Querido Júlio,
Durante a noite de consoada, as palavras «suco da essência» foram proferidas por um dos meus familiares. Fixei e anotei-as no meu livro de notas, pois decidi que esta primeira crónica de 2016, seria um «ensaio» à volta dessas palavras. Faço, tal como tu, um xeque-mate ao inconsciente, para que este me traga o suco para dedilhar sobre o meu teclado numa desgarrada de sentidos lógicos e partilháveis. Nesta desgarrada, não sei como chego à essência, não sei como termino, mas sei que me vou deixando ir, até à barreira dos 3000 carateres.
Oiço muitas vezes, entre as quatro paredes do meu consultório, «amo, mas», «amo imenso, mas» ou «adoramo-nos, mas». E é assim que os casais se apresentam, colocando na descrição do seu afeto uma intocável palavra, como um pré-aviso à grandeza da sua relação. Muitos casais não querem ser confundidos com tantos outros que talvez não se amem (como eles), e isso é um ponto de honra no código «secreto» dos casais.
O «mas» vem geralmente acompanhado de uma variação, com uma declinação de entoação, como se o «mas» estivesse carregado de significado, mas ao mesmo tempo o acaso o tivesse colocado na elaboração da frase como uma espécie de bengala linguística. Sei que nem todos os «mas» são investidos do mesmo significado, ainda assim é curioso verificar que a comunicação não verbal me deixa por vezes bastante elucidada quanto à sua intenção.
Júlio, o que quero partilhar é o facto de muitas vezes o amor não ser o garante do desejo e até poder parecer um entrave. Se eu amo, então não devia ter dúvidas no que diz respeito ao desejo, certo?
O amor é a essência, o «condimento» que nos permite aproximar de um estado de felicidade plena, diferente para cada pessoa, que nos diz que o outro nos preenche a alma e a sua perda nos fará sofrer. Não é fácil amar, mas quando acontece achamos que amar pode tudo, garante tudo, é tudo. Já o suco, que chamarei aqui de desejo, surge no início de uma relação, geralmente sem esforço. Associamos o desejo ao amor, porque o torna excecional quando «tocado a quatro mãos», mas quando a relação sai do estádio da paixão, tem de ser diariamente exprimido, como uma laranja. É preciso saber criar um ritual e dar-lhe intencionalidade: cortar uma laranja em dois pedaços e comprimi-los contra um volume piramidal, que separa os caroços da fibra e, nessa relação, fazer que o suco escorra para o seu recipiente não chega! É preciso que o odor inconfundível da laranja se emprenhe em nós. Assim é a conjugação do amor com o desejo, um exercício diário de intenções, em que não basta «picar o ponto» como se isso fosse o suficiente para manter o desejo ardente. É preciso muito mais do que isso: é preciso estar atento, querer, ter tempo e fazer tudo para que possa ser abençoado por um doce e ácido paladar, que desperta o corpo e hidrata a alma, principal truque para reinventar o dia com o outro, e sentir-se que se «bebe» o verdadeiro suco da essência.
Desejo a tod@s um feliz e suculento ano de 2016.
[Publicado originalmente na edição de 3 de janeiro de 2016]