O jornalismo que muda vidas

Michael Rezendes é um dos jornalistas que inspiraram O Caso Spotlight, um dos favoritos aos Óscares deste ano, estreado nesta semana. O repórter do The Boston Globe, neto de açorianos de São Miguel, ajudou a denunciar décadas de abusos sexuais na Igreja Católica.

«Um bom repórter é aquele que não consegue senão dedicar a vida ao jornalismo», dizia, no início de dezembro, Mark Ruffalo à CBS. À sua frente estava Mike Rezendes, jornalista de investigação do jornal The Boston Globe. Os dois têm andado nas últimas semanas a desdobrar-se em entrevistas – o ator encarnou o repórter no cinema em O Caso Spotlight e está nomeado para melhor ator secundário (ver caixa).

Mike é lusodescendente. Os avós paternos eram de São Miguel, mas o homem nasceu e cresceu em Boston e mal arranha a língua portuguesa. Aliás, formou-se em Inglês na Universidade de Boston e foi por começar a colaborar em pequenas publicações regionais que entrou no mundo dos grande jornais. Começou no East Boston Community News, escrito em espanhol e inglês e editado entre 1970 e 1989. Pelo meio, colaborava com a revistas Boston e The Boston Phoenix, dedicadas à cultura e ao entretenimento. Nos anos 1990 passou pelo californiano San Jose Mercury News e pelo The Washington Post e foi aí que se evidenciou como redator na área de política. Quando o The Boston Globe o contratou, na viragem do milénio, Rezendes foi integrado na equipa de grande investigação, chamada Spotlight, na qual ainda permanece.

Eram quatro jornalistas e os quatro tinham sido desafiados pelo novo diretor do jornal, Martin Baron, a investigar uma notícia que o jornal tinha dado: que havia suspeitas de abusos sexuais na arquidiocese de Boston da Igreja Católica. No início de 2002 tinham conseguido provar como a Igreja tinha encoberto os crimes de cinco sacerdotes, acusados de abusos sexuais de menores ao longo de 30 anos. Essas primeiras notícias levaram a que muitas outras vítimas se chegassem à frente, o que culminou na denúncia de 250 clérigos e na demissão do cardeal Bernard Law, por ter tentado esconder os crimes.

Rezendes recebeu, com o resto da equipa Spotlight, o Pulitzer de Serviço Público em 2003, além de uma série de outros prémios de jornalismo. Escreveu dois livros sobre o caso e continuou a sua carreira como jornalista de investigação. Pratica atletismo e, em 2013, correu a Maratona de Boston – foi o primeiro jornalista a reportar o ataque terrorista de 15 de abril.

Cinco perguntas a Mike Rezendes

«HÁ UMA MISSÃO MAIOR NESTE TRABALHO: TORNAR O MUNDO UM LUGAR MELHOR.»

Tem raízes açorianas. Ainda tem alguma ligação a Portugal?
Os meus avós paternos vieram de São Miguel, nos Açores, para os Estados Unidos. Em 2004, viajei até à ilha para escrever uma reportagem de viagem para o The Boston Globe. Fui visitar a aldeia do meu avô e vi a casa onde ele viveu. Infelizmente, os meus avós e os outros familiares açorianos foram morrendo, por isso o meu contacto com a comunidade portuguesa diminuiu muito.
É uma comunidade tendencialmente católica, que educa as gerações segundo preceitos religiosos. Ora esse é precisamente o terreno da sua investigação no caso Spotlight. Também houve aqui uma viagem pessoal?
Cresci como católico praticante, tal como toda a gente na minha família. Na adolescência, comecei a ter objeções políticas e teológicas a algumas práticas e alguns ensinamentos da Igreja. Deixei de ir à missa. Ainda assim, continuava a identificar-me como católico e sentia que algum dia podia voltar à Igreja. No entanto, as minhas investigações sobre os abusos sexuais do clero e o encobrimento pelos altos responsáveis da Igreja Católica tornaram essa hipótese muito improvável.
No jornalismo, e mais ainda na reportagem, há sempre um momento em que o jornalista sabe que sacou a história. Qual foi o momento decisivo neste caso?
Neste caso não houve exatamente um momento em que pensei «apanhei-te». Eu percebi
que isto era uma coisa muito grande quando comecei a pesquisar a carreira do padre John Geoghan, que haveria de tornar-se o protagonista da história de abertura desta investigação– e que fui eu a escrever. Percebi na pesquisa que os altos representantes da Igreja sabiam que o padre Geoghan andava a molestar crianças há 30 anos e permitiram-lhe continuar a exercer o sacerdócio, pondo mais crianças em risco. O «momento» aconteceu quando fui ver qual tinha sido o seu último trabalho e descobri que, após décadas a abusar sexualmente de crianças, a Igreja Católica fê-lo responsável dos acólitos.
O filme é fiel à investigação jornalística? É rigoroso?
Tendo em conta que teve de resumir uma investigação de cinco meses num drama de duas horas, é de um rigor notável. E acho que Mark Ruffalo fez um trabalho fantástico. Toda a gente que conheço que viu o filme diz que ele me retratou na perfeição. Sinceramente, não acredito que houvesse ator neste planeta capaz de fazer melhor trabalho.
É também uma ode ao jornalismo de investigação, numa altura em que a imprensa atravessa uma crise, em que é cada vez mais difícil fazer reportagem. Ainda consegue amar esta profissão?
Eu decidi tornar-me jornalista quando estudava na Universidade de Boston. Comecei a trabalhar num jornal de bairro, The East Boston Community News, sem receber um chavo. Estive dois anos assim, até acabar o curso, e depois ofereceram-me trabalho como editor. Hoje amo da mesma maneira ser repórter de investigação no Globe. Porque há uma missão maior neste trabalho, que é a de tornar o mundo um lugar melhor. Isso dá sentido à minha vida.

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UM POSSÍVEL ÓSCAR COM TRAVO PORTUGUÊS
Se Mark Ruffalo vencer o Óscar de ator melhor secundário como Mike Rezendes, o jornalista do The Boston Globe de origem portuguesa, é bem possível que no discurso de agradecimento sejam citados Rezendes e a sua portugalidade. Mas Ruffalo está longe de ser o favorito (não obstante a sua interpretação ser a melhor) pois Stallone (em Creed – O Legado de Rocky, de Ryan Coogler) e Mark Rylance (A Ponte dos Espiões, de Steven Spielberg) levam vantagem. Além de Ruffalo, O Caso Spotlight está ainda nomeado para atriz secundária (Rachel McAdams), argumento (Tom McCarthy e Josh Singer), montagem (Tom McArdle), realização (McCarthy) e, claro, melhor filme, estando aí a jogar taco a taco com The Revenant – O Renascido, de Alejandro G. Iñarritu. Rui Pedro Tendinha