O palhaço sem nariz vermelho

Por esta altura, os circos estão na cidade, mas este palhaço é diferente. Rui Paixão é o único palhaço português na lista do Cirque du Soleil. Mas é muito mais: um ditador que come porcos, um menino selvagem que a ciência quer moldar, um pintor numa crise criativa. E tem apenas 21 anos.

Há dias sonhou que dormia e nesse sono era observado por uma cabeça de sapo gigante num corpo de homem. Já anda a magicar como encaixar essa imagem numa próxima criação. Há cerca de um ano, entrou na rede de artistas do Cirque du Soleil, depois de um casting puxado em Las Vegas com atores de vários países. Não esquece essa experiência, cada momento de improvisação para um júri da companhia. Há um ano e meio, criou a companhia Cão à Chuva, nome inspirado nos vagabundos que habitam o álbum Rain Dogs, de Tom Waits. Vestiu‑se de palhaço sujo, pobre, roupas rasgadas, cabelo de um verde «a puxar para a podridão», botas gastas – a metáfora do desleixo social e cultural. Com esse palhaço sem nariz vermelho foi o artista revelação do Imaginarius – Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira e o artista emergente no Circada – Festival de Circo de Sevilha, em 2015. Há seis meses que não tem um fim de semana de folga, em agosto não parou em Portugal. Há poucas semanas, estreou o quarto espetáculo na cidade onde tudo começou.


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É sábado à noite, está frio, chove lá fora. A sala do Cineteatro António Lamoso, em Santa Maria da Feira, está praticamente lotada. Nos camarins e pelo corredor, Rui Paixão está em casa. O rapaz de 21 anos cresceu na Feira e prepara‑se para a estreia de A Velha, peça inspirada no conto do poeta russo Daniil Harms. Aquece o corpo com treino à jogador de futebol. Muita flexão, muito exercício. Quanto mais relaxado, melhor. A cabeça também precisa de desbloquear.

«Tento fazer o máximo de parvoíces na minha cabeça e no corpo antes de entrar em cena.» Quando entra, entra com tudo. A entrega é total. Imensa e intensa.

Uma hora em palco sem uma única palavra. Muitos sons, que lhe saem do corpo e da alma, e música ao vivo. Todo ele é expressão. Uma cara capaz de mil personagens. O corpo contorce‑se, estica e encolhe. Rui é um pintor numa crise criativa. Sofre, ri, inventa, cai, levanta‑se. O corpo quase nu, um artista que se vai transformando na sua obra. Uma velha cabisbaixa sentada com um pano no regaço. Um relógio que não para. Ou será que para? A tela que entretanto se carrega de vermelho‑vivo e que se rasga na passagem do ventre para a vida. E quando sai de cena, depois de abraçar e arrastar para o palco os dois companheiros que o acompanham nesta aventura, e de agradecer à plateia, o pano cai. Os aplausos continuam e persiste aquela amarga sensação que haveria mais para ver. Para contar. No dia seguinte, Rui Paixão estará na Póvoa de Varzim e logo a seguir partirá para Barcelona. Em dezembro vai finalmente descansar, em janeiro regressa à rua e aos palcos. Onde estará daqui a um ano? «Em Portugal. Quero ter a minha própria marca, quero ter o meu nome, quero ser empreendedor cultural.»

O aviso surgiu cedo. Na primária, foi o Lobo Mau do Capuchinho Vermelho e as professoras descobriram que tinha jeito de artista. Não pregava olho na véspera das idas ao teatro e ao circo pela escola e em casa colava‑se à televisão para ver Mr. Bean e Tom & Jerry. Rui era o rapaz gordinho e baixinho da turma, o que fazia rir. Escondia‑se debaixo da secretária da sala até a professora dar por ele. Os colegas riam‑se e o desafio era contar o tempo até ser descoberto e a desculpa para não ser castigado – normalmente dizia que andava à procura de alguma coisa no chão. «Nessa altura, não tinha muito registo social e pensei que se fizesse rir era uma forma de integração.»

Tinha de emagrecer por indicação médica. Teve uma aula de natação, disse aos pais que a piscina fazia ondas e saiu. Entrou no futebol, rodou por todas as posições até guarda‑redes suplente, não jogava, saiu. No basquetebol entrava em campo nos minutos finais e fazia rir jogadores e plateia. Era o palhaço da equipa, a forma de ser aceite no grupo.

Com os pais, assistia ao Imaginarius, o Festival de Rua de Santa Maria da Feira, e à Viagem Medieval, e vibrava com os artistas e com o ambiente cultural que se vivia na sua cidade. «Fui engolido por isso e ainda bem.» E aí soube.

Fartou‑se das palhaçadas do basquetebol, entrou na Academia de Música e Artes de Rio Meão, aos 15 anos estava na animação da Viagem Medieval, e pouco depois a estudar Interpretação na Academia Contemporânea do Espetáculo (ACE) no Porto. «O teatro e o clown são uma fuga da normalidade, de poder contribuir de uma forma diferente para este mundo sem ser o doutorzinho.» E essa coisa de ser palhaço andou pela sua cabeça durante os três anos de formação na ACE. Foi amor à primeira vista quando percebeu o que cada coisa que experimentava era na verdade. «O que me fascina no mundo do clown é a comunicação. É uma forma de comunicar, nada mais, uma forma de reunir pessoas. Na vida fora do clown não tenho poder absolutamente nenhum e o clown dá‑me esse poder de fazer alguma coisa, de testar coisas, de mexer.»

No último ano e meio foram mais de cem apresentações, de quatro espetáculos diferentes. Portugal, Espanha, França, Holanda. É palhaço, é uma figura estranha que come porcos, um menino‑máquina, um pintor que não sabe o que fazer. E nem uma única palavra nas suas peças. «Se de repente, retiro o falar, que é tão vulgar, porque é assim que comunicamos, obrigo as pessoas a estarem mais atentas.» É todo o seu corpo que comunica, que carrega emoções, que faz rir, que faz pensar. Tão divertido e tão sério ao mesmo tempo.

Há um ano, Rui partiu para Las Vegas. Enviou um vídeo com uma curta performance e foi chamado para participar num casting do Cirque du Soleil.

Improvisou durante um dia, etapa atrás de etapa. Quanto mais avançava, mais gostava. Acabou o dia com um sorriso do tamanho do mundo. Foi um dos cinco palhaços escolhidos, entre setenta artistas de vários países. Quatro para substituições e Rui o único selecionado para novas criações da companhia que em janeiro volta a Portugal com Varekai. E ele lá estará para ver o grupo que o pode chamar a qualquer momento para integrar o elenco de uma nova produção. Pode demorar meses, pode demorar anos. Foi o tal palhaço desleixado de cabelo verde, que na peça Lullaby improvisa com o público e puxa‑o para as suas histórias, que despertou a atenção do Cirque du Soleil. «Não gosto de criar barreiras plásticas, falsas. De repente, há luxúria em todo o lado, mas é uma luxúria gratuita que não resolve nada. A prova disso é o Lullaby que acontece sem recursos, o espetáculo não passou dos 50 euros de orçamento.» Chegou de Las Vegas com o coração a transbordar e vontade de continuar.

O rótulo Cirque du Soleil colou‑se à pele. Abriu portas, atraiu patrocinadores. Os festivais começaram a colocá‑lo diretamente na programação oficial. Deixou de participar em concursos, choveram convites. Entrou entretanto num vídeo da banda portuguesa First Breath After Coma com voz de Noiserv. Mas há uma coisa que o chateia. «Ainda não consegui fazer um espetáculo no Porto. Concorri a todas as bolsas, não há uma única porta que se abra. Lisboa, a mesma coisa. Não abrem portas. Foi mais fácil entrar nos circuitos lá fora do que entrar nas grandes cidades do meu país.» Porquê? Não sabe.

Rui Paixão não é rapaz de desistir. «Quando estreei o primeiro espetáculo, o palhaço de cabelo verde, tinha de provar alguma coisa. E gostava disso. Gostava de estar na rua e sentir as pessoas ao longe que nem sequer queriam juntar‑se à roda nem sentar‑se no chão.» Habituou‑se a testar, a arriscar, e até teve de provar aos pais que o teatro era a sua vida. Conseguiu.

Rui atua na rua, no palco, em salas com ar condicionado. «Gosto de trabalhar na rua. No entanto, começo a sentir falta de ir para outros espaços, não convencionais. Começo a ganhar outro tipo de preocupações.»

Por isso, anda à procura de novas dramaturgias para o clown. «Por que temos de continuar com a estátua, com a comédia barata, que sentido isso tem?» Acredita que é possível fazer diferente, criar um novo espaço. Um espaço de libertação. Fala nos hakas da Nova Zelândia, identifica‑se com essas raízes, esses gritos. «Não encontramos nenhum espaço na nossa vida para simplesmente treinar essa libertação. Ando à procura disso. Como é que eu, através do meu trabalho, posso criar este tipo de espetáculos onde juntamos muita gente para acontecer um momento de libertação.»

Rui Paixão tem 21 anos e muitas perguntas sem respostas. «Como geramos cultura a pensar no país, nas cidades? Para quem estamos a fazer? Com que intuito? Espaço para a investigação, sim, mas isso tem de resultar em alguma coisa. Temos de crescer.» E há outra coisa que o preocupa e que lhe anda a latejar na cabeça: onde anda o público dos 16 aos 30 anos que não sai de casa para ver teatro? «Tenho falado com alguns programadores que me dizem que essa faixa etária é o não público. Mas como pode ser não público, se existe?» O teatro precisa de inovar. É uma das suas conclusões.

QUATRO ESPETÁCULOS EM ANO E MEIO

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LULLABY (2015)
Clássico e contemporâneo, juntos, na primeira criação da companhia Cão à Chuva. Um número clássico de palhaço com música tocada ao vivo por Carlos Reis. Primeira aparição do palhaço de cabelo verde, sujo e pobre. Há improvisação e interação constante com o público. A primeira apresentação decorreu no Imaginarius – Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira.

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POZZO (2016)
Uma personagem estranha, construída a partir da figura do ditador, das hierarquias, dos que comem tudo e não deixam nada. A peça começa no dia em que Pozzo come o último porco à face da terra e instala a fome no mundo. Uma alegoria do ser politizado e hierárquico, num espetáculo político, cómico, interativo. A 13 de janeiro no Cineteatro de Estarreja e a 11 de fevereiro em Torres Novas.

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VINCENT (2016)
Uma narrativa poética sobre o nascimento e a morte, o desconhecido e aprendizagem. O espetáculo inspira‑se na história do menino selvagem, criado e educado por lobos até ao dia em que os cientistas o tiram do seu habitat para o integrar na sociedade. Vincent é um ser que se transforma numa máquina, num robô. Navega pelo universo de Frankenstein, a sociedade atual e o clown.

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A VELHA (2016)
Inspirado no conto com o mesmo nome do poeta russo Daniil Harms. Mais do que um espetáculo é um exercício de improvisação. O pretexto é a pintura. Um pintor numa crise criativa e que é atormentado por uma personagem. A velha de Rui Paixão é o próprio Rui Paixão. Uma metáfora de si mesmo sem ser o palhaço de cabelo verde. Levantam‑se questões sobre a passagem do tempo ou a sua estagnação.

As próximas datas dos espetáculos e performances de Rui Paixão estão disponíveis em facebook.com/caoachuva.