Querem saber a complexidade daquilo em que estamos metidos? Experimentem explicá-lo a uma criança de 8 anos.
Ao longo da semana foram aparecendo mais e mais imagens dos atentados de Bruxelas. (É interessante, esta frase vai-se modificando, o aposto indiciando o avanço do terror: Nova Iorque, Madrid, Londres, Paris, Istambul… Quase nem nos apercebemos, como nas fichas mórbidas, o avesso de um jogo do Monopólio.) As pessoas têm todas uma câmara no bolso, e isso terá repercussões para a imagem que nos fica dos acontecimentos. Em 2001, na pré-história do que vivemos hoje, tivemos de esperar que os profissionais nos dessem conta dos momentos de pânico. Houve coisas que nunca vimos, como o interior dos edifícios em chamas, os que ficaram presos lá em cima. E, se calhar, ainda bem.
Num desses vídeos amadores que passou logo na terça-feira na Sky News, há um menino, aí de uns 7, 8 anos, no aeroporto de Bruxelas. No centro da imagem. Um menino de tez escura, provavelmente indiano ou paquistanês, cabelo preto, muito preto. O atentado tinha acabado de acontecer, ainda havia um suave fumo branco nos corredores do aeroporto.
E o menino, ar assustadíssimo, a olhar para todo o lado com os gestos rápidos do nervoso. Rodando a cabeça, para a esquerda, para a direita, movendo o corpo como um todo. Um braço solidário, pelos ombros, o de uma mulher loura e gorda que o tenta acalmar. E ele ali, sozinho. Hirto. Quem estivesse mais atento percebia as lágrimas que lhe corriam, mas, ao longe, parecia um adulto enfrentando um problema. Tentando digerir o pânico.
Como a câmara era de um amador, e não de um jornalista, ficámos sem saber a história daquele menino perdido em Zaventem. Daquela mão que o acalmava. Do que vai acontecer àquela cabeça, depois de ter presenciado o terror com os seus próprios olhos, de o sentir na pele, das suas consequências – não sabemos, por exemplo, se teria perdido a sua própria família. Do lado de cá, deste longe que é tão perto quando estas coisas acontecem, o pensamento foge para ali, o coração aperta. A solidariedade eletrónica, através de uma imagem que passa na televisão.
Se ali estivéssemos o que lhe diríamos? O que há para dizer a uma criança de 8 anos que acabou de viver aquilo? Que sentimento terá ela senão o ódio? O ódio gerado pelo ódio. Sim, é isto. A loucura é tão grande… Como explicar a razão da morte de inocentes quando aquilo a que ele estará habituado, na escola, em casa, é que não fazer nada é a primeira garantia de não ser castigado? Dá para usar expressões maniqueístas – ah, os maus, os bons, essa é a linguagem dos desenhos animados a que estará habituado. Mas essas, se usadas de maneira muito simplista podem fazer-nos regressar à eterna questão que, no fundo, está na base deste terror que vivemos: nós e os outros.
Nós e os outros. Diferentes, mas iguais. É quando esta equação moderna se perturba que começamos a entrar na barbárie. Mas como voltar ao humanismo neste mundo de corpos estropiados, lágrimas vertidas, corpos no chão e meninos perdidos num aeroporto estranho? Definir democracia, liberdade, humanismo? Quando provavelmente o que mais apetece é vingança. Pode continuar-se a apelar à tolerância quando isso nos faz alvo fácil dos intolerantes? Como dizer que vale a pena respeitar o outro quando o outro se torna o nosso perigoso verdugo? Como descobrir argumentos que não nos aproximem dos nossos agressores? Querem saber a medida da complexidade desta situação? Tentem explicar a uma criança de 8 anos o que estamos a passar.
[Publicado originalmente na edição de 27 de março de 2016]