O setor dos laticínios atravessa a pior crise de sempre e, nas ilhas açorianas, os efeitos sentem-se a dobrar. Há produtores a tentar contornar o fado com leite de alta qualidade, há quem traga novas raças de bovinos para as ilhas, há quem simplesmente abandone a profissão. Esta é a história de como o gado salvou um dia um arquipélago. E de como os prados são hoje palco de resistência.
Ainda o Sol não se levantou no Atlântico quando Ricardo e Marco abrem as portas da sala de ordenha, são cinco da madrugada e é hora de começar a tirar o leite às vacas. Os animais fazem fila à porta, parecem ter a rotina estudada. Entram dezasseis de cada vez. Cada um ocupa uma manjedoura e fica com o rabo virado para o centro do corredor. Os homens inspecionam-lhes as tetas, calhando estar sujas lavam-nas à mangueirada. Depois verificam se têm feridas, desinfetam o que for preciso com Betadine, e por fim aplicam as quatro tetinas nos animais. No processo todo, não tocam numa gota de leite. Os tubos estão ligados a um sistema informático que analisa a quantidade e a qualidade do leite e o líquido escorre então para um grande contentor, que daí por umas horas há de ser levado num atrelado até à fábrica. Ali, volta a ser analisado, e depois pasteurizado e embalado. Às dez da manhã, todos os bovinos da Quinta do Monte Inglês, na Fajã de Cima, ilha de São Miguel, estão tratados. Daí por doze horas, voltarão a cumprir o ritual.
Quando os trabalhos terminam, abrem-se os portões da vacaria e encaminham-se os bichos para o pasto. Quem os guia é Eugénio Câmara, dono do Monte Inglês, são dele aquelas cem cabeças de gado. Estas pastam 365 dias por ano, não comem rações nem hormonas e cumprem os requisitos para integrar o programa Leite de Vacas Felizes, desenvolvido por uma das principais operadoras do setor. A multinacional Bel investiu dez milhões de euros numa nova unidade fabril açoriana onde se produz leite de pastagem, um novo segmento desenvolvido pela marca Terra Nostra. Aqui só entra o leite que cumpra requisitos de bem-estar animal, pastagem de erva, vida ao ar livre – daí o nome Vacas Felizes. «Os Açores precisam de diferenciar os seus produtos, porque não conseguem competir pela variável preço», dizia Ana Cláudia Sá, diretora-geral da empresa em Portugal, na inauguração do complexo. «É a própria sustentabilidade dos laticínios açorianos que está, neste momento, em causa. Sem produtos de alta qualidade, que é a mais-valia natural do arquipélago, o leite açoriano está condenado.»
O drama não é só insular, mas aqui os efeitos têm o dobro da força. «A melhor expressão para explicar o que está a acontecer no setor dos laticínios é o de uma tempestade perfeita», diz Luís Vieira, secretário de Estado da Agricultura. «O embargo à Rússia e a quebra de procura chinesa atiraram a Europa para uma crise preocupante, com preços baixíssimos que estão a tornar-se inviáveis para muitos produtores.» Portugal, um país periférico, tem cada vez mais dificuldade em colocar o que produz no mercado e, no que toca aos Açores, o problema piora, pelos custos de transporte associados. «Estamos a vender muitas vezes abaixo do custo de produção, o que torna as coisas insustentáveis. Em vinte anos, passámos de 90 mil produtores para 5300, em todo o país.» E os que resistem desesperam: entre 2014 e 2016, o preço pago aos criadores caiu 11 cêntimos. Estava a 38 cêntimos por litro, agora está a 27.
Um terço do leite consumido no país vem das ilhas. O setor representa diretamente nove por cento da economia do arquipélago e, segundo a Associação de Agricultores da região, indiretamente vale trinta por cento do PIB dos Açores.
«As coisas estão numa fase tão dramática que, neste momento, sessenta por cento dos produtores estão tecnicamente falidos», diz Jorge Rita, presidente da organização. Nos últimos anos, tem visto cada vez mais criadores de gado afastarem-se dos prados – é trabalho duro, cada vez compensa menos. «O problema é que, aqui, as empresas são pequenas, familiares, e isso tem atrasado a modernização e a requalificação das vacarias. Quem sobra já percebeu que não vai conseguir sobreviver se não se atualizar. Mas, pelo caminho, vai caindo muita gente.»
É difícil imaginar os Açores sem vacas. Elas são mais do que os habitantes. Trezentas mil para 246 mil humanos, segundo a Pordata, e tanto uns como outros estão maioritariamente em São Miguel. «O facto de haver menos produtores não significa uma quebra no gado», diz Jorge Rita. «É que, em 1980, um lavrador sustentava a família com dois animais. Em 2000, precisava de 12. Agora, se quer sobreviver, tem de ter pelo menos cinquenta.» Mais de seiscentos milhões de litros de leite são fabricados anualmente no arquipélago, mas muitos são excedentários e por isso pagos a preços de saldo. «O que os lavradores hão de fazer, deitar as vacas ao mar?»
José Eduardo Pereira tem 49 anos e lembra-se de que em miúdo produzia-se de tudo na Maia, concelho de Ribeira Grande. Mas, nos últimos anos, as indústrias do tabaco e das conservas desapareceu quase por completo, restam os pastos e as vacas, que alimentam cada vez menos famílias. «Eram quarenta casas a viver disto, agora são cinco.» No seu caso, é negócio de terceira geração. O avô tinha deixado 12 vacas para oito filhos, e foi assim que os Pereira se governaram. «Antes, os rapazes faziam dez quilómetros a pé para ir vender o leite à mercearia, cada um com quarenta quilos às costas.» Assim amealhavam dinheiro, no final dos anos 1970 já o pai dele tinha meia centena de vacas em nome próprio. Agora, ele e dois irmãos são donos de 500 cabeças de gado, que produzem quase 750 mil litros de leite por ano. «Percebi muito cedo que teria de apostar na qualidade, por isso esforcei-me sempre por cumprir todos os parâmetros.» Também ele é produtor do programa Leite de Vacas Felizes. «Pagam-nos um pouco acima da média. Se não fosse isso, estaria a ganhar menos do que gasto.»
José Eduardo sabe o nome de todos os animais, e algumas vacas aproximam-se quando o veem, querem festas do dono da fazenda. «Esta é a Lindeza, a mãe chama-se Linda e a avó Beleza.» Adiante está a Luz, que é filha da Brilhante e irmã da Joia. As associações de nomenclatura são hábito ancestral, tradições que se passam entre gerações. A Princesa é filha da Rainha e esta era neta da Cinderela. «Sabe, chamo-as pelo nome para elas virem para a ordenha, foi assim que vi o meu pai tratar os animais. Dentro da sala de ordenhas tratamo-las quase como robôs, e isso faz-me alguma confusão. Durante anos andámos a tentar cumprir os requisitos europeus, mas como é que vamos competir com a produção em série da Alemanha ou da França? Não vamos, temos de voltar aos modos de antigamente, para as coisas poderem funcionar.» Os pastos de trevo, as pastagens com sol e sombra, tudo o que aprendeu em miúdo. A Europa deu, a Europa tirou e Pereira sabe que os Açores já não podem contar com Bruxelas. «Só há uma maneira de nos safarmos: termos amor por isto.»
O fim das cotas leiteiras, há dois anos, não ajudou à crise. «A liberalização do mercado beneficia os países centrais, que conseguem produzir em massa», diz Jorge Rita, da Associação de Agricultores dos Açores. «Mas aqui as vacas são parte da nossa identidade, o que está em causa é muito mais do que a viabilidade económica, é a identidade de um povo.» E explica que uma boa parte do caráter açoriano se explica pela criação de gado. «Estamos rodeados de mar mas temos uma ruralidade muito marcada. O nosso povo tem uma forte ligação à terra, uma resistência e uma paciência que são explicadas pela lavoura. Estamos habituados a lutar contra os elementos.» E acredita que também esta tempestade será superada.
É precisamente por causa de uma grande crise agrícola que a criação de bovinos se tornou a base da economia açoriana. Até ao início do século xix, o arquipélago vivia sobretudo do cultivo da laranja. A cultura dos citrinos tinha-se imposto como a principal das ilhas desde meados do século xvi, e cem anos mais tarde as laranjas eram exportadas em grande escala para a Europa, sobretudo para o Reino Unido. Uma boa parte da paisagem insular explica-se pelos pomares. Os pinhais das ilhas foram maioritariamente plantados para proteger as árvores de fruto das tempestades, e ainda se encontram várias zonas muradas em campo aberto, edificadas para cortar o vento. Em 1832, no entanto, tudo virou abrutamente.
Bastaram dois limoeiros chegarem à ilha do Faial infestados com cochonilha para toda a economia da região ruir. O inseto espalhou-se pelo arquipélago num ápice e deu cabo das plantações em poucos anos. A alternativa chegou pela voz de André do Canto, um lavrador que em 1834 fundou a Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense e começou a promover a introdução do gado bovino na ilha. O Arquivo Regional dos Açores, em Ponta Delgada, guarda uma cópia do primeiro boletim de O Agricultor Micaelense, onde Canto explicava a sua teoria: «O Boi é, de todos os animais, o que nos presta mais serviços. Dá-nos leite, manteiga, queijos, carne, couro, lavra as terras, carrega os seus produtos e é sempre dócil e paciente.» Depois segue com recomendações de escolha de raças e tratamento dos pastos. Os Açores precisavam de uma nova economia – e naquele almanaque estavam as bases da salvação.
No estudo «A Ilha Verde», da geógrafa Raquel Soeiro de Brito, é possível tomar o pulso à evolução do setor. «A partir de 1842 inicia-se um período de larga importação de gado.» Chegam sobretudo vacas holandesas, da raça Holstein-Frísia, os animais malhados a preto e branco que se tornaram postal das ilhas. Em 1870, havia já 12 930 cabeças bovinas em São Miguel, número que triplicaria 30 anos depois. A lavoura haveria de espalhar-se pelo território: primeiro à Terceira, depois ao Pico, São Jorge e Faial, depois às ilhas todas. A paisagem também muda para sempre: «Com o desenvolvimento das pastagens, muitos terrenos que antes eram de cultura passam a ser utilizados na criação de gado. E muitas terras incultas são arroteadas.»
É no início do século xx que a paisagem açoriana se torna aquilo que conhecemos hoje. O gado não foi só a salvação das gentes, também determinou a fisionomia do território.
Voltamos ao início da história, à vacaria de Eugénio da Câmara, na Quinta do Monte Inglês. O negócio tem anos na família, são produtores de leite desde o início do século passado. Eugénio Botelho da Câmara, bisavô do atual proprietário, lançou as raízes no terreno, arrancando laranjeiras para plantar pasto. «Os filhos dele deram continuidadeà exploração, aqui e na Terceira», conta Pedro da Câmara, neto de Eugénio primeiro, pai de Eugénio segundo. Também ele cresceu à medida dos laticínios.
«Na minha infância, a Fajã de Cima era o fim do mundo, não havia estradas nem eletricidade, ir a Ponta Delgada era uma aventura.» Os trabalhadores não usavam sapatos nem bebiam o leite que ajudavam a ordenhar. «Era atividade de gente pobre. As casas de pedra tinham sempre uma porta virada para a rua, por onde entrava o carro de bois.» Economia de subsistência, diz agora, mesmo que a sua família fosse fidalga. O pai afiançava que sempre se havia de comer carne e beber leite, era negócio com durabilidade. Por isso manteve a lavoura, que agora o filho está a fazer crescer.
Jornais não havia, as notícias chegavam com o homem que vinha recolher o leite, casa a casa, quase toda a gente possuía uma vaquinha. «Nas propriedades grandes era um homem por quinze cabeças, subiam aos montes e passavam lá os dias, faziam a ordenha antes da saída e depois da chegada.» Vida dura, recorda, que a tecnologia não conseguiu esbater totalmente.
Nos anos 1960, o povo abalou, cansado da miséria. E, nas palavras de Pedro da Câmara, quem ficou só podia manter-se se investisse a sério na melhoria da espécie. Hoje há processos de inseminação para melhorar a produção, os prados são vigiados a rigor, na vacaria só se serve feno. «E vemo-nos novamente sem alternativas, porque na agricultura açoriana só se consegue sobreviver com o gado, e cada vez é mais difícil mantê-lo.»
João Silvestre, por exemplo, vê o caso malparado. «Tenho 120 vacas de leite, que passam sessenta por cento do ano no estábulo. É a maneira que tenho de me safar agora, o leite já não dá.» O seu negócio, hoje, é cada vez mais a venda de novilhos e para eles não tem o trabalho de levar as vacas ao pasto. É a solução que vê para não cair. «Anda tudo entusiasmado com o turismo e é nisso que a região está a investir hoje.» Mas depois preocupa-se, que é uma fase passageira, em caso de crise o povo há de abandonar as viagens, já a carne e o leite nunca poderão acabar. «Além de que não há turismo nos Açores sem vacas.» O retalho dos campos, o quadriculado do verde é consequência da lavoura. «Este desinvestimento vai ter consequências na região toda – e em todos os setores.» Propõe a baixa do IRS para os laticínios. E a liberalização dos transportes marítimos, para a carne chegar barata ao continente. Silvestre não está a apostar na qualificação do produto, está a tentar baixar despesas , apostar em setores paralelos. Para que a lavoura não morra.
Dora Martins congrega duas improbabilidades. É mulher e é jovem, coisa rara entre produtores. Tem 24 anos e seis dedicados às vacas, ao lado do pai e do irmão. «Não está fácil, mas quero fazer disto a minha vida.» A rapariga sabe-se num mundo de homens, contraria desaforos com resposta pronta, sem papas na língua. No trabalho, não se envergonha pela falta de força. «Não vai à primeira, vai à segunda. Mas vai.» E vai. É ela quem assiste os partos dos novilhos, faz as vezes de veterinária, encaminha as vacas para a ordenha. Os Martins têm 200, mas só 90 são leiteiras. «Se os preços atuais não nos dão hipóteses, temos de ir por outro caminho.» Andam a adquirir cada vez mais espécimes de Black Angus, cuja carne vende a melhor preço. «É, um dia os Açores vão deixar de ter vacas malhadinhas.» Encolhe os ombros, diz que tem pena.
Quando os outros miúdos iam para a creche, ela seguia de carrinho de bebé para os prados. Estudou até ao 12º ano, um curso técnico de Animação Sociocultural. «Divertia-me muito a fazer teatro, encenações para crianças, sempre gostei de miúdos.» Mas o apelo do campo bateu mais forte, por causa de uma vaca chamada Beatriz, que era dela e que morreu quando a rapariga cumpriu os 18 anos. «Todos os trabalhos da escola, teatros de fantoches, representações no palco que eu tinha de preparar tinham sempre uma vaca Beatriz, era a minha imagem de marca.» Não resistiu ao parto de dois vitelos mortos, mas foi nesse dia que Dora decidiu que a sua vida ia ser o gado. «Eu sou muito açoriana, prefiro o meu quinhão de terra a viajar pelo mundo.» Como ela todos os produtores, cada vez mais apertados pela falência do setor dos laticínios, mas sempre presos ao gado. «Não há nada mais lindo do que começar o dia a ver o leite jorrar das tetas das vacas, porque é nesse momento que se vê o fruto do nosso trabalho. E, depois, quando se levam os bichos ao pasto e se vê o Sol nascer nos campos, com o mar ali ao fundo, uma pessoa sente que o mundo faz sentido e que faz sentido o que andamos a fazer no mundo. Isto é uma grande verdade, e é uma coisa que só um açoriano percebe.»
Ninguém quer adivinhar que o leite açoriano também chegue um dia ao fim. Até porque, hoje, nas ilhas, não há ninguém que tenha crescido sem ver as vacas nos pastos.
Jorge Rita, o presidente da Associação Agrícola, diz que a proteção das vacas açorianas não é só um desígnio regional, tem de ser um objetivo regional. «Cada produtor que desiste da profissão é uma tragédia, e são cada vez mais. Se há cantões na Suíça que construíram toda uma simbologia em torno do gado, não é nada menos que justo que façamos aqui o mesmo.»
O aproveitamento turístico, a proteção das espécies, a criação de denominações de origem controlada. O projeto das Vacas Felizes – e do leite de pastagem que a Bel está a construir – é um bom sinal. «Ao contrário da reinvenção que tivemos de fazer depois da crise da laranja, hoje a agricultura açoriana não tem alternativas ao leite. Pode ter complementaridades, mas não tem alternativas.» O caminho é uma expressão batida: resistência. Ou então a morte.