O homem que mexeu com o fado

Foi viola de Amália e acompanhou os maiores do fado como Fernando Maurício, António Pinto Basto ou Celeste Rodrigues. Ajudou a lançar fadistas como Mariza, Ana Moura ou Camané. É um autor requisitado e dizem que uma letra dele é imediatamente identificável – tudo isto apesar de ainda ser muitas vezes, e injustamente, conhecido como o autor do célebre Umbadá. A vida de Jorge Fernando contada através das suas canções, no dia em que passam cinco anos desde que a UNESCO elevou o fado a Património da Humanidade.

«Só tu sabes, solidão. A angústia que traz a dor. Quando o amor, a gente nega. Como quem perde a razão. Afogando o nosso amor. No orgulho que nos cega» (Boa Noite, Solidão, álbum Coisas da Vida, 1988)

Este texto tem banda sonora. Não só porque é de música que se escreve, mas porque são as músicas que compôs ao longo da vida que melhor falam da vida de Jorge Fernando. Com apenas 16 anos já compunha as letras e as melodias que o acompanhariam até hoje, com 59. É raro o espetáculo em que não canta Boa Noite, Solidão, a primeira canção que escreveu, do primeiro álbum de fado que lançou, Coisas da Vida, em 1988. Tocou com Amália, Fernando Maurício, Alcino Frazão, Maria da Fé ou Celeste Rodrigues. Escreveu canções para Ana Moura, Mariza, Camané. Colaborou com Sam the Kid, Virgul ou Lucio Dalla. O seu toque como produtor em estúdio e a sensibilidade das suas letras são ambos reconhecidos no meio em partes iguais.

A história de Jorge Fernando começa em Lisboa, em 1957, quando nasceu, e no Barreiro, onde viveu com os pais e onde mora até hoje. O pai não era presença assídua e essa ausência seria estímulo para letras mais introspetivas. «Só mais tarde percebi que essa falta do meu pai iria condicionar tudo o que eu vim a fazer. O meu pai era camionista. Passava longas temporadas fora e até foi para o Brasil. Eu também fui, mas voltei passado um ano. Ele ficou lá. A partir dos 8 anos até aos 16 vivi com os meus avós e a minha mãe, no Barreiro.» Isso foi decisivo para lhe despertar o interesse pela canção nacional.

«O meu avô levava-me para as casas de fado devia eu ter uns 4 ou 5 anos. Comecei muito cedo a gostar de todo aquele ambiente», conta. Foi nessa altura que começou a ter aulas de viola.

Nunca mais a largou, apesar de ter fama de ser bom de bola. Chegou a ser internacional júnior no 1º de Maio Futebol Clube Sarilhense, da Moita, mas uma lesão afastou-o do campo. «Acho que sempre soube que a minha vida passava pela música. Jogava pelo divertimento. Descobri muito cedo o meu caminho.»

Mas o caminho era longo e nessa altura implicava apanhar um barco e um comboio todos os dias do Barreiro para Cascais para tocar numa casa de fado com o guitarrista Alcino Frazão. Jorge Fernando tinha 19 anos. Para voltar para casa, esperava pelo primeiro comboio, das seis da manhã. «Eram tempos incríveis», relembra o músico com saudade. «Eu era novo e não ligava ao cansaço. Eu queria era tocar.»

A mãe tinha outra opinião. Queria que o filho fizesse como toda a gente. «Alfredo Marceneiro era Alfredo Duarte. Marceneiro era a profissão. Todos os fadistas tinham ocupação. Era o que também se esperava de mim.» Só mais tarde a mãe aceitou, com a proximidade a Amália Rodrigues, que o filho devia seguir a sua vocação.

«Eu fui a voz. Aquela voz dolorida. Cantando a sós. Com a solidão da vida. Mas sei que em mim. Há um lado transparente. Que é um generoso abraço. Entre mim e a minha gente» (Tantos Fados Deu-me a Vida, álbum homónimo de Fernando Maurício, 1995)

Imortalizada por Fernando Maurício, esta letra é de Jorge Fernando. O encontro entre ambos seria decisivo para a carreira do, na altura, jovem cantor. Fernando Maurício ouviu-o a ensaiar numa garagem e achou piada à voz dele. Jorge, com 16 anos, começou a acompanhar o fadista e a aprendizagem era uma constante. Não só na forma como se canta o fado mas também nas subtilezas de interpretação que cada uma das letras exige. «O Maurício era uma pessoa extremamente inteligente. Às vezes, confunde-se memória com inteligência. Aquelas pessoas que sabem debitar livros têm uma memória incrível, mas não são necessariamente inteligentes. O Maurício era um ser verdadeiramente inteligente. Ele tinha uma sensibilidade que se nota em todo o seu canto. A maneira como ele dividia as frases… ele vivia as músicas.»


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Conhecido por ser uma pessoa pouco dada a vedetismos, Fernando Maurício encantava o aprendiz. «Tinha um sentido de humor tremendo. Gostava de irritar os outros, na brincadeira. Queria cantar para as pessoas de que ele gostava. Chegou a cantar nas casas mais elitistas, mas dizia-me que não gostava. Gostava era de estar com a gente dele. Um ser humano e um músico incrível.» Como o próprio viria a definir mais tarde, Maurício foi «a escola primária», a Amália «a universidade.»

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«Sou a estranha flor ao vento. No esquecimento da terra. Num intenso gesto de alma, sou. Esta pena de me achar tão só tanto e tão pouco!» (Ai Vida, álbum Terra D’Água, 1997)

Amália é um capítulo à parte na vida de Jorge Fernando. Quando tocou pela primeira vez o tema Ai Vida para a fadista, ela chorou. «Jorge, você conhece-me como pouca gente», terá dito. A canção, do sexto álbum de originais de Jorge Fernando, foi depois regravada para o álbum Memória e Fado, em 2005, com um excerto cantado por Amália, uma gravação não editada que o músico guardou.

A amizade, que começou quando Jorge tinha 20 anos e Amália 57, viria a durar até à morte da fadista. Conheceram-se quando Jorge foi substituir Alcino Frazão numa atuação com Carlos Gonçalves, guitarrista de Amália. Carlos convidou-o em seguida para tocar com a fadista. E daí criaram «uma relação muito honesta», descreve ele com um misto de saudade e admiração. «Nunca contei esta história, mas acho que retrata bem como éramos um com o outro. Uma vez, estávamos em viagem para um espetáculo e pegámo-nos numa discussão – educada, obviamente. Tínhamos pontos de vista diferentes e eu puxei um bocadinho. Ela virou-se para trás e disse: “Ó Jorge Fernando, daqui a pouco um dos dois está aqui a mais.” Isto aconteceu porque eu não fingia com ela. Nunca o fiz.» Os episódios repetem-se à velocidade da memória.

Foram cinco anos como viola de Amália e outros tantos a acompanhá-la no exterior. Estava presente em vários momentos porque havia muita confiança.

«Naquela altura não havia telemóveis, por isso ela ligava-me para casa e dizia: “Jorge, tenho uma entrevista, importas-te de vir cá ter e assistir?” E eu ia, claro.»

Recordada por um carisma palpável que atraía multidões, Amália é também lembrada pelo amigo como uma pessoa extremamente perspicaz, que «sabia exatamente como passar o recado sem perder a elegância». «Num dos nossos concertos, a Maria da Fé veio assistir. Toda a gente sabia que a Maria, que eu admiro muitíssimo, queria ser como a grande diva. Ora, quando ela vem ao camarim entregar um ramo de rosas, Amália, sempre atenta, só lhe diz: “Ó Maria, deixe as rosas e leve os espinhos.” Ela tinha este dom da palavra em qualquer situação.»

A admiração estende-se pela família. Celeste, a irmã fadista de Amália que ainda hoje, apesar dos 93 anos, canta todos os sábados, relembra com excecional precisão o momento em que conheceu o músico, em casa de Amália. «Ficámos muito amigos. Tenho uma admiração muito grande porque ao pé dele ninguém está triste. É bom músico, bom poeta e boa pessoa.» É sobretudo a sua faceta mais generosa que Celeste gosta de destacar: «Ele escreve as coisas e dá às pessoas que estão a começar. É muito simpático ajudar assim. Não se preocupa em ficar com todo o crédito das coisas, gosta é de colaborar, de trabalhar com os outros. Estou até a pensar gravar um novo disco e terá com certeza letras do Jorge.»

Ainda hoje, Jorge Fernando é relembrado como o viola que acompanhou Amália. É uma descrição que o deixa muito orgulhoso, mas que não o define. Quando tocava com Amália, já colaborava como compositor e produtor para outros fadistas, nomeadamente Nuno da Câmara Pereira. Com a participação, em 1983 e 1985, no Festival RTP da Canção – quem não se lembra do Umbadá? –, que lhe trouxe notoriedade, decidiu lançar-se definitivamente a solo.

«As coisas vulgares que há na vida. Não deixam saudade. Só as lembranças que doem. Ou fazem sorrir» (Chuva, álbum Velho Fado, 2001. Foi depois interpretado por Mariza, no seu primeiro álbum, Fado em Mim, 2002)

Na senda de Umbadá, à medida que Jorge Fernando vai lançando novos álbuns, durante a década de 1990, é notória a vontade de experimentar diferentes sonoridades, cruzar estilos. Ele foi dos primeiros a renovar a forma como o fado é encarado. «Eu fui o primeiro a gravar fado com bateria e percussão, com alguns elementos da Brigada Victor Jara. Cruzei o fado com música mais popular. Foi ousado, mas fico feliz por ver que tantos anos depois é o que se está a fazer hoje. Toda a gente tem bateria e percussões.»

De onde vinha essa necessidade de renovar o fado? «Não sei. Tinha necessidade de renovar-me a mim mesmo. Eu já não estava no fado, estava noutro sítio qualquer.» O público parece gostar da nova abordagem e o álbum Oxalá (1993) foi elogiado pela crítica. É com orgulho que fala das colaborações com Herbert Xmont, Lucio Dalla, ou A Filetta (grupo polifónico da Córsega), por exemplo.

«Sempre busquei renovar-me a cada álbum. Colaborei com alguns dos maiores músicos da atualidade e aprendi imenso, trouxe muito à minha música. Eu não sei se as pessoas sabem disto.»

A musicalidade refrescante atribuída a Mariza ou Ana Moura – esta última, com quem Jorge Fernando esteve casado oito anos, assunto do qual nenhum dos dois fala – teve a forte influência de Jorge Fernando. Foi o músico que produziu o primeiro álbum de Mariza, Fado em Mim, que teve sucesso mundial com temas como Ó Gente da Minha Terra ou a reinterpretação de Chuva, tema escrito por Jorge Fernando. Conheceram-se quando a fadista começou a cantar no Sr. Vinho, casa de fado de Maria da Fé. «O Jorge foi a pessoa que me pressionou para fazer o meu primeiro disco. E hoje aqui estou eu. Ele é um dos grandes culpados!» No último álbum da fadista, Mundo, de 2015, Jorge assina letra e música de duas músicas, Paixão e Sombra.

«Quem vai ao fado meu amor. Quem vai ao fado. Leva no peito algo de estranho a latejar. Quem vai ao fado meu amor. Quem vai ao fado. Sente que a alma ganha asas quer voar» (Quem Vai ao Fado, álbum Guarda-me a Vida na Mão, Ana Moura, 2003)

É um desafio encontrar uma pessoa do meio musical, em especial no fado, com quem Jorge Fernando não tenha colaborado. Afirmação arrojada? Talvez. Mas não foge à verdade. A lista de referências inclui José Gonçalez ou Fausto, um dos ídolos de Jorge Fernando. Para Gonçalez, 47 anos, fadista, «o Jorge é o melhor cantautor contemporâneo. O mais genial. Quem trabalha com ele sabe disso. Não conheço ninguém que seja como ele, qualquer nota, acorde que esteja fora do sítio ele percebe. Ele sabe mesmo muito. É uma capacidade criativa sem igual. Ouve as coisas sozinho e depois chega com as ideias. O Jorge tem uma coisa absolutamente genial enquanto produtor que é perceber o que cada tema precisa e deixa-o crescer a partir dai. E depois vai acrescentando elementos que vão reforçando a ideia original». Os dois voltaram a colaborar neste ano, num projeto que deverá chegar ao público em breve. Já Fausto exalta não só a inovação que Jorge trouxe ao fado mas também o lado genial da sua escrita. «Ele é mesmo bom. E foi sempre assim, sempre um nível de qualidade superior.» São amigos de uma vida, encontram-se regularmente para longas conversas em que recordam momentos caricatos de décadas na estrada e que, para Jorge, são verdadeiras «lavagens de alma».

«Desespero… o mar turva-se aos meus olhos. Porque o céu amua com a terra e entristece. Desespero… roça a minha fantasia. A língua da serpente e o meu céu não amanhece» (Desespero, com a participação de Virgul e Dino Santiago, álbum Chamam-lhe Fado, 2012)

Mais recentemente, as colaborações com os Expensive Soul, Virgul ou Sam the Kid levaram mais além a renovação que Jorge Fernando sempre buscou na sua música. Sem medo de tentar caminhos aparentemente menos consensuais, Jorge acredita que «estamos na altura da desarrumação. Hoje há um fado muito estilizado, pouco emotivo, muito pensado. Quando se canta não se pensa. Estou a recordar-me de uma frase da Amália em resposta a uma jornalista. Ela perguntou-lhe: “Amália, o que pensa quando canta?”, e a Amália respondeu: “Se eu pensasse não cantava.” Os que são realmente os transmissores dessa paixão na voz compreendem isto. A música tem de ser emotiva, tens de cravar algo na memória de quem ouve e as coisas muito estilizadas nem sempre funcionam assim.»

Esta é a verdade que tenta passar aos novos artistas. Inclusive (e sobretudo) aos filhos. Jorge Nunes, 36, fruto do relacionamento com Fátima Nunes, seguiu as pisadas do pai e enveredou pela música. No seu álbum de estreia, Outro Fado, a produção ficou, obviamente, em família. Os dois são próximos e o filho considera o pai como «o seu principal exemplo e mentor». A irmã, Ana Lúcia, 34 anos, também canta e é presença assídua nas casas de fado, em Alfama. Jorge também é pai de Rita, 26, e Maria, a mais nova, de 15 anos, que é a exceção à regra: para já, sonha ser engenheira química. O pai, esse, é o seu herói.

O trabalho deste cantor e compositor, que soma quatro décadas, foi também reconhecido além-fronteiras. «Um dos momentos altos da minha carreira», relembra Jorge, referindo-se ao prémio que lhe foi atribuído em Recanati, Itália, pela Academia Marco Poeta, por causa do seu contributo ao fado.

Em fevereiro de 2016, foi condecorado o com a Ordem do Infante D. Henrique «pelos serviços na expansão da cultura portuguesa».

Os prémios são apenas o reflexo de uma carreira única dedicada ao fado – e não só. Uma carreira que vai muito mais além de Umbadá – a canção pela qual Jorge Fernando é muitas vezes ainda conhecido do grande público. Injustamente.

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O INCONTORNÁVEL UMBADÁ
Jorge Fernando tornar-se-ia conhecido a nível nacional e do grande público, fora do fado, com um tema que marcou uma geração. Em 1985, o Festival RTP da Canção foi ganho por Adelaide Ferreira, com Penso em Ti (Eu Sei), mas o quarto lugar é que ficou na cabeça de toda a gente. «Na altura, passavam grandes nomes pelo festival, como Paulo de Carvalho, Simone de Oliveira. Eu era muito novo [28 anos] e foi um momento importante porque percebi que para conseguir chegar a um público mais abrangente precisava de uma música que ficasse logo no ouvido.»

Ainda hoje, nos concertos, garante que jovens de 15 anos pedem para ouvir Umbadá. Não voltou aos grandes festivais, não houve outro Umbadá. Não era o caminho que havia iniciado com apenas 16 anos, quando escreveu a primeira letra, Boa Noite, Solidão. O fado tornou-se a sua casa e é no fado que «enterra a alma». Apesar disso, não nega o passado e não deixou de emocionar-se quando, em 2015, a Rádio Comercial criou o movimento Umbadá Never Forget, que levou milhares de pessoas a recordar o êxito dos anos 1980.