Manuel Valente: «Há pessoas tenebrosas que escreveram obras maravilhosas»

Manuel Valente

Devemos-lhe a publicação em Portugal de títulos icónicos como A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera, ou de O Velho Que Lia Romances de Amor, de Luis Sepúlveda. No fecho da Feira do Livro, Manuel Alberto Valente, diretor editorial da Porto Editora, recusa alimentar a polémica com Zeferino Coelho, da Caminho, sobre Saramago, e prefere falar do papel do editor: servir de filtro entre o que se escreve e o que merece ser publicado. 71 anos de vida, mais de trinta de carreira, e a certeza de que o livro, tal como o conhecemos, sobreviverá.

A entrevista decorreu entre livros – todos os que publicou na Porto Editora, os que diariamente lhe chegam do estrangeiro e os originais, que aguardam sentença na secretária – e fotografias. Duas horas de conversa, entre cigarros e temas que lhe são caros: o risco, o atrevimento, a paciência, a poesia, o futebol, as viagens, as mulheres, «desde sempre o mais importante». Manuel Alberto Valente, «adolescente adiado», nasceu em Coimbrões, Vila Nova de Gaia, em 1945. Vive em Lisboa desde os 20 anos, no mundo da edição, há mais de três décadas.

Que papel tem um editor hoje?
O mesmo de sempre: servir de filtro entre o que se escreve e o que merece ser publicado. Sabemos, é claro, que nos últimos anos a situação mudou bastante. Um teórico destas coisas disse até que se estava a caminhar para uma edição sem editores. E há, de facto, hoje, a chamada autoedição – em suporte digital, cada um pode publicar o que quiser. O que provoca, claro, o aparecimento de lixo, muito lixo. Falta à autoedição o olhar crítico do editor. Que é também quem, muitas vezes, ajuda o autor a cinzelar o próprio trabalho.

Nos últimos anos, o centro da edição deslocou-se, portanto, do autor para o leitor. O editor perdeu muito poder?
A grande mudança dos últimos anos tem que ver com isso. Há 30 anos, os editores procuravam autores. Com a criação dos grandes grupos editoriais e da chamada indústria editorial, a edição começou a procurar o que o leitor quer ler. E porque o que o leitor quer ler nem sempre é o melhor, o nível da edição baixou.

Publicar autores e obras que surpreendam o leitor. Hoje, o fator surpresa já não é uma prioridade. Pelo contrário?
Nos anos 1980, quando iniciei, na D.Quixote, a minha carreira, propusemos ao leitor português autores completamente desconhecidos, que são hoje nomes incontornáveis. Passadas umas semanas, poucas, sobre a publicação de A Insustentável Leveza do Ser [Milan Kundera], a expressão «insustentável leveza» entrou nos hábitos quotidianos dos portugueses. Todas a usavam, do Parlamento aos jornais. E, de repente, havia a convicção de que estávamos a dar qualquer coisa de novo ao país. E era um orgulho. Isso mudou radicalmente. Hoje, o editor, sobretudo o dos grandes grupos, está muito condicionado pelo share.

Entristece-o?
Eu tenho boa boca, como se costuma dizer, mas reconheço que não dá o mesmo prazer. Descobrir novas vozes e novas maneiras de dizer as mesmas coisas dá muito prazer.

De que caraterísticas essenciais é feito um bom editor?
Em sentido clássico, tem de ser um grande leitor. Tem de ter uma cultura geral elevada, que lhe permita integrar e compreender o que lê. Tem, também, de estar muito bem informado, e para isso tem os jornais, as feiras, as revistas literárias. E tem de ser capaz
de não aplicar apenas o gosto pessoal, sabendo reconhecer qualidade a obras de que porventura goste menos.

Um original apadrinhado?
A minha longa experiência diz-me que é muito raro aparecer um original anónimo com qualidade. Os que têm alguma qualidade chegam, em regra, apadrinhados. Por um outro escritor, por um jornalista, por alguém do meio. Os textos anónimos, salvo raríssimas exceções, são muito carentes de qualidade e chegam de pessoas convencidas de que um romance se resume a contar uma história em meia dúzia de palavras.

Confronta-se com muito desplante?
Algum. Há pouco tempo, recebi um original de alguém que afiançava que o seu livro tinha todas as condições para ser um êxito e que iríamos todos ganhar muito dinheiro. Quando se leu o original, verificou-se que era um texto quase infantojuvenil, uma cópia sem qualidade de centenas de livros de aventuras.

Encontra razões para essa falta de consciência autocrítica?
É muito curioso, conheço autores, ou pretendentes a autores, que dizem coisas do género: «Sabe, eu quero escrever, não tenho tempo para ler.» E eu espanto-me ao constatar que há muita gente convencida de que é possível escrever sem ler. O primeiro conselho que se deve dar a quem quer escrever é que deve ler muito. Um autor que não tenha lido os grandes clássicos, que não tenha aprendido com o que foi sendo feito ao longo da história da literatura, nunca escreverá bem. Pode haver um génio, um caso ou outro, mas em regra é uma impossibilidade.

Nota um decréscimo de qualidade dos originais?
Recebem-se hoje mais originais, mas os textos são piores. Percebe-se que os autores leram pouco e, sobretudo, que viram muita televisão. Alguns manuscritos são uma espécie de guiões. Não são romances. As pessoas têm prazer e vontade de partilhar o que fazem com os seus amigos e isso explica o êxito de pseudoeditoras que publicam aquilo que o autor, entre aspas, lhes entrega, até porque é o próprio quem paga a edição. Depois, há casos em que o marketing é automático. Basta ser o livro de alguém que esteja presente na casa das pessoas.

José Rodrigues dos Santos?
Por exemplo. Mas não é caso único.

Há uns anos, professores e livreiros eram os grandes prescritores de livros.
Os professores continuam a ter um papel importante nas camadas mais jovens. Os livreiros, infelizmente, estão a desaparecer. O livreiro-prescritor, aquele que sabia da poda, pertence quase ao passado.

A crítica e a divulgação na imprensa ainda pesam?
Já muito pouco. Tempos houve em que os leitores iam à livraria pedir o livro recomendado por um jornal ou por um crítico. Por vezes, levavam até o recorte do jornal. Hoje não é assim. A crítica tem uma importância muito relativa, funciona em circuito muito fechado. É mais importante uma entrevista, divulga mais e melhor um autor.

Cresce a importância das redes sociais.
E cada vez mais. Por isso, as editoras têm departamentos dedicados às redes sociais. É um trabalho muito importante, sobretudo em países como Portugal, onde a rede de livrarias é fraca. Em França, por exemplo, a rede de livrarias independentes é muito forte e tem resistido até hoje.

A venda de livros em supermercados é um fenómeno português?
Sim. Na Espanha e na França, os livros vendem-se nas livrarias. Em Portugal, 75 a 80
por cento das vendas são feitas nos supermercados, nas lojas Fnac e nas Bertrand. Quer dizer, um editor que tenha alguém que contacte estes três compradores não precisa de se preocupar mais. Três reuniões fazem o trabalho de venda. Outra enorme diferença em relação ao que era.

As feiras do livro são importantes?
Têm uma enorme importância, sobretudo porque permitem aos leitores tomar contacto com os fundos das editoras, cada vez mais difícil de encontrar nas livrarias

E os festivais literários?
Não tenho nada contra, pelo contrário. Tudo aquilo que aproxime os livros e os autores do grande público é louvável e positivo.

Fora do mercado de massas, o que faz de um livro «difícil» um êxito?
Essa é a pergunta para um milhão. Neste momento, assistimos a um fenómeno muito curioso: o sucesso de Elena Ferrante. A autora foi publicada há uns dez ou quinze anos pela D. Quixote e, nessa altura, foi um silêncio absoluto, não vendeu. Agora, na Relógio d’Água (que tem aquele que considero o melhor catálogo da edição portuguesa) está a ter um sucesso enorme. Porquê? Explicar o êxito é muito complicado. Há nesta atividade uma grande dose de imprevisibilidade. As fracas vendas de um livro de certo autor não significam que um outro livro do mesmo autor se venda mal.

Qual deve ser a relação de um editor com o seu autor?
Tem de ser boa, não tem de ser íntima. Há casos em que um autor se transforma num grande amigo, casos em que não. Tem também de ser uma relação de mútua confiança.
Autor e editor devem ser capazes de discutir de maneira leal e franca os problemas.

Uma discussão de igual para igual?
Sem hierarquia. O editor não pode ser o dono, o apoderado do autor – esse é o papel dos agentes literários –, mas o autor também não pode, em nome da sua autoria, ser uma espécie de ditador face ao editor.

Há muitas prima-donas?
Há e é natural. A criação artística é muito individual, muito isolada, um livro obriga a um trabalho longo e árduo, e, portanto, é natural que o autor, pensando que produziu a melhor obra do mundo, exija ao editor um comportamento correspondente. Sabemos que não pode ser assim.

Como se explica isso a um autor?
É muito complicado. O autor tem tendência a achar que a editora vive para os seus livros. Nesse sentido, o editor tem de ser também um relações-públicas. Por um lado, percebendo o ego do autor; por outro, não o deixando abusar. Não é um trabalho fácil.

Já teve experiências difíceis?
Algumas. Mas os autores não são o pior.

O que é o pior?
O pior é o stress desta atividade. Há quem pense que ser editor é um trabalho porreiro, em que se passa o tempo a ler. Engana-se. Muitas vezes, as leituras fazem-se em casa, à noite, fora das horas de trabalho. Porque o editor é também um gestor. E, portanto, tem de preocupar-se com todas as componentes de um processo quase fabril. Se o autor entrega a horas, se o tradutor é de confiança, se a capa está como deve estar. Preocupar-se com a comercialização, com o marketing, com a publicidade.

Ficou amigo de muitos escritores?
Posso gabar-me de ser ou de ter sido – alguns já desapareceram – amigo de 99,9 por cento dos autores que publiquei.

Fale-me das relações mais marcantes.
Não falarei dos vivos. Mas recordo com muita saudade, por exemplo, o João Aguiar e a Rosa Lobato de Faria.

Já passou por desilusões?
Algumas. Há pessoas tenebrosas que escreveram obras maravilhosas.

Convida autores para sua casa?
Visitas regulares, não. Até porque alguns deles vivem no estrangeiro. Mas têm passado por minha casa muitos autores, portugueses e não só. Alguns já lá apanharam grandes bebedeiras. Lembro-me do Paul Auster. Franzino como sou, desci as escadas de minha casa a ampará-lo, corpulento como ele é, para o meter num táxi.

Tem seguramente livros com dedicatórias especiais.
Aquela que guardo com mais carinho é do João Cabral de Melo Neto, nos anos 1960, quando veio a Portugal a peça Morte e Vida Severina. Era o Chico Buarque um menino.

E fotografias especiais?
Tenho muitas, mas podia ter muitas mais. Esqueço-me sempre de registar certos momentos para a posteridade [ri-se].

Hoje, um editor não pode ser poupado à visão empresarial. É preciso publicar o que vende para poder publicar o que não vende. Qual é a linha vermelha?
A linha vermelha é o lixo. Nos meus 30 anos de editor, creio que nunca publiquei aquilo a que se possa chamar lixo. Publiquei muita coisa comercial – e, de uma determinada maneira, não tenho nada contra uma literatura mais comercial, desde que não seja lixo. Não podemos recusar as consequências do processo democrático. Temos hoje a ler milhões de pessoas não liam. E não podemos exigir-lhes que escolham Saramago ou Shakespeare.

Mudaram os leitores, mudou a atitude em relação ao livro. Os jovens, por exemplo, preferem hoje leituras mais curtas, rápidas, fragmentadas?
Há de tudo. Quantitativamente, o núcleo de leitores é o mesmo. É um erro dizer que os mais jovens não leem. Como é mentira dizer que dantes todos liam. No passado, havia uma elite que lia, hoje há um público alargado democraticamente, mas, se calhar, os que leem continuam a ser uma elite. Temos de nos perguntar se a atividade de fruição artística não será gozo de uma minoria, quaisquer que sejam as condições sociais e políticas. Porque nos confrontamos com isto: um estádio de futebol leva 60 mil pessoas e um livro custa mais ou menos o preço de um bilhete. Se vendêssemos 60 mil exemplares de cada livro que publicamos estávamos milionários. Em Portugal, lê-se pouco e somos poucos.

Em setembro, vão entrar no 1º ano apenas 80 mil crianças. Más notícias para os editores, em particular para a Porto Editora, líder no segmento do livro escolar.
É verdade. É uma situação preocupante. Como dizia, somos poucos. E o mercado continua a retrair. Com tão pouca população, só viveríamos confortavelmente se tivéssemos um elevado grau de literacia. Como a Holanda, por exemplo.

Qual é o futuro do livro físico?
Estou convencido de que vai sobreviver. Tendo mesmo a concordar com Umberto Eco, que sobre o livro digital dizia tratar-se de uma moda. De facto, depois de uma subida constante na França e na Espanha, o crescimento parou. Em Portugal, o livro digital é insignificante.

E das livrarias?
É um futuro negro. O problema resolver-se-ia se aumentasse o número de leitores.

Nestes anos de crise, nesta fase convulsa, os profissionais do setor têm estado concertados?
Estamos perante uma situação típica dos mercados pequenos: salve-se quem puder.

Não há uma ética entre os editores e as editoras?
Há um grande individualismo, que é típico dos mercados aflitos. Os mercados aflitos recorrem a todos os expedientes.

É casado com Maria do Rosário Pedreira, a mais mediática editora portuguesa, responsável editorial num grupo rival. Como gerem essa circunstância?
Costumo dizer que tenho a particularidade de dormir com o «inimigo». É uma gestão tranquila e sem problemas. Falamos, é claro, de trabalho, dos livros que lemos, de pequenos episódios da vida profisisonal. Quando tem que ver com decisões mais profundas ou estratégicas de uma das nossas casas, nada é conversado.

Correm o risco de frequentar as mesmas feiras. Como tem medo de andar de avião, a Maria do Rosário acompanha-o nas viagens de carro por essa Europa?
Não é bem medo de andar de avião. Sou, sim, profundamente claustrofóbico, estado que se desenvolveu por volta dos meus 40 anos. E, portanto, tornei-me especialista em atravessar a Europa de comboio ou automóvel.

São célebres as viagens à Feira do Livro de Frankfurt.
São sempre viagens divertidíssimas e que me deram em tempos honras de primeira página. Há uns anos, o [jornal] Frankfurter Allgemeine Zeitung tinha na primeira página, sobre a feira, qualquer coisa como«a Feira é tão importante que fulano de tal, editor português, vem de comboio, de Lisboa, todos os anos». Em certa medida, criou-se uma lenda.

Depois de tantos anos de um catálogo editorial de referência, há alguma publicação de que se orgulhe em particular?
A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera.

O sucesso do livro foi uma surpresa?
É uma história engraçada. Nesse tempo não havia ainda e-mail. Nem fax, acho eu. A D. Quixote tinha em Paris uma espécie de scouter, um senhor sueco que de vez em quando escrevia a dar conta do que se passava no mundo editorial francês. Um dia, recebo uma carta dele a falar-nos de um jovem escritor checo, exilado em Paris e a fazer grande sucesso com um livro, da Gallimard. Pedimo-lo à editora, e lá veio, pelo correio. Li-o e achei-o maravilhoso. Publicámos A Insustentável Leveza do Ser em 1982. Tenho a certeza de que alterou a cabeça das pessoas.

Em 2008, sai da Leya. Foi difícil?
Foi um momento muito forte para mim. Fazia todo o sentido que eu estivesse na Leya. Estava lá toda a minha vida profissional – a D. Quixote (de 1981 a 1991) e as Edições Asa (de 1991 a 2008). Mas houve coisas de que não gostei e trabalho com o qual não me identifiquei. Provavelmente, precipitei-me, provavelmente a Leya precipitou-se, e aconteceu o que o destino tinha preparado. Mas fui compensado com o convite da Porto Editora. Depois de um grupo considerar que eu já não tinha idade para compreender os novos mecanismos da vida editorial, vir um outro grupo, tão ou mais forte, confiar- me uma parte importante do seu trabalho é algo de que me orgulho muito e pelo qual estou penhorado e agradecido.

E leva consigo Saramago, o que recentemente deu origem a uma polémica com Zeferino Coelho, da Caminho.
Sobre isso, tudo o que havia a dizer foi dito. No caso Saramago, o meu papel foi insignificante – contactado pelos herdeiros, limitei-me a intermediar uma negociação que foi difícil, mas que trouxe vantagens para os dois lados. E é um orgulho ter Saramago (de quem fui amigo) no nosso catálogo.

Os livros ainda têm segredos ?
São como as mulheres. Têm sempre algum segredo.

Como funciona sob pressão?
Mal. Funciono mal com a pressão e com o e-mail. Não gosto de ler no ecrã. A relação não se estabelece e os editores, os que me conhecem melhor, sabem que têm mesmo de me mandar o livro.

As primeiras memórias de livros?
São memórias muito profundas e antigas. Não nasci numa casa onde se lesse muito, havia apenas meia dúzia de livros. Mas os meus dois avôs eram grandes leitores e tinham muitos livros. O avô materno, porque era licenciado em Económico-Financeiras, e o paterno, porque, tendo apenas a 4ª classe, vinha da aristocracia operária, fora carbonário, era maçom, e tinha uma biblioteca fantástica de literatura portuguesa. Por isso, desde pequeno, li muito e indiscriminadamente. Com 12, 13 anos, trouxe da biblioteca do meu avô materno o Dostoiévski. Li tudo. Um pouco mais velho, fui um leitor compulsivo de livros policiais, curiosamente da coleção Vampiro.

Curiosamente, suponho, porque é a coleção que está a relançar no mercado.
Sim, um velho sonho. Tornei-me leitor compulsivo com a coleção Vampiro. Por vezes, lia dois por dia.

Que criança era essa?
Uma criança normal da classe média baixa, o meu pai trabalhava com o meu avô, que era despachante dos caminhos-de-ferro, a minha mãe era doméstica. Um menino que adorava jogar à bola, que brincava às corridas de caricas, que colecionava miniaturas de automóveis, os Dinky Toys. Um miúdo franzino, mas não tanto como hoje.

E que sonhava ser?
Queria ser advogado. Desde muito pequeno que se dizia «o menino tem muito jeito para falar, tem de ir para Direito». Com o meu irmão mais novo, fazia campeonatos do mundo de hóquei em patins. E no final, na entrega das taças, contava a minha mãe que os meus discursos eram tão inflamados que ele, mais novo cinco anos, chorava como uma Madalena. A minha vocação falhada é de parlamentar. A certa altura quis ser inspetor da PJ ou diplomata, mas, tendo feito cedo a minha formação ideológica, num regime ditatorial não podia ser uma coisa nem outra. Fui então para Direito, demorei sete anos a licenciar-me e estava disposto a ser advogado. Mas regressei de Angola e do serviço militar 15 dias antes do 25 de Abril. Foi uma loucura. Interessei-me pela política, pelo jornalismo e nunca mais pensei no curso. Depois, vim para a edição.

Em miúdo, começa também a paixão pelo Futebol Clube do Porto.
Era um adolescente maluquinho pelo FCP. Recordo-me de assistir, com o meu pai, ao jogo inaugural do Estádio das Antas. Maluquinho pelo FC Porto e por namoricos.

Ser bem-falante ajudava.
Muito, era fácil cantar o fado do bandido às raparigas. Eu aquele rapaz a quem as mães confiavam as filhas. Tinha fama de ser um tipo bem-comportado…

E a escrita?
Começa muito cedo. Durante a escola primária, escrevi uma História de Portugal que a minha mãe guardou por muitos anos. Claro que era toda copiada dos grossos volumes da História de Portugal do Damião Peres (dita «de Barcelos») que o meu avô tinha em casa. A poesia começou mais tarde, por volta do 5º ano do liceu. Se bem me lembro, com a descoberta de José Gomes Ferreira, um poeta hoje muito esquecido.

Depois de vários anos sem publicar, sai em 2015 a antologia Poesia Reunida – O Pouco Que Sobrou de quase nada. Disse nessa altura: «A entrega aos livros dos outros secou a minha criação.»
Nunca procurei a poesia. A poesia é que de vez em quando me procurava. Mas para que isso acontecesse era necessário uma grande disponibilidade mental. Depois de 1981, a minha cabeça foi-se enchendo com as vozes dos outros. De resto, sempre tive um lema: entre a arte a vida, escolho a vida. Entenda-se por vida amar uma mulher ou ir jantar com amigos. E sempre fui preguiçoso.

As mulheres, sempre as mulheres.
As mulheres foram sempre o mais importante na minha vida.

Escreveu sempre poesia lírica?
O Eduardo Prado Coelho escreveu que a minha poesia conjugava amor e liberdade. Concordo. Foi sempre lírica, e ao mesmo tempo um canto de liberdade. Sobretudo antes do 25 de Abril, quando a poesia era uma forma de resistência e de combate.

Fez tropa em Angola. Não pensou em exilar-se?
Não sendo militante comunista, era muito influenciado pelas posições do PCP, que entendia que era importante ficar e minar o regime por dentro. Foi isso que aconteceu.

Angola.
Angola foi uma experiência muito marcante. Não uma experiência de guerra – estive sempre em Luanda, na chefia dos serviços de justiça – mas pessoal. A sociedade civil pressentia que algo iria acontecer e, portanto, passou a valer tudo, havia que aproveitar enquanto houvesse tempo. Tive uma experiência cultural rica, fiz teatro, encenei peças e vivi uma experiência erótica e sentimental que me transformou. A liberdade sexual era total. Vivia num paraíso.

Porto e Coimbra.
O Porto daquele tempo – onde vivi até aos 17 anos – era uma cidade de província. Coimbra tinha um ambiente fantástico. Não apanhei as crises académicas de 1961 e de 1969, mas nos três anos que lá vivi deparei-me com um ambiente de grande fraternidade e cumplicidade. Procuro não ser «coimbrinha», mas aquela cidade, de facto, marca.

Como chega à edição?
Por um acaso político, que é a morte de Sá Carneiro. Se Sá Carneiro não tivesse morrido naquele desastre de aviação, e com ele Snu, o mais certo era ser hoje advogado. A família de Snu Abecassis, proprietária da D. Quixote, vendeu a editora a Nelson de Matos, um grande amigo, que me convidou para diretor editorial. E aí vim eu do Porto para Lisboa. No mês de Outubro seguinte, fui à minha primeira Feira de Frankfurt.

Que livro gostaria de publicar?
Os livros importantes estão todos publicados. Não há grandes obras na gaveta. Histórias de escritores fantásticos que não encontram editor são só isso, histórias, mitos, lendas.

Recomendação de um livro.
Não sei se sei recomendar um livro a um jovem de hoje. Uma coisa recomendo: leiam, leiam, leiam. E sobretudo os grandes clássicos, os do século xix, mas também os do século xx.

Que livros tem neste momento na mesa-de-cabeceira?
Tenho vários. Acredito na tese de Umberto Eco: durante a noite, os livros entram-nos por osmose. Neste exato momento, estou a reler, 50 anos depois, o primeiro título republicado da coleção Vampiro: Os Crimes do Bispo, de S. S. Van Dine. Em miúdo ou agora, o entusiasmo é o mesmo.

Um autorretrato numa só frase.
Sou um adolescente adiado.