
A história de uma menina de 15 anos que ficou paraplégica e nunca se rendeu à sua condição nem está sempre a falar do assunto.
Há algo sempre de muito intenso na Marta Guimarães Canário. Há uma sofreguidão no falar, uma força na defesa de ideias, um sorriso largo, uns gestos grandes. Talvez seja por isso que a cadeira de rodas onde está sentada – ou onde se desloca com enorme rapidez – passa por pormenor. Um pormenor daqueles que representam o diabo, claro. Não podemos enganar-nos: a vida dela teria sido completamente diferente se ela não tivesse tido aquela intoxicação com monóxido de carbono que a tornou paraplégica aos 15 anos de idade.
Contra o destino, batatas. O que tornou a Marta diferente foi a forma como ela, desde cedo, o encarou e lhe deu a volta, contornando a enorme barreira que lhe foi colocada à frente. Decidiu que, ao contrário do que é costume dizer-se, ela não era ela própria e as suas circunstâncias, mas sim ela própria, apesar das suas circunstâncias. Resolveu ter uma vida normal. Aos 15 anos isso implicava continuar a estudar, namorar, sair com os amigos, ir a discotecas. Coisas que, sem hesitar, continuou a fazer, com os amigos, que também a ajudaram sem hesitar. Aos 40, isso implica não se deixar ficar, continuar a fazer a sua vida profissional, a ir à praia, a concertos, a todo o lado onde não haja um obstáculo que a pare. E, sobretudo, implica não se deixar vencer nem admitir ser tratada com pena e condescendência.
Ora, aí está porque, apesar de não o querer admitir, Marta foi também as suas circunstâncias: por não se ter deixado ficar a um canto, a chorar, mudou a sua vida e a de todos os que a rodearam, levando dessa experiência uma lição de vida. Aconteceu com a Inês Queiroz, da editora Matéria-Prima, que conheceu a Marta na faculdade e de repente viu naquela história que ela sempre conhecera o ingrediente perfeito para um bestseller.
E aconteceu a mim. Sempre que estive com a Marta Guimarães Canário, a cadeira de rodas onde ela se encontrava não foi um assunto da nossa conversa. Tínhamos amigos comuns, encontrávamo-nos na praia da Costa de Caparica, no verão. Falámos do mundo, da comunicação social – oh, esse tema recorrente entre quem está ligado à área –, das tricas e dos bastidores. Mas também da família, do tempo, do mar, da vida. Ou das melhores praias da Costa.
O tema da cadeira de rodas só foi assunto quando, há um ano, eu própria precisei de uma quando parti um tornozelo e tentei dar um passeio na rua. Tentei, não consegui, por causa dos passeios falsamente rebaixados e das pedras soltas da calçada. Como é que tu fazes?, perguntei-lhe ao telefone. Não faço! Respondeu. E logo me contou os procedimentos que tinha de seguir para ter uma vida, vá, minimamente normal que inclui idas ao cinema, espetáculos, à praia…
Na praia, Marta tinha dado um dos seus últimos grandes passos em direção à normalidade que sempre persegue: voltara a nadar no mar. Com a ajuda de um tiralô, uma cadeira especial flutuante comprada pelo concessionário do bar, motivado, claro, pela sua cliente habitual. E era vê-la tão feliz, ondeando na água gelada da Costa, para perceber tudo o que agora quer transmitir com o título do seu livro. Uma lição de vida.
[Publicado originalmente na edição de 6 de março de 2016]