O peculiar senhor Tim Burton

A Notícias Magazine encontrou-se com Tim Burton em Londres. O pretexto foi a fantasia A Casa Da Senhora Peregrine Para Crianças Peculiares, estreada a 29 de setembro. O sempre despenteado cineasta contou que quando era criança se sentia como um velho de 80 anos e que não, não acha que as suas bizarrias sejam negras. Peculiaridades de um visionário de Hollywood.

Num encontro com a imprensa internacional em Londres, Tim Burton confirma o que já se sabia: um enorme embaraço de falar em público. Frases soltas, muitos «you know» e «I mean», poucas frases para as parangonas. Burton não faz número mediático. É o que é: aos 58 anos, continua a vestir-se de preto, a ter o cabelo desgrenhado e a parecer um sósia de Robert Smith, o vocalista dos The Cure. O pretexto para este encontro é a promoção de A Casa da Senhora Peregrine para Crianças Peculiares, uma fantasia saída do livro homónimo de Ramson Riggs, um conto de realidades paralelas sobre crianças com poderes sobrenaturais.

Londres, cidade com a qual jura sentir uma estranha identificação, é onde Burton tem vivido nos últimos anos (separou-se recentemente de Helena Bonham Carter, atriz britânica). Freak ou não, tornou-se nestas décadas um dos mais respeitados visionários do cinema de Hollywood. Um fantasista que criou uma marca autoral e um selo de excentricidade em tudo o que faz, uma espécie de resistência viva de um espírito criativo que a indústria deixa passar. Uma exceção, a exceção.

Depois de Olhos Grandes, onde contava a vida da pintora Margaret Keane e fazia um cinema mais normativo, terá tido um dos piores momentos da sua carreira. O filme não faturou o que se esperava e agora há alguma cobrança neste seu regresso à fantasia e a um universo gótico. Ainda assim, não parece nervoso. Parece até entusiasmado com esta nova diabrura, uma espécie de versão demente de Harry Potter.

«Quis adaptar Ramson Riggs porque me sinto atraído por todo aquele mistério e poesia. Há ali uma história mas não se percebe bem o que é… Espicaça a imaginação no sentido de procurarmos a nossa própria história. Na verdade, sempre me interessou este tipo de material, que nos deixa sem saber tudo, em que não é preciso explicar tudo», diz o realizador.

«Têm-me dito que a casa desta tutora [a senhora Peregrine] faz lembrar a academia de mutantes do X-Men, mas não vejo nada dessa maneira. Para mim, o filme não tem que ver com super-heróis. Pelo contrário, tem uma caraterística muito humana. Em vez de superpoderes, estas crianças têm antes uma espécie de deficiência. Não vão salvar o mundo, e foi isso que me interessou.»

A Casa da Senhora Peregrine para Crianças Peculiares leva-nos até um tempo com uma realidade paralela: um orfanato de crianças com poderes peculiares, desde invisibilidade à levitação. A metáfora, como em muitos dos filmes de Burton, é o elogio à diferença, aos marginalizados, aos desalinhados.

Um jovem da cidade descobre casualmente a casa e, aos poucos, identifica-se com as crianças. Miss Peregrine, uma espécie de fada ou feiticeira, é a guardiã. É ela quem zela pela segurança de um lar constantemente ameaçado pelos terríveis seres Golden Hollows, monstros ocos que perseguem os prodígios resgatados por Miss Peregrine durante séculos. A história é um convite para entrar num mundo tocado pela magia e onde Peregrine consegue parar o tempo e repetir o mesmo dia vezes sem conta, um pouco como acontecia em Groundhog Day – O Feitiço do Tempo, a comédia de Harold Ramis, com Bill Murray.

Este é o terreno preferido de Tim Burton, mesmo que a 20th Century Fox espere dele a «entrega» de um espetáculo que agrade a todas as famílias. O seu cinema tem este sortilégio: ser ligeiramente negro mas conservar o sonho que toca todos, lição que terá ficado dos tempos em que trabalhou como animador da Disney, no início da sua carreira.

«Não vou à procura destas personagens e destas criaturas, mas a verdade é que me identifico com elas. De alguma forma são estas as minhas personagens», justifica entre muitas interjeições vocais e hesitações. A falta de jeito para falar em público é assumida, de tal forma que recentemente respondeu a uma entrevista do The New York Times através de desenhos. Na verdade, pelos making of disponíveis nos extras dos DVD, percebe-se que a pose de génio louco num plateau tem bastante de genuíno em Tim Burton. É em plenas filmagens que se sente feliz: «É no plateau que tudo acontece! Sinto-me um pouco como um maníaco-depressivo quando estou a filmar, tipo já tomei a medicação!? Mas não me queixo, sei que há empregos piores. Tudo o que é exterior desaparece… Fico mais jovial.»

Se A Casa da Senhora Peregrine para Crianças Peculiares é mais negro do que o habitual? Ele diz que não sabe responder. «Sou a pessoa errada para lhe dizer isso. Sempre ouvi queixas de que tudo o que faço é demasiado negro. Fui acusado de que o meu Batman era muito negro e agora parece uma brincadeira de crianças. Nunca olhei para o que faço como negro ou sombrio. Talvez existam uns elementos assustadores, mas nada de mais.»

Com quatro décadas de atividade, o seu nome ainda move legiões de fãs, de diversas gerações. Se antes era consensual, a partir dos anos 2000 começou cada vez mais a extremar posições.

Há quem não lhe perdoe a reinvenção do clássico Planeta dos Macacos, em 2001, ou a eventual reutilização da sua fórmula de amigável excentricidade em filmes menos bem-sucedidos como Alice no País das Maravilhas ou Sombras na Escuridão. Será que a dada altura no processo terá faltado um golpe de asa? Talvez seja injusto acusá-lo de repetição. Na verdade, Burton consegue algo raro no cinema de grande estúdio americano: uma assinatura. Resta saber se essa assinatura não estará nos limites de uma calculista griffe.

Em Miss Peregrine, Burton espera rentabilizar a estranheza de Eduardo Mãos de Tesoura ou a beleza onírica de O Grande Peixe: «O que me atraiu aqui foi uma certa poesia e mistério. Isso e também uma enorme simplicidade. Esta é uma história simples de descoberta. Tentei sintonizar a parte visual com esse aspeto. E quis também enfatizar o lado humano. Este é um conto de fadas como todos: tem sempre algo grotesco, mas não acho que assuste as crianças. Elas vão perceber que é como um sonho. As crianças percebem melhor do que ninguém o lugar do abstrato e processam melhor aquilo que intelectualmente nós não entendemos.»

Burton sabe do que fala, ele que diz sentir-se igual ao que era em criança. «Sou o mesmo Tim Burton, só que agora estou maior. Em miúdo, sentia-me um velho de 80 anos. Aos 9 estava ansioso por chegar aos 13. E, talvez por isso, dou mais credibilidade a uma criança quando a filmo do que a um adulto. Cresci com filmes de terror e monstros e sabia que não eram reais, mas para mim eram… reais! No meu cinema, a abstração não tem apenas uma dimensão. Tento sempre pôr alguma emoção ou humor, ainda que de uma forma esquisita.»

A ideia de que Tim Burton é o símbolo de todos os Peter Pans tem que se lhe diga. Nesse sentido, Steven Spielberg encarna melhor o papel de criança grande. Burton é outro tipo de criança: «Eu era o miúdo estranho. Cresci e tenho passado todo o tempo a tentar ser um humano. Depois de o conseguir, tornei-me de novo uma “coisa” graças ao meu cinema. Por isso, não frequento as redes sociais. Não quero saber o que dizem sobre mim. Olho para a janela para ver o mundo sem ter de pensar em mim e no que os outros pensam de mim. E tento fazer filmes sem pensar naquilo que o estúdio espera e se vão fazer dinheiro ou não. Estou neste negócio o mais artisticamente possível, muito embora perceba que é um jogo.»

Um jogo de que fazem parte os encontros com jornalistas de todo o mundo. Burton, se pudesse, não estaria aqui, estaria provavelmente a desenhar. Desenhos iguais aos que fazia aos 9 anos.