E depois desmontar tudo, seguir viagem. São assim as vidas da gente do circo, e Francisco Salgueiro faz parte delas há dois anos. Agora conta, na primeira pessoa, como percorreu dez mil quilómetros para fotografar as cerca de trinta companhias a trabalhar em Portugal. Senhoras e senhores, meninas e meninos, eis o maior espetáculo do mundo.
Nunca gostei de circos. Tinha medo dos palhaços. E durante décadas a minha relação com este espetáculo foi «eu não quero saber que existe, porque se pensar muito nisso algum palhaço pode acabar por saber onde moro e vir vingar ‑se por nunca mais lá ter ido».
Em 2010 comprei uma máquina fotográfica digital e comecei a fazer street photography. Queria, sobretudo, contar histórias. Depois de escrever dez livros, queria fazê‑lo de outra forma. Sobretudo, de forma mais rápida – escrever e editar um livro é um processo que me leva, no mínimo, uns oito meses, ao fim dos quais acabo extenuado. É como correr duas maratonas. Agora queria uma coisa que tomasse menos tempo entre a execução e o resultado final.
Nestes anos, fotografei bastidores de sessões fotográficas de moda, tradições tauromáquicas, momentos de solidão nas feiras antes de os clientes chegarem, travestis, combates de boxe…. Mas queria mais. Precisava de um tema diferente. Alguma coisa que nunca tivesse sido feita. Que o público não conhecesse.
Durante várias semanas a minha cabeça trabalhou horas extraordinárias para arranjar uma ideia. Original. E regularmente vinham‑me à cabeça os livros das aventuras de Os Cinco, de Enid Blyton, sobretudo aqueles em que as personagens conheciam pessoas que trabalhavam em circos ou viajavam em caravanas. Circos! Era isso. Pesquisei no Google e em poucos segundos percebi que não havia nenhum trabalho fotográfico extenso em Portugal sobre bastidores dos circos Teria de encarar vários palhaços – e o velho medo de infância –, mas valeria a pena porque teria acesso a algo que sempre me fascinou: o que estaria por detrás da cortina que separa o palco dos bastidores?
Na altura achei que só havia dois circos a trabalhar em Portugal. «Nem pensar» foi a resposta que me deram no primeiro que pedi para fotografar. Do outro responderam‑me semanas depois a dizer para tentar no ano seguinte. Doze meses?! Nova pesquisa. Afinal há mais de trinta companhias em funcionamento em Portugal durante todo o ano. Do norte ao sul do país. Do litoral ao interior.
O primeiro a responder‑me foi o Circo Dallas. «Venha quando quiser, amigo… estamos é na Madeira e só regressamos ao continente no final de janeiro.» A palavra «amigo» deu ‑me confiança. Comecei a disparar e-mails para circos, páginas de Facebook de apoio a circos e a telefonar diretamente para alguns. «Olá, sou fotógrafo e queria ir aí tirar fotos… aos bastidores.» Eu sabia que a palavra «bastidores» era sempre o ponto fraco da minha missão. Eles poderiam achar que fazia parte de uma associação contra animais no circo e impediriam qualquer acesso. «Nós temos má experiência com fotógrafos», disse‑me uma voz ao telefone. «Mas pronto, apareça aqui no Seixal no fim de semana. O meu nome é João e estou na bilheteira.» E lá fui eu para o meu primeiro circo: o Aquático Show Jorge Cardinali.
Pensei que tinha falado com a pessoa da bilheteira. Pensei que ainda teria de falar com o dono, que estaria na sua caravana, onde as casas de banho tinham torneiras de ouro, e contava o dinheiro que andava a ganhar, enquanto fazia festas a um gato persa. Mas ao chegar constatei que o João afinal era o dono do circo. Ele e a mulher Luísa Cardinali estavam de novo em Portugal depois de uma temporada na Turquia, onde faziam várias sessões por dia, quase sempre esgotadas. Tinham regressado e foi a primeira vez que ouvi duas frases várias vezes repetidas ao longo dos últimos dois anos: «As pessoas vêm cada vez menos ao circo. Isto está muito mau.»
Nesse dia, tudo o que eu pensava sobre circo mudou completamente: as pessoas que abriam as portas e picavam os bilhetes dos espetadores eram, uns minutos mais tarde, os artistas no palco e, no final do espetáculo, iam tirar a tenda. Eles faziam tudo. Tirando algumas ajudas extra, todos contribuíam não só para o espetáculo como para a parte técnica.
Comecei a ir várias vezes ao Aquático Show, depois ao Dallas, ao Nómada e em todos estes circos senti genuinamente interesse nas vidas dos artistas. Perguntava-lhes muitas coisas. Sem me aperceber, era isso que fazia que ficassem cada vez mais à vontade com a minha presença. Aos poucos passei do gajo que ia tirar umas fotos a «Olha, o Francisco está cá hoje.»
Juao Paulo Monteiro, filho do fundador do Circo Nederland, e a mulher, Soraia Didier, adaptaram a caravana para a filha, Sandra, de 7 anos, ter um quarto para ela.
Inicialmente, este projeto teve como objetivo tirar fotografias apenas aos circos na zona de Lisboa. Depois passei para um raio de cem quilómetros. Mas como poderia não ir aos circos em cujos cartazes se lia «Nereida, a mais jovem domadora de serpentes»? Ou «O único homem-bala de Portugal disparado a mais de 200 quilómetros por hora»?
Só que a máquina de promoção dos circos não é igual à dos cinemas e, por vezes, tentar obter o telefone de um circo era impossível. Foi fundamental a ajuda de algumas pessoas que já tinha conhecido nos circos e que tinham um irmão ou um primo que trabalhava onde eu queria ir. Bem como de Miguel Castro e Fábio Pedro, com as suas plataformas online de divulgação dos circos. Sem estas ajudas, jamais teria ido a todos os circos.
Já lá vão dois anos desde que comecei este projeto. Fui a todos os circos que existem em Portugal. Mais de trinta, num total de mais de cem sessões, já para não contar as vezes que fui apenas para estar, jantar ou almoçar com pessoas que aos poucos se foram tornando minhas amigas. Em 2014, fim de semana sim, fim de semana não, estava em zonas do país que muitas vezes nem o GPS sabia bem onde ficavam. Já devo ter feito mais de dez mil quilómetros de carro, uma ida à Madeira, outra a Barcelona, e está planeada uma viagem ao Irão, onde se encontra agora o circo Aquático Show. Assisti a espetáculos com dez espetadores. Estive em circos que já acabaram. E outros que se fundiram. Ou mudaram de nome. Já vendi fotografias deste trabalho em quase todo o mundo, como a revista chinesa Modern Weekly, a norte-americana Wired ou a francesa Science et Vie. E venci alguns prémios internacionais também.
Foram dois anos em que ganhei uma admiração e um respeito enormes por pessoas que trabalham em condições muito difíceis, sete dias por semana. Provavelmente este será sempre um projeto em aberto. Creio que nunca colocarei um ponto final. Irei acompanhar a vida destas pessoas durante muitos anos.
FRANCISCO SALGUEIRO
Tem 43 anos e faz assessoria mediática de figuras públicas. Publicou dez livros, dois dos quais bestsellers. Escreveu para vários órgãos de comunicação social, nomeadamente a Notícias Magazine. Em 2010, resolveu experimentar a fotografia. E em 2014 começou a fotografar circos. Com algumas das imagens deste projeto foi eleito Leica Star Photographer.
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