O fabuloso destino de Mafalda Milhões

Tem no lápis o prolongamento da imaginação e na voz o dom de contar histórias. Mafalda Milhões é ilustradora, escritora, editora, livreira e curadora do Folio Ilustra, do Festival Folio, a decorrer em Óbidos. Uma criadora de estórias já com história. Diz trabalhar sempre inspirada pela vida, a leitura, as filhas e as pessoas, num ritual de sedução para o civismo e para a educação.

Os verões de infância em Murça cheiravam a lápis de cera da Caran d’Ache trazidos numa lata pela prima Modesta que visitava a família Milhões em agosto. A prima ajudava a mãe de Mafalda, professora primária, com as decorações e ilustração de cartazes. «Nessa altura, eu só contemplava. Ainda recordo a dança dos lápis de cera nas mãos desta prima tão querida, ela era uma artista do desenho e da pintura. Sem dúvida a minha maior influência. A ilustração no verão entrava pelos olhos, pelos ouvidos e pelo nariz», diz Mafalda Milhões, a quem, na escola, os professores corrigiam os desenhos e as proporções que consideravam exageradas. Diziam que não sabia desenhar, mas a contadora de histórias e ilustradora transmontana que não se deixou intimidar e foi construindo um percurso que faz dela, aos 38 anos, numa referência da literatura infantil.

Bisneta do heróico soldado Milhões, que sozinho nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial enfrentou os soldados alemães e de forma destemida salvou um médico escocês que se afogava num pântano, Mafalda parece ter herdado do bisavô a discrição e a garra para enfrentar as adversidades.

Em casa dos pais, havia uma biblioteca rica e vitaminada com grande diversidade de géneros literários, alimentada pela mãe, leitora voraz. Desenvolveu um gosto tal pela coisa impressa que acabou a estudar Artes Gráficas no Instituto Politécnico de Tomar. Foi lá que conheceu o marido, o produtor gráfico Pedro Maia.

Juntos têm vindo a criar uma história de amor, que passa também pelos livros, embora a obra a dois de que mais se orgulhem sejam as filhas Matilde e Maria, musas inspiradoras de Mafalda. Os nomes não foram escolhidos por acaso. «Não é a primeira vez que a parelha se junta, na literatura infantil Matilde Rosa Araújo e Maria Kail tiveram muito sucesso e transformaram o mundo num lugar melhor.»

Mafalda Milhões gosta de mastigar palavras, falar a língua dos livros e das imagens que nascem na ponta do lápis e, sobretudo, gosta de partilhá-las. Depois do curso, o desejo de ver a «coisa impressa» levou-a a criar uma editora – O Bichinho de Conto – e a publicar, em parceria com o marido, Pedro Maia, o primeiro livro, Perlimpimpim Perlimpimpão, e não mais parou.

Ao longo do tempo foi desenvolvendo um bichinho que se alimenta de histórias e há cerca de 14 anos abriu a primeira livraria na casa nº 25 do Lugar Comum, Centro de Experimentação Artística – Clube Português de Artes e Ideias – na antiga Fábrica da Pólvora de Barcarena, em Oeiras.

A Livraria Histórias com Bicho – primeira livraria portuguesa especializada em literatura infantil – inspirou a abertura de outros espaços similares pelo país, inaugurando assim um território novo para a venda de livros infantojuvenis e a promoção da leitura.

Mas o chamamento do campo foi mais forte e, em 2007, depois de percorrer grande parte do país à procura do seu lugar, acabou por encontrá-lo no lugar de Casais Brancos, em Óbidos.

Ali, Mafalda transformou uma antiga escola primária, situada num monte já à saída da povoação, numa livraria que se tornou um castelo mágico para crianças e adultos. Um lugar onde tudo é pensado ao mínimo detalhe e se promovem encontros entre livros e leitores. «A livraria é uma instalação, um universo em que se juntam dois ingredientes, a arte, seja ela qual for, e a literatura.»

O espaço foi pensado e criado pela ilustradora a partir «da necessidade de promover o encontro com a literatura através do melhor que se faz no mundo, oferecer um acompanhamento técnico sério e especializado capaz de aproximar pessoas e livros pela descoberta e maravilhamento». Uma oficina de criação onde Mafalda Milhões compõe ideias atrás de ideias e todos os dias se diz surpreender com o quão maravilhosa é a descoberta. «Trata-se de um local pensado para acolher leitores no quotidiano da criação. O meu público-especial são pessoas que não gostam de ler, ou que ainda não descobriram a leitura e o objeto livro, ou seja, as pessoas que ainda não descobriram que gostam de ler», diz.

Na velha e inspiradora escola, de onde se avista o mítico castelo de Óbidos, abraçada por um gigante pinheiro e circundada por cabras e ovelhas jardineiras que mantêm limpo o espaço exterior, a livraria é muito mais do que um local de venda de livros, «é um lugar de encontro e partilha, ponto de passagem obrigatória para quem se atreve a ler o mundo», desafia Mafalda.

Além de trabalhar na oficina de criação, Mafalda Milhões é uma mulher de causas – a Operação Nariz Vermelho, assim como as associações Ajudaris, Leque e Fundação do Gil contam com a sua energia –, e ação.

Criadora do Carpe Librum, movimento de educação pela arte e pela leitura, promove ainda diversas atividades de promoção da leitura, exposições, workshops criativos e ações de formação para professores, educadores e pais, «procurando ir ao encontro, não apenas do leitor mas da pessoa. Faço escolhas mediante o que sinto e o que leio, mas sobretudo mediante as pessoas que convido e recebo na livraria, a nossa comunidade de leitores, que é exigente e muito especial».

A fórmula parece resultar, pois a livreira diz ter clientes e visitantes que começaram a frequentar a livraria em Lisboa, muitos deles acompanhados por filhos ou netos crianças, e que continuam a ir agora aos Casais Brancos na companhia dos mesmos filhos ou dos netos já adolescentes. Diversas salas catalisadoras de diferentes gostos e interesses. Locais onde o encontro com os livros e a leitura se apresenta em estado puro que cada um pode desbravar ao seu ritmo. E uma livreira ativa que foge a uma seleção simplesmente comercial e que dá destaque a álbuns ilustrados, livros-objeto, histórias em várias línguas e à interação entre os livros e as crianças que os escolhem e os adultos que também os leem e os compram. Segundo as crianças que frequentam o espaço, a livraria é delas, «a Mafalda só toma conta».

Uma livraria no campo, uma casa onde cabe toda a gente e que muito contribuiu para o desenvolvimento do projeto Óbidos Vila Literária da qual faz parte. Foi Mafalda Milhões quem desafiou José Pinho, administrador da livraria Ler Devagar, a abrir uma livraria em Óbidos. Ele aceitou e assim surgiu a ideia que fez recentemente de Óbidos a 12ª cidade literária do mundo reconhecida pela UNESCO, atualmente com 12 espaços literários repartidos por uma igreja, um mercado, uma adega, um hotel, museus, uma galeria e outros espaços emblemáticos da vila.

Mafalda Milhões, especialista em literatura infantil e processos de mediação, integrou o grupo de dinamizadores do programa de itinerâncias da Direção-Geral do Livro e das Bibliotecas e o reconhecimento nacional e internacional tem-na levado a orientar projetos e equipas na área do livro, da leitura e da educação dentro e fora do país. Desenvolve também trabalho de curadoria, de cenografia, figurino, tradução e adaptação de textos para teatro e trava agora uma luta pelo lugar e a importância dos livreiros mediadores de leitura que se implicam ativamente na sociedade e fazem pontes transformando o mundo numa grande livraria especializada na arte de relacionar pessoas e livros. É esse o sonho de Mafalda: construir uma comunidade de leitores inteligente, criativa e ativa culturalmente.

FOLIO ATÉ 2 DE OUTUBRO

A segunda edição Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos decorre na Vila Literária até 2 de outubro, sob a égide da Utopia, de Thomas More, livro editado há 500 anos. Mafalda Milhões é a curadora do Folio Ilustra, a par dos curadores José Eduardo Agualusa – Folio Autores; do grande impulsionador do projeto, José Pinho – Folio Mais; de Anabela Mota Ribeiro – Folio Folia; e de Maria José Vitorino – Folio Educa.


Leia a entrevista exclusiva a V. S. Naipaul, Nobel da Literatura em 2001, convidado do Folio.


LIVRARIA HISTÓRIAS COM BICHO

A livraria Histórias com Bicho reabre hoje, após obras de reabilitação, três dias depois do arranque da segunda edição Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos. As conversas, as histórias, os livros, as exposições, os serões de contos, as oficinas de ilustração e formações voltam ao lugar onde a leitura se faz de corpo inteiro. Com vista para o mar, a antiga escola primária volta a ter vida e a acolher todos os leitores, autores e criadores mordidos por um Bichinho de Conto. A presença das alemãs Jutta Bauer e Pia Krämer marca também o regresso do Bichinho de Conto-Editora ao panorama da literatura para a infância, um projeto que se destaca pela edição de álbuns ilustrados de grande qualidade que se renova neste dia de recomeços. A livraria abre a porta pela manhã bem cedo «inaugurando um novo ciclo de leituras e descobertas para leitores dos 0 aos 200 anos».
Estrada dos Casais Brancos, 60 (antiga Escola Primária) Tel.: 262 096100
Horário: Quinta e sexta, das 14h00 às 19h00. Sábado, das 10h00 às 19h00
Web: [email protected] | Site | Facebook