Nos pés de Inês

Goiaba é a fruta preferida de Inês Caleiro, quase tanto quanto adora sapatos. E entre um gosto e um outro criou a Guava, marca de calçado feminino que fez dela a primeira portuguesa a vencer o prémio de moda Fashion Crowd Challenge, colocando-a no top dos talentos mais promissores. O mundo está agora a seus pés.

O melhor estimulante de paixões é um belo par de sapatos, como o demonstrou Cinderela ao perder o seu e quase acabar transformada em abóbora. Nesta história da vida real não há abóboras – só goiaba, a fruta preferida da designer Inês Caleiro, que chamou Guava à sua própria marca de calçado feminino de luxo. Não mete intrigas palacianas, irmãs malvadas nem ratinhos a intervir – o trabalho foi todo dela desde o início, sem pós de perlimpimpim. Também não existe um príncipe casadoiro como recompensa, mas Inês prefere, de longe, a sua: em janeiro, foi a Xangai receber o Dream Award que fez dela a primeira portuguesa a vencer o prémio internacional de moda e design Fashion Crowd Challenge. Muito melhor do que um conto de fadas.

«Quando recebi a notícia do prémio há três meses nem acreditei, fiquei eufórica. Tive de reler o e-mail várias vezes até cair em mim», conta a fundadora e diretora criativa da Guava, emocionada ainda agora com essa etapa. A Fashion Crowd Challenge é uma plataforma online de âmbito mundial, sediada na China, que permite ao público em geral avaliar designers que ainda não se tenham estreado na indústria da moda. Inês foi escolhida entre dezenas de outros jovens talentos promissores, tão merecedores do estrelato como ela. Simplesmente, caíram-lhe aos pés. «Foi um enorme reconhecimento do meu trabalho, uma experiência única, extremamente gratificante. E um grande incentivo para mais novidades da marca.»

Também já em fevereiro de 2016 – este ano promete –, soube que tinha sido nomeada para a categoria de Melhor Guarda-Roupa no International Film Fest, em Londres, graças ao calçado concebido para as personagens da longa-metragem The 21st Door (A Porta 21, de João Marco). «Fui contactada pelo realizador do filme e voltei a sentir uma enorme felicidade. Conquistas assim tornam-me extremamente grata e com garra para continuar.» Agradecida, mas não deslumbrada, avisa. Nada na vida lhe caiu do céu aos trambolhões, precisou de trabalhar muito para chegar a este ponto. Isso, e gostar tanto de sapatos. «Fazer ballet foi uma fase importante na minha infância. O momento em que passei para as sapatilhas de pontas, aos cinco anos, foi como que a passagem para uma nova fase do meu crescimento.»

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Hoje, aos 32, Inês Caleiro sofre da doença de que padece a maioria das mulheres – compulsão por sapatos, acompanhada de êxtases febris diante de um novo par –, com a vantagem de poder desenhar os seus. Nascida e criada em Lisboa, licenciou-se em Design no IADE em 2006, aproveitando os dois últimos anos na escola criativa para fazer ainda um curso com a joalheira Zélia Nobre. Depois partiu para Londres até ao início de 2010, empolgada. Tirou uma pós-graduação em Acessórios de Moda na London College of Fashion (em 2006/2007), um curso de Design de Produto em part-time na London College of Communication (2007) e foi trabalhando na área da joalharia para pagar contas, como maker assistente e a desenvolver o conceito de peças.

«Iniciei a pós-graduação em agosto, foram seis meses de curso. Curiosamente, o meu interesse natural pelos sapatos só se transformou em paixão nessa altura, porque uma das principais disciplinas era Calçado e passei a conhecer em detalhe a arte de fazê-los», explica. A tutora da pós-graduação topou-a antes mesmo de Inês se ter apercebido da sua vocação: propôs-lhe fazer um projeto de fim de curso na área. Ela aceitou e acabou com o prémio de melhor aluna, além de um convite para estagiar meio ano na Jimmy Choo – “só” a marca de sapatos venerada pela estilosa Carrie Bradshaw de O Sexo e a Cidade. «Depois das sapatilhas de pontas, ter os meus primeiros Jimmy Choo parecia tirado de uma cena da série. Uma espécie de ritual de passagem à idade adulta.»

A icónica marca adorou-lhe o rasgo, queria prolongar-lhe o estágio não-remunerado por mais seis meses. Educada, a designer declinou. Trouxe consigo o rigor, a minúcia, o requinte, e rumou a Washington em janeiro de 2010 para trabalhar (até julho) na marca portuguesa de design de mobiliário de luxo Boca do Lobo – a dar que falar após ter equipado a casa do multimilionário Christian Grey no filme 50 Sombras de Grey. «Foi uma porta aberta de conhecimento, que solidificou ainda mais a visão para a Guava que vim a criar em 2011.» Por entre rabiscos de móveis, esboçava sapatos. «Quase sem me aperceber, tinha uma coleção de 20 modelos projetada.» Trouxe-a na bagagem ao regressar a Portugal em agosto de 2010, decidida a tirá-la do papel.

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Foto: André Gouveia/Global Imagens

Inês está especialmente atenta a edifícios e pormenores que vai encontrando nas cidades, às pessoas e ao que vestem, aos movimentos, às expressões. «Tudo serve de inspiração e é isso que é fascinante no processo criativo», revela, sempre a fotografar, a escrever e a desenhar o que a rodeia para converter em cores explosivas e formas arquitetónicas – a essência da Guava. Os seus sapatos made in São João da Madeira já foram entretanto avistados em publicações como a Vogue, L’Officiel, Elle e o blogue The Coveteur, bem como nos pés da supermodelo e atriz Amber Valetta – a norte-americana que trabalhou para a Louis Vuitton, Prada, Gucci, Versace, Armani, Chanel e entrou nos filmes Correio de Risco 2 (2005), Silêncio Mortal (2007) ou Jogo (2009). Há ainda malas Guava, em que o conceito está presente nos detalhes geométricos.

«Sentirmo-nos bem connosco mesmas e calçadas com elegância, qualidade e conforto é essencial. Com ou sem príncipe», defende a empreendedora, que vende fisicamente nas Galeries Lafayette, no Dubai, mas aposta no online para chegar aos EUA, Austrália, Lituânia, Bélgica, Espanha, Holanda, Angola, Rússia e onde mais se atrevam a calçá-la. Já chegou a produzir duas coleções por ano, numa média de 15 modelos por estação; agora opta por uma linha básica e novidades a ir entrando no site (www.guava.shoes). De caminho, divide temporadas entre Portugal e a Noruega: cá tem o trabalho nas fábricas, lá o irmão, a sobrinha e o namorado (afinal, sempre há um príncipe). «Acredito que cada mulher que calce os meus sapatos vai sentir ter o mundo a seus pés.»

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CAMINHANDO NO TEMPO

Esvaziados há muito da função primária de proteger os pés, os sapatos carregam a personalidade, o status e a elegência de quem os compra (mulheres na frente da fila). Maria Antonieta, casada com o rei Luís XVI de França, passava horas a contemplar a sua coleção de mais de 500 pares de sapatos que usava uma única vez, catalogados por data, modelo e cor. Josephine Bonaparte disputava as atenções com o marido, Napoleão, ao calçar cinco ou seis pares diferentes todos os dias para não cansar o olhar dos outros. No século XX, com a produção de calçado a integrar novos materiais e técnicas, a figura do designer surge então para iniciar uma nova relação de cumplicidade. O francês André Perugia era um deles e dizia a quem o quisesse ouvir que «um par de sapatos tem de ser perfeito como uma equação e ajustado ao milímetro como uma peça de motor». Inês Caleiro não podia estar mais de acordo. Os seus são assim.