O direito à inveja

Notícias Magazine

Em Portugal, há um problema com a inveja. Em concreto, há um problema com a grande quantidade de gente a queixar-se de ser invejada.

Ao vivo ou por email, em privado ou em programas de televisão, há sempre alguém a lamentar-se dos invejosos: não podem ver nada, são uma praga que não descansa. Quem recebe esse desabafo é sempre solidário, demonstra saber exatamente o que o outro está a passar, também ele já foi muito invejado.

Entre outras consequências, a paranoia da inveja generalizada propiciou o nascimento de uma modéstia entre aspas. Disfarçada de virtude, essa «modéstia» é medo dos outros, também pode ser desinteresse pelos outros ou falta de convicção no próprio valor.

A inveja só chega ao invejado se este permitir, se estiver vulnerável, se não estiver preparado. Em Portugal, há demasiadas pessoas a alimentarem o equívoco de que todos têm de gostar delas.

A inveja é um sentimento. Se respeitamos os outros, é elementar reconhecer-lhes liberdade para sentirem. Essa, parece-me, é a primeira característica de existir, de ser alguém e de ter um nome. Não nos compete decidir acerca daquilo que os outros devem sentir.

Além disso, é improvável que consigamos saber com precisão aquilo que os outros estão a sentir. A não ser que estejamos convencidos de que os outros são um reflexo nosso, como um espelho que reproduz até o invisível. Nesse caso, a inveja que lhes imaginamos é, afinal, a nossa.

A inveja deveria ser legalizada ou, pelo menos, despenalizada. Como as drogas leves, faz mal apenas a quem a consome. Devidamente informado dos efeitos, o invejoso faria um uso muito mais consciente dessa substância e, assumindo-se, não precisaria de frequentar meios pouco recomendáveis que, com facilidade, agravam a sua situação e potenciam consumos mais pesados e destrutivos.

Mas isso seria noutra realidade. Aqui, os invejosos são espectrais. Quando alguém apresenta uma fotografia, quando alguém garante possuir provas da existência desses fantasmas, a imagem está sempre desfocada e fica-se sempre na dúvida se será realmente um invejoso ou apenas um defeito de revelação.

Com tantos a serem invejados, sobram poucos para se dedicarem a invejar. Talvez esse seja um ofício em vias de extinção, como os amola-tesouras.

[Publicado originalmente na edição de 8 de maio de 2016]