Ode sueca ao Sô Zé, o sapateiro da minha rua

Notícias Magazine

Os suecos querem reduzir o desperdício e isso vai ser lei no Orçamento de 2017. Reutilizar passou a ser um ato de modernidade.

 

Não sei se foi de propósito ou não, mas no meio da semana da Black Friday – a sexta-feira não negra como o nome podia indicar, mas santa para os consumidores e que se estendeu fim de semana fora – da Cyber Monday, a segunda-feira de descontos online, na loucura do consumo que encontra sempre mais uma forma de se manifestar, apareceu a notícia de que o governo sueco ia introduzir uma bonificação fiscal para quem arranjasse coisas partidas. Que coisas? Coisas, de sapatos a ferros de engomar.

Esta foi uma notícia viral, tomou de assalto as redes sociais, foram criados memes e vídeos explicativos nos jornais digitais. Afinal de contas esta era uma ideia nórdica, já trazia, à cabeça, um elevado grau de modernidade. Ou melhor, uma ideia pós-moderna, dessas que, mesmo explicadas, condensam as contradições da sociedade contemporânea. Explicando melhor, o governo sueco, que é composto por uma coligação de sociais-democratas e verdes, vai reduzir, no Orçamento do próximo ano, de 25 por cento para 12 por cento o IVA de arranjos de bicicletas, roupas ou sapatos.

Nos eletrodomésticos, frigoríficos ou máquinas de lavar, os consumidores podem apresentar como deduções o que gastarem a arranjá-los, o que, contas feitas no final, pode reduzir o custo de uma reparação em 87 por cento. O objetivo do governo é intervir na sociedade, desta feita na de consumo, para que deixe de haver a desculpa do «não vale a pena arranjar», para que se torne mais barato, de facto, arranjar um item partido do que substituí-lo por um novo. E que seja essa a escolha racional dos consumidores – que, já se sabe, são a face mais pragmática dos cidadãos comuns.

Em Portugal, esta medida talvez não tivesse tanto impacto como se espera que tenha na Suécia na mudança de hábitos, e poderia acontecer que seria um maior descalabro orçamental do que os 37 milhões de euros que vão pesar no Orçamento sueco. O termos ficado pobres e atrasados tanto mais tempo – ou não termos sido nunca verdadeiramente ricos – fez-nos mais modernos do que os outros, não tendo nunca abandonado os nossos sapateiros, as nossas costureiras, os faz-tudo, biscateiros que nos arranjam os eletrodomésticos quando avariam. Ou aquele avô que adora bricolage e ainda arranja os brinquedos partidos dos netos antes de irem para a reciclagem. Apesar de todas as lojas de chineses que proliferaram nas nossas cidades, é mais raro em Portugal esse culto do modelo do consumo imediato, do desperdício e do usa e deita fora.

Porque, na verdade, o que a coligação do governo sueco pretende é reduzir o desperdício e, com isso, diminuir ainda mais a pegada ecológica sueca, ao mesmo tempo que aumenta o emprego e reduz as importações. Não é coisa pouca, mas por vezes é com objetivos desafiadores que se conseguem resultados mais próximos do sonho. Como? É uma quadratura do círculo, mas é do melhor que já vi em política fiscal a sério, daquela que muda hábitos e intervém na realidade. Por um lado, os cortes de IVA nas reparações devem fazer criar uma indústria reparadora, com a criação de empregos para, por exemplo, novos imigrantes e uma classe sem grandes qualificações profissionais. Por outro lado, a redução do consumo de novos objetos ajudará, espera-se, à redução de emissões. Ao mesmo tempo põe-se um travão às importações de produtos de segunda categoria e fraca durabilidade, em função da compra interna de produtos melhores, mais caros, mas com maior durabilidade.

O mundo como o conhecemos, liberal e capitalista, angustia-se com a falta de crescimento, com o refrear do consumo, mas no fundo sabe que é este crescimento que o está a matar, ou, pelo menos, que o está a condenar a uma morte lenta. Mais que não seja por asfixia em dióxido de carbono. Os suecos querem mudar o curso das coisas. Mal sabia o senhor José, o sapateiro da minha rua de infância, que os tempos ainda haviam de vir ter com ele, e ele, mesmo cuspindo para o chão, ainda havia de ser um homem moderno.

[Publicado originalmente na edição de 4 de dezembro de 2016]