
Ou como separando o trigo do joio e fazendo o joio acreditar que um dia há de ser trigo se consegue perpetuar um sistema.
Escrevo-vos numa semana agitada. Ainda estamos na ressaca dos ataques de Bruxelas e já nos atiram com um escândalo que se anuncia à escala global, o poético Panama Papers, os Papéis do Panamá. E o FC Porto está em decadência galopante. E a Angelina Jolie está internada, diz-se, à hora do fecho desta edição, que em estado grave. E o Donald Trump está a dois passos de ser candidato à Casa Branca. E dois inspetores da Polícia Judiciária foram detidos por terem ajudado traficantes com informações que lhes terão permitido fazer entrar por Portugal grandes quantidades de cocaína. E, no Brasil, uma autêntica revolução parece continuar a percorrer o seu curso – fazendo desmoronar um sistema. Pondo a nu a corrupção sim, mas também amedrontando quem ainda acreditava no Estado de direito, numa ordem que seja mais do que a que leva tudo a eito dos juízes justiceiros.
E ainda a procissão vai no adro. E nós, que fazemos? Lemos alguns jornais a mais, indignamo-nos nos cafés e sobretudo nas redes sociais. E, mais do que tudo, encolhemos os ombros. Fossem outros os tempos, e bastava a divulgação de informações dos Papéis do Panamá para haver outros resultados. Mas não. Estamos definitivamente longe de quaisquer arroubos revolucionários. A sociedade de consumo adocicou-nos, com os seus confortos a que todos aspiramos. As redes sociais amansaram-nos as possíveis lutas – com o seu papel de ombro amigo, de válvula de escape, em que todas as polémicas, reais ou fúteis, se tornam espúrias.
Nos próximos tempos hão de aparecer notícias sobre os portugueses que tinham contas nesta offshore específica, criada através desta empresa com o estranho nome de Mossack Fonseca. Entre uns e outros hão de ser misturados os que cometeram ilegalidades com os que simplesmente quiseram pôr o dinheiro ganho honestamente a salvo de crises demolidoras. E, no meio da confusão, tudo há de passar. A polémica há de passar. A imoralidade há de passar de mansinho entre as ilegalidades e estas hão de ser caladas perante os gritos das injustiças cometidas pelos jornais e jornalistas – eles os que têm sempre as costas mais largas em todas as histórias (até porque já deram o flanco tantas e tantas vezes que já não têm nem coragem de se defender).
Mas alguém era virgem neste assunto? Quem é que não sabia, até agora, de tudo isto que vem nestes 11,5 milhões de documentos? Talvez a explicação esteja, mais uma vez, no sistema. Este sistema perfeito que conseguiu separar o trigo do joio. Os que têm dos que não têm, fazendo acreditar os que não têm que um dia hão de ter. Não é só o sonho americano. É o sonho do Panamá. Este sistema que sabe que, no fundo, no fundo, nos tem na mão porque todos gostaríamos era de ser também esse trigo. Esses donos de contas no Panamá. E muito estaríamos dispostos a fazer para lá chegar.
E nós? Nós continuaremos a encolher os ombros. Seguiremos em frente, pagando calados os impostos que outros não pagam, descontando o que outros não descontam, contribuindo para o que outros apenas usufruem. Nós, a quem, até há bem pouco tempo, acusaram de viver acima das nossas possibilidades. Nós a quem nos foi retirada parte do que tínhamos por garantido para, precisamente, garantir o bem comum. Nós, portugueses e europeus a quem este sistema criado legal e com o beneplácito das instituições internacionais retira anualmente 71 mil milhões de euros – segundo dados arrepiantes citados pelo Diário de Notícias nesta semana.
[Publicado originalmente na edição de 10 de abril de 2016]