O espumante está pronto para a festa

Os dias são de azáfama para os produtores de espumante. Metade da produção nacional é consumida entre o Natal e o Ano Novo e, por estes dias, a bebida da festas está a bater todos os recordes de vendas. Viagem à região demarcada de Távora-Varosa, na Beira Alta, a mais antiga do país, para perceber toda a história que existe nas borbulhas do vinho.

Esta história começa debaixo do chão e termina no auge da festa, porque é essa afinal a viagem de uma garrafa de espumante. Nenhuma outra bebida passa tanto tempo mergulhada na escuridão de uma cave para depois se colocar no centro da luz e dos brindes. É o líquido que sela a importância das efemérides e que encorpa os acontecimentos marcantes. Nos últimos anos, o espumante português começou a perder a vergonha de não ser champanhe e entrou no mais brilhante período da sua história. Apareceram novos produtores, os mais antigos dão cartas nos concursos internacionais, as vendas não param de crescer. Nas próximas semanas, metade dos stocks chegarão às mesas do país, para celebrar o Natal e o Ano Novo. E isso é uma boa desculpa para perceber todo este mundo que existe antes daquele som que a rolha faz quando salta do gargalo. O ploc que antecede a espuma.

Em Távora‑Varosa, a mais antiga região demarcada de espumante do país, os dias são de agitação. As festas estão ao virar da esquina e agora é altura de rotular e embalar, expedir e distribuir a produção.

Em média, produzem‑se aqui cinco milhões de garrafas anualmente – e, como já se viu, metade desse número será vendido nas próximas semanas. A zona foi demarcada em 1989, são 3500 hectares de terrenos, distribuídos por oito concelhos beirões – Tarouca, Lamego, Sernancelhe, Moimenta da Beira, Penedono, Tabuaço, São João da Pesqueira e Armamar. Juntamente com a Bairrada, é uma região de efervescência por excelência. Daqui saem dois ícones da espumantização nacional, Raposeira e Murganheira, um novo ator que está a entrar no mercado em força, a Terras do Demo, e três pequenos produtores que tentam contornar o impacto dos grandes com vinhos de autor. Nos vales dos rios Távora e Varosa, dois afluentes da margem esquerda do Douro, percebe‑se muito bem o que está a acontecer hoje no mercado nacional dos espumantes.

«A ideia de abrir uma garrafa de espumante nos casamentos, batizados e aniversários está a mudar», diz Orlando Lourenço, presidente da comissão vitivinícola local e proprietário das suas duas principais caves, Raposeira e Murganheira. «É uma bebida que está sempre associada à ideia de uma certa elegância, e se é verdade que o grosso das vendas ocorre no período das festas, também é verdade que anda cada vez mais gente a utilizá‑lo como aperitivo ou a acompanhar as refeições.» A primeira explicação para isso está nos preços. «Os vinhos de mesa mudaram nas duas últimas décadas e hoje os produtos atingem preços semelhantes aos do espumante, que é um produto mais fino. Por isso há uma democratização do acesso a estas bebidas, ao mesmo tempo que ela preserva a imagem de produto de topo.»

Mas se nos vinhos tranquilos os portugueses privilegiam a produção nacional, o mesmo não se pode dizer dos efervescentes. Segundo os relatórios de exportação dos institutos vinícolas franceses e espanhóis, Portugal comprou no ano passado 601 866 garrafas da região de Champagne e 402 595 de Cava (Espanha). Já os produtos portugueses venderam cerca de vinte milhões de garrafas, segundo o Instituto do Vinho e da Vinha. «Mas se o preço médio de uma garrafa de espumante português ronda os 15 euros, a de Cava cifra‑se no dobro e a de Champagne no quádruplo. Apesar de vencermos inúmeras medalhas de ouro da especialidade, de obviamente vendermos muito mais, ainda não conseguimos passar a ideia de que estamos ao nível de todos os outros. Porque, de facto, estamos.»

No total, o setor fatura 106 milhões de euros por ano e representa 2,6 por cento da produção nacional de vinhos.

Podemos então começar pela Murganheira, em Tarouca, que lida com os segmentos de topo. Aqui vendem‑se espumantes mais caros do que a média. «O nosso premium é o Czar, que custa 25 euros e é exportado sobretudo para a Rússia, onde os consumidores chegam a pagar 180 euros por uma garrafa», diz Marta Lourenço, enóloga da casa e CEO da empresa. Aqui produz‑se um milhão de garrafas por ano, o que permite uma faturação de seis milhões de euros. Na vizinha Raposeira, em Lamego, que aposta num segmento mais barato, os rendimentos são os mesmos, mas as caves precisam de fabricar 2,5 milhões de recipientes para atingir as mesmas cifras. Fundada em 1946, a Murganheira não vendia mais do que uns milhares de garrafas até passar para as mãos de Orlando Gonçalves, três décadas depois. Mas foi nesses dias do pós‑guerra que se determinou o caminho que as caves iriam seguir – o da alta qualidade.

Acácio Laranjo era um produtor têxtil da região com negócios em França que um dia resolveu trazer com ele um enólogo da Moët & Chandon para desenvolver um produto de grande qualidade. E, quando se entra nas caves da empresa, percebe‑se imediatamente o caminho que o magnata quis tomar. Debaixo da terra, nos anos 1940, duzentos metros de corredores foram abertos com dinamite no meio do granito. É uma obra impressionante, as paredes azuis das caves da Murganheira mantêm uma temperatura constante de 12,3 graus, seja verão ou inverno. «Quando aqui cheguei preocupei‑me em aumentar a produção e torná‑la mais visível», diz Orlando. Isto aconteceu em 1986, apesar de ele já estar ligado à empresa desde os anos 1970 – era comando em Angola durante a guerra colonial e Laranjo tinha‑o encarregue de encontrar compradores para escoar o produto, coisa que tinha conseguido com grande sucesso.

A sala de visitas da Murganheira tem vista para um vale que os locais chamam de encantado. Aqui servem‑se refeições temáticas, fazem‑se provas e explica‑se a história da empresa. Num dos expositores, há um cartaz publicitário de 1990 que explica em grande medida o sucesso que as caves angariaram desde então. Parece a imagem mais simples do mundo, mas não é. Mostra uma garrafa na posição horizontal, uma pequena fotografia das caves e a frase: «O segredo mais bem guardado de Portugal – um dos melhores espumantes do mundo.» A maneira como a garrafa foi fotografada é o que faz a diferença. Porque, ao contrário do vinho, o espumante estagia deitado, às vezes durante meses. E às vezes durante décadas. Aquele cartaz mostrou ao mundo que os homens de Tarouca sabiam o que estavam a fazer.

A operação decisiva do espumante é a segunda fermentação. Depois de engarrafado, são acrescentadas ao vinho as leveduras que lhe garantem efervescência.

Há‑as em duas modalidades, as livres e as imobilizadas, sendo que as primeiras obrigam a um processo de monitorização do estágio mais complexo, mas também produzem um vinho que os especialistas consideram mais genuíno. As segundas aceleram o processo e permitem a produção em nove meses – e isso explica que haja hoje espumantização em todas as regiões vínicas do país, do Alentejo a Setúbal, do Dão ao Douro. Em vez das castas clássicas, de origem francesa, os produtores estão a utilizar cada vez mais uvas endémicas – Tinta Roriz e Touriga Nacional, Arinto e Malvasia Fina –, criando espumantes brancos de castas tintas, rosés e tintos efervescentes.

Após o estágio, que pode durar anos, cumpre‑se a rémuage – o rodar lento e parcial e alternado das garrafas, para concentrar os resíduos de levedura no gargalo até deixar o vinho limpo. Depois é necessário expelir as leveduras, então segue‑se o dégorgement – normalmente imergindo o gargalo numa solução congelante e expelindo o gelo, para perder o mínimo de líquido possível. A seguir é reposta a quantidade perdida, acrescentam‑se licores que adocicam ou não o produto, colocam‑se rolhas e arames e o produto está pronto para expedição. A profecia das borbulhas cumpre‑se na garrafa. Existem, grosso modo, três sabores de espumante: doce, meio‑seco e bruto. Se a Murganheira produz essencialmente brutos, a Raposeira aposta nitidamente nos doces, mais baratos e com menores riscos de erro, porque os licores conseguem retificar qualquer falha do produto. Fundadas em 1898, estas são as mais antigas caves de espumante do país. São também o maior centro da produção portuguesa – e tanto a dimensão como a história são compreensíveis ao primeiro impacto.

Os corredores subterrâneos são menos largos do que os da Murganheira, mas muito mais compridos. Pilhas e pilhas de garrafas estagiam deitadas à espera de verem a luz, são 12 milhões de unidades que ali fermentam até estarem prontas. Isto não é bem uma fábrica, isto é um museu industrial em pleno funcionamento.

Uma viagem a França de um homem endinheirado marca o nascimento do espumante em Portugal, em finais do século XIX.

José Teixeira Rebelo Júnior era um amador da cultura vinícola que devorava livros de agronomia. Depois da crise da filoxera, a doença que destruiu todas as vinhas do país nos anos oitocentos, o Douro empenhou‑se na produção de porto e «veio este louco meter‑se no meio a fazer algo completamente novo», conta Orlando Lourenço. Às primeiras garrafas, conseguiu convencer o sogro, Adelino Pereira do Valle, a investir seriamente no setor. Compraram a Quinta da Raposeira, a seis quilómetros de Lamego, e a primeira preocupação foi abastecer as caves de um stock admirável, baseado no método tradicional, ou champanhês. Hoje, são garrafas até perder de vista de líquido borbulhante e adocicado. Passaram pelas mãos de uma série de multinacionais até que Orlando Lourenço a adquiriu em 2002. Atualizou os processos de rémuage e dégorgement e, hoje, todo o sistema de produção está automatizado.

Quando a região demarcada de Távora‑Varosa foi criada, em 1989, Murganheira e Raposeira eram os únicos protagonistas em cena. Mas, em 2003, apareceu um novo ator no mercado que veio ajudar a afirmar a diversidade da zona. A Cooperativa Agrícola do Távora, em Moimenta da Beira, já fornecia uvas aos fabricantes de espumante, mas o presidente, João Silva, percebeu que havia uma oportunidade de acrescentar rendimento se se pusessem, eles próprios, a efervescer o vinho. «Temos 1320 sócios nesta associação e agora vemos que conseguimos triplicar os lucros em relação ao vinho tranquilo. Usámos a mesma marca, Terras do Demo, e neste ano vamos pôr à venda 1,3 milhões de garrafas.» Para o homem, no entanto, há uma vantagem ainda maior do que o lucro: a reconversão da vinha. «Conseguimos replantar as castas mais indicadas a este clima e travar o abandono dos terrenos. Há um entusiasmo, até porque apanhámos em cheio o aumento do consumo em Portugal e o ponto máximo de prestígio da nossa região vitivinícola.»

Távora‑Varosa não é a região mais produtiva do país, mas é aquela que fabrica mais espumante certificado, ou seja, com denominação de origem e garantia de qualidade.

O centro de controlo fica na Casa do Paço de Dalvares, em Salzedas, Tarouca. José Damião, vice‑presidente da autarquia, diz que o investimento estratégico naquele edifício só podia servir para albergar um dos vetores económicos do concelho. «O espumante é a nossa referência identitária, um produto de qualidade com uma enorme história de que nos orgulhamos.» De facto, há aqui uma história antiga para contar: as primeiras referências ao cultivo de uvas na região datam do século XVII, pelos monges de Cister. Ainda assim, aquele edifício é bem mais antigo, foi casa de Egas Moniz, aio de Afonso Henriques. Dos anos 1100. Hoje em dia acolhe a região vitivinícola, o museu e a Confraria do Espumante.

Manuela José é uma figura central da estrutura, a alma da casa. Não só é ela que forma a câmara de provadores – um grupo de analistas que avaliam cada vinho em aspeto, aroma e sabor – como faz o acompanhamento de proximidade com todos os produtores, e auxilia‑os na reconversão das vinhas. Também integra a Confraria do Espumante, que nesta reportagem reunimos na Casa dos Viscondes da Várzea, que serve a casa da Murganheira com oitenta hectares de vinha. Fundada em 2004, a confraria conta com 140 membros que vêm de todo o país para celebrar e promover as tradições culturais que estão associadas ao mundo do espumante. Os trajos são inspirados nos monges de Cister. A cor da indumentária é, como não poderia deixar de ser, champanhe.

Até aqui a conversa versou sobre gigantes, mas há pequenos produtores em Távora‑Varosa que também estão a tentar vingar com produtos de alta qualidade. «Não podemos aspirar a ser uma região de renome mundial sem pequenos produtores que provoquem entropia, que façam barulho», diz Hélder Cunha, 39 anos, enólogo do Monte Cascas. O seu espumante tem conseguido alguns prémios e está a ser vendido em garrafeiras da especialidade com o estatuto de produto artesanal. «Tenho uma produção de dez mil garrafas, não mais, por isso foi importante criar sinergias.» Ao seu lado está Marcos Pinto da Silva, agrónomo que vendia uvas às caves já instaladas e em 2005 resolveu começar a produzir dois rótulos, o Hehn e o Boa Parte. «Partilhamos as uvas e a maquinaria, para criarmos produtos diferenciados.» Os dois vêem um grande futuro no mercado – e os sinais estão à vista de toda a gente. «Tal como os vinhos de mesa trilharam o seu caminho, o mesmo está a acontecer com os espumantes. Antigamente espumantizavam‑se os despojos dos outros produtos, agora estamos a vocacionar as vinhas para este produto, porque só com qualidade se consegue educar o palato do consumidor.»

Lúcia Carvalho conseguiu convencer a família, produtora de porto, a apostar há sete anos num segmento que parecia promissor. A Casa de Santa Eufémia entrou no mercado em 2011 com duas mil garrafas e, quatro anos depois, arrecadava uma medalha de Ouro no Challenge International du Vin, um dos maiores concursos da especialidade (Murganheira e Raposeira também têm vários galardões nesta competição). Tal como Marcos e Hélder, acredita que «os grandes dão nome à região, os pequenos elevam a fasquia com irreverência.» Usa exclusivamente uvas do primeiro presidente da região vitivinícola, António Pinto Ribeiro. E o que ele diz é o que toda a gente aqui parece pensar: «Estamos a assistir a um momento incrível de afirmação do espumante. Há energia nova, há sangue novo e pode muito bem partir desta região o golpe de asa que tem faltado ao vinho português. Se aumentarmos a produção, teremos todas as condições para nos afirmarmos com um player global.»

Depois há o lado cultural desta história. Nas terras altas da Beira, espumante não é só vinho, é também petisco e é também tempero.

Em Lamego, por exemplo, há duas casas que o promovem muito seriamente como aperitivo. A Presunteca, localizada a meio do Escadório da Senhora dos Remédios, é uma antiga taberna que Hamilton Ferreira converteu em casa de provas. «Em média, recebemos três mil pessoas por mês que vêm experimentar o nosso fumeiro e beber uma flûte de espumante. Vendemo‑lo a copo, o que permite fazer o que quase ninguém faz: a degustação.» O negócio tem‑se revelado tão animador que o dono do estabelecimento arrancou obras para duplicar o espaço. «Assim posso receber vários grupos e excursões ao mesmo tempo.»

Uns metros abaixo, Anabela Pereira afiança o casamento perfeito entre o espumante e outro símbolo da terra: a bola de Lamego. «Há cinquenta anos, o meu pai criou uma casa que vendia bolas e espumante e isso revelou‑se um sucesso tremendo. Em 2009, eu decidi criar uma pastelaria onde a estrela fosse a bola, mas não investi no espumante, e arrependi‑me várias vezes.» A Pastelaria da Sé tem estatuto de instituição, serve 400 a 500 bolas por dia – desde a tradicional, de presunto e fiambre, a versões mais originais como a vinha de alhos, o bacalhau ou a sardinha. Nas próximas semanas, a família vai regressar às origens. «Vamos abrir na rotunda da Boavista, no Porto, uma Casa das Bolas de Lamego com degustações e provas de espumante. Não são só produtos, são embaixadores da nossa terra.»

Ao almoço e ao jantar o espumante também cai bem, seja nos copos seja como condimento. Na Escola de Hotelaria e Turismo do Douro-Lamego, os alunos andam a aprender a fazer receitas aplicando o vinho com borbulhas. Há um restaurante chamado São Francisco, em Moimenta da Beira, onde o chef Timóteo Fernandes apresenta um dos melhores cabritos no forno da região – e marina‑o em vinho efervescente. «Também uso como condimento para o coelho ou as maçãs bêbedas. Utilizando um produto de qualidade, consegue‑se um sabor mais rico e macio, que realça a competência dos produtos regionais.» Em Salzedas, há um lugar chamado Casa do Forno (porque labora com um antigo forno judeu do século) que serve uma incrível caldeirada de cabrito, ou o mesmo na grelha, temperado com espumante. E depois há um turismo rural chamado Quinta dos Padres Santos, também em Tarouca, onde Lina Almeida espumantizou uma das especialidades da mesa de Natal. As trutas do rio Varosa, fritas em azeite, são primeiro amaciadas em Murganheira e depois regadas com o mesmo, para um improvável mas icónico escabeche.

Vivem‑se tempos animados neste território alto e frio. Esquecidos que estavam pela notoriedade fulgurante que os vinhos do Douro angariaram nas últimas décadas, os homens e as mulheres da margem esquerda do rio parecem caminhar em uníssono na defesa e no rejuvenescimento do seu vinho com borbulhas. «É que esta terra é única», diz Orlando Lourenço. «Tem os solos perfeitos, a altitude perfeita, o equilíbrio perfeito entre altas e baixas temperaturas.» Não devem nada a Champagne, não devem nada a Cava, regiões bem mais famosas. E acreditam piamente que está a chegar o tempo em que o mundo vai aprender a chegar a um restaurante e pedir isto: «Por favor, quero um Távora‑Varosa.»