Caixas de comentários nos sites e páginas de Facebook de órgãos de comunicação social. Haverá sítio mais mal frequentado em toda a Internet? Dificilmente. Poucas coisas espelharão de forma mais eficaz o bicho digital anormal em que nos podemos tornar do que esse gigantesco baú de lixo regurgitado e opiniões irrefletidas.
Mas há mais. Há outras comportamentos palermas e desastrosos que nos levam a questionar, sinceramente, o que isto da world wide web no geral (e das redes sociais em particular) faz de nós. Como os linchamentos públicos online da noite para o dia, por exemplo. Veja-se o caso recente da ressurreição dos comentários que José Cid fez há uns anos sobre Trás-os-Montes e o efeito tsunami idiota que isso teve.
Há ainda outra coisa que me intriga. Não consigo, de todo, entender a identificação, no Facebook, de pessoas que morreram. Tags, mesmo. Identificar, através de um link no nome, a página pessoal de uma pessoa que morreu. Apelando – claro! – a que toda a gente, amiga e conhecida, contactos pessoais e profissionais, aceda a um perfil que devia ser privado. Mesmo que o seu detentor esteja morto.
Eu sei que «privacidade» e «Facebook» não rimam. Mas, caramba, há limites. Para o bom senso e para o que podemos fazer. Uma coisa é escancarar as portas da nossa vida, mostrando tudo e mais alguma coisa sobre o que comemos, vestimos, fazemos. Outra é convidar outras pessoas a visitar a casa virtual de um defunto, permitindo assim que se possa ver tudo o que ele ou ela se esqueceram de definir como “apenas para amigos”. Acreditem: é tão mórbido o que espreita como o que abre a porta para outros espreitarem.
Na secção de necrologia de um jornal, ficamos a saber que fulano já não está entre nós e que beltrano terá missa de sétimo dia na igreja X ou Y, mas, a menos que os conheçamos ou pesquisemos sobre eles, só conseguiremos imaginar que tipo de pessoas terão sido em vida a partir do tamanho do anúncio, do número de apelidos, da quantidade de gente que mandou publicar o aviso a anunciar saudade eterna.
Mas no Facebook, não. Na rede social, é todo um mundo interativo que se abre para podermos vasculhar à vontade um morto que não conhecemos. Basta carregar no nome a que alguém deu uma identificação e esperar até aterrarmos no mural do defunto. E aí sim, é fartar vilanagem voyeurista, abrindo pasta de fotografias, bisbilhotando amigos, tentando reconhecer rostos e locais, aventando, até, causas para a morte, a partir da leitura de publicações e comentários alheios. Nesta fotografia recente estava com bom aspeto e gordo, por isso não deve ter sido cancro. Naquela já estava com cara de caso, deve ter sabido de véspera. Este deve ser o filho, coitadinho, tão novo e já sem pai. Acolá está a mulher, o que vai ser dela, agora que ele se foi?
Abrandar a marcha na autoestrada para espreitar o acidente no sentido inverso é uma coisa estúpida. E perigosa. Mas visitar a página de Facebook de um morto já pode ser normal. Como se fosse natural entrar por uma casa mortuária adentro e invadir a privacidade de uma família em pleno velório. Porque é isso que acontece, quando alguém exerce o natural direito de ser quadrilheiros com um recheio de morbidez. Estranhos tempos estes. Ora linchamos, ora bisbilhotamos. Nisso, não estamos melhor graças à tecnologia.
[Crónica editada. Publicada originalmente na edição de 5 de junho de 2016]