O homem que gostava das pessoas tal como elas são

Notícias Magazine

Foi com Nuno Teotónio Pereira que conheci a Vila Bertha, e desde esse dia nunca deixei de aprender com ele a olhar para a cidade de Lisboa com perguntas. Trocando a ordem das palavras: ele ensinou-me a fazer perguntas sobre a cidade dos últimos séculos. Antes já eu tinha sentido que a planta de uma casa pode corresponder a um modo de viver. Por exemplo, os apartamentos dos Olivais Norte que ele desenhou. Por fora, torres brancas semeadas pelos jardins como se não houvesse uma ordem no plano. Por dentro, a lógica de uma vivência desempoeirada, moderna. A palavra-chave é precisamente esta: modernidade. Aquela foi a Lisboa em que cresci, com espaços amplos, escola primária acabada de construir, ruas sinuosas que rodeavam os relvados – onde não se podia jogar à bola até ao 25 de Abril, o que nos treinou a fugir da polícia, capacidade aliás bastante útil.

Jogávamos ao mata e ao trapo queimado mas não sabíamos que o bairro e os prédios tinham sido desenhados por grandes arquitetos.

Volto à Vila Bertha, que entretanto se tornou ícone da cidade, rua de turistas e de filmes. A Vila Bertha é a mais bonitinha, com os azulejos arte nova e varandas a fingir que são casas de brincar. Mas há as outras, as que foram criadas para alojar trabalhadores das novas atividades industriais e comerciais do fim do século xix. A Vila Souza, a Vila Cândida, a Vila Grandella, tantas que encheriam esta página. Mas são mais do que casas, são maneiras de ser cidade que nos contam a história das pessoas. Outra palavra-chave: pessoas. Acho que era sempre isso que interessava Nuno Teotónio Pereira, não as pedras ou os telhados. As pessoas. Por elas conspirou, multiplicou reuniões e movimentos, foi preso e torturado, desenhou casas.

A última vez que o vi, chegou numa cadeira de rodas, trazido pela mulher que com ele partilhou as últimas décadas, Irene Buarque. Era a inauguração da exposição A Última Fronteira, no torreão poente do Terreiro do Paço. Os comissários – António Mega Ferreira e Margarida Ramalho – tinham-lhe pedido as imagens, quase desconhecidas, que fizera na Exposição do Mundo Português, ainda estudante e orgulhoso proprietário de uma máquina fotográfica. O que aconteceu naquele momento foi uma aula deslumbrante, um intervalo no tempo normal. A sala estava cheia de gente ansiosa para ver a exposição, para subir ao andar de onde parece que temos o estuário do Tejo só para nós. Depois dos discursos da praxe, o Nuno falou, numa clareira em volta da cadeira de rodas. Tomou nas mãos o microfone: «Boa tarde, daqui fala Nuno Teotónio Pereira.» Tinha perdido a visão e praticamente não ouvia, estava ali dentro connosco e tão sozinho, e ainda a ensinar-nos. Deu uma aula sobre a arquitetura dos anos 1940, falhando um nome ou outro mas explicando tão bem a mudança da cidade que estávamos todos emocionados. Falou até ficar cansado, a tropeçar nas memórias, e a Irene foi buscá-lo.

Na despedida do Nuno, no dia 22 de janeiro, a grande sala paroquial da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, desenhada por ele e por Nuno Portas, estava cheia. Uma cerimónia simples, sem missa como ele decidira. Depois da encomendação pelo amigo da juventude Frei Bento Domingues, o neto do arquiteto falou: «Na viagem para Lisboa, irritei-me porque me tinha esquecido de trazer a máquina de barbear, não podia fazer a barba hoje. E depois percebi que isso não tinha importância porque o meu avô sempre gostou de mim como eu sou. Ele gostava das pessoas tal como são.» Não há melhor elogio do que este.

[Publicado originalmente na edição de 31 de janeiro de 2016]