Lech Walesa. Mas eu sei que já lera sobre Walesa, num quarto quente do Havre, com cristais de gelo na janela. Ninguém, nem os meus primos, me convencerão a procurar as linhas que Le Monde terá, então, escrito (claro que escreveu sobre ele, em 1970).
[Publicado originalmente na edição de 20 de março de 2016]