Jogos Paralímpicos: os superatletas no Rio

Simone Fragoso tem um metro de altura, Telmo Pinão perdeu a perna num acidente, Joana Calado nasceu sem o braço direito, Ana Mota Veiga tem paralisia cerebral. São alguns dos 37 atletas que representam Portugal nos Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro. E contam histórias de sacrifício e superação.

A paralisia cerebral de que sofre desde que nasceu, devido a um parto prematuro, impede‑a de ter destreza nos movimentos e de caminhar longas distâncias sem a ajuda de duas canadianas, mas nunca lhe roubou o sorriso nem os sonhos. Por causa da doença teve de começar a fazer hipoterapia logo em criança e ainda nem andava quando nasceu a paixão pela equitação. Hoje tem 42 anos e conquistou um lugar na difícil disciplina olímpica.

Indiferente aos mais de trinta graus que se fazem sentir às 11h30 de uma manhã de verão no Centro Hípico Costa do Estoril, em Cascais, Ana Mota Veiga sorri enquanto cavalga com Convicto, o cavalo que já é um dos seus melhores amigos. «Deves olhar sempre para o ponto seguinte e não para o ponto onde estás», aconselha o treinador de hipismo e monitor de hipoterapia, Hugo Serrenho. É o último treino que fazem juntos em Portugal antes da partida para os Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro, que começaram no dia 7 e se prolongam até 18 de setembro. Convicto parte já no dia seguinte, de carro até à Bélgica, onde se junta a todos os cavalos dos outros atletas europeus, e depois viaja de avião até ao Brasil. Ana vai aproveitar a tarde para lhe fazer a mala. «São 150 quilos de material e setenta de ração.»

Ana Mota Veiga é audiologista nos serviços médicos da TAP. Só tem tempo para treinar aos fins de semana e nas férias.Há dois anos perdeu a esperança de marcar presença no Rio 2016 quando o seu cavalo Vento da Devesa morreu.

Na paradressage (equitação adaptada), cavalo e cavaleiro são um só. Quando o animal morre, o atleta fica a zeros no ranking e tem de começar tudo de novo. «Ainda ponderei se continuava a montar ou não, mas depois surgiu um convite e voltei a fazer provas.» E correu tudo tão bem que conseguiu ocupar a única vaga que Portugal tem na equitação para os Jogos Paralímpicos – será a sua primeira participação.

O número de vagas disponíveis na equitação para cada país está relacionado com a quantidade de participações a nível internacional. Em Portugal e Espanha não se realizam provas internacionais de paradressage, por isso os sete praticantes da modalidade em Portugal têm de se deslocar para longe. Mas como não têm dinheiro para isso, não vão. «É só de França para cima. Ir a França com o cavalo custa, no mínimo, cinco mil euros. E já estou a contar com tudo o mais barato possível.»

A equitação é um desporto caro e os patrocínios são escassos. O que não acontece na natação adaptada, por exemplo. Simone Fragoso, de 36 anos, é uma das nadadoras que vão representar Portugal. As piscinas do Centro Desportivo Nacional do Jamor, em Oeiras, costumam estar encerradas durante o mês de agosto, mas abriram‑se às 18h00 de uma terca‑feira para um dos últimos treinos da atleta antes de partir para o Brasil.

Simone chega às piscinas num carro adaptado ao seu 1,01 metros de altura, onde traz também um banco que utiliza para chegar às caixas multibanco e aos balcões dos serviços de atendimento. Numa das portas do veículo tem estampado o logótipo da marca Sigura‑te Simone, que gravou também em várias toucas de natação e mochilas para vender e angariar financiamento para os Jogos. Quem já passou algumas horas com a nadadora sabe que o sorriso do boneco do logótipo não podia representa‑la melhor. No local está Joana Calado, também atleta de natação adaptada, e o treinador de ambas, Rui Gama.

AO CONTRÁRIO DA GRANDE MAIORIA dos atletas portugueses, a esta nadadora não faltam apoios e, por isso, sente‑se «felizarda». Mas garante que isso só acontece porque não tem «papas na língua» e bate «a todas as portas». «É difícil dizer que não à Simone cara a cara. É muito raro, não têm coragem», diz a própria. «Tenho muitos patrocínios monetários, de material e logísticos. Há muita gente a apoiar‑me, não cheguei aqui sozinha. A quantidade de pessoas que me apoiam dava para encher um navio de cruzeiro e mesmo assim não chegava.» Alguns dos maiores apoios vêm do Sporting, o clube de coração e que representa atualmente. Já vestiu o equipamento do Clube Naval Setubalense, do Belenenses e do Benfica. Por trás da atleta também está uma mãe incansável. Maria de Lurdes – Milu – tem 60 anos e é uma das responsáveis pela marca norte‑americana Tupperware em Portugal e a atleta diz que herdou dela a boa capacidade de comunicação. «Está sempre em contacto com as pessoas.»

Esta é a terceira e última vez que Simone Fragoso vai aos Jogos Paralímpicos. Para este ano, a vaga foi difícil de conseguir. «Ultimamente há grande concorrência.»

O estilo mariposa, que começou a praticar apenas há três anos, garantiu‑lhe a qualificação. Quando recebeu a notícia ficou tão feliz que só teve vontade de chorar. Foi a 12 de maio, ia a caminho de Fátima. «Uma coincidência gira. Cada um acredita no que quiser, mas sou uma pessoa cheia de fé. Se não fosse, talvez não estivesse aqui.»

Deixar a competição não a preocupa. Tem quatro licenciaturas, em Animação, Teatro e Educação Musical e mestrado em Música e em Sociologia do Desporto. É professora de música e de natação, não atleta, faz questão de frisar. Assim que entra na água, a 27 graus, queixa‑se do frio. «Só tenho nove por cento de massa gorda», grita. Rui Gama, treinador do Sporting e da Federação Portuguesa de Natação, trabalha com Simone há um ano e meio e com Joana Calado há um. «É fantástico. São duas supermulheres, tanto na vida como no desporto. Isso é inquestionável.» Rui garante que os treinos que faz com as duas atletas são tão intensos como os dos restantes que tem treinado ao longo dos quase dez anos que leva como técnico. «Temos as questões biológicas das mulheres sempre muito presentes no treino de modo a conseguirmos equilibrar as fases do período menstrual com as fases de menor apetência para a força física», esclarece.

Joana Calado, 24 anos, nasceu sem o braço direito e provou ser uma verdadeira supermulher quando, depois de oito anos sem competir na natação, fez o seu próprio plano de treino, decidiu participar no Campeonato da Europa da modalidade, em maio, na Madeira, e não só bateu o seu recorde pessoal como estabeleceu uma nova marca a nível nacional nos 100 metros bruços: 1 minuto e 25. «É como numa empresa», diz Joana. «Podes ter um patrão ou ser a tua própria patroa e usar os recursos à tua volta para tomares boas decisões e avançares na tua carreira. Agora, nos Jogos tenho muitas adversárias a fazer 1,22 e 1,23. Se elas conseguem, eu tenho de conseguir.»

O nome da atleta de Cascais já estava na história do desporto português antes desta prestação. Em 2006, aos 13 anos, ficou fora do Mundial de natação adaptada por poucas centésimas de segundo. Devido à tenra idade, não conseguiu lidar bem com esta exclusão. «Foi muito difícil mentalmente.» Nos meses seguintes, tudo mudou. Conseguiu renovar forças. «Passados dois meses, progredi tanto que fiz marcas a nível mundial e em 2008 consegui qualificar‑me para os Jogos (Pequim), com 15 anos. Fiquei em quinto lugar, talvez uma das melhores marcas da natação portuguesa adaptada na altura.»

Depois dos Jogos Paralímpicos decidiu deixar a natação. Com o 12º ano completo, fez as malas e foi para Inglaterra. Vive em Londres, onde estuda Ciências de Computadores e trabalha na multinacional norte‑americana Cisco Systems.

Joana costuma treinar na sede dos paralímpicos, em Manchester, ao lado dos atletas da comitiva britânica. Lá, paralímpicos e olímpicos treinam lado a lado. Não há diferenças ou pena.

Os ingleses orgulham‑se das pessoas com deficiência e fazem questão de o demonstrar. «É quase uma utopia de integração. Venho a Portugal muitas vezes e quando saio do avião sinto que estou num mundo diferente. Em Inglaterra têm tanta admiração pelos atletas paralímpicos, sabem do que somos capazes e não nos dão abébias.»

Está em Portugal desde maio a preparar‑se para os Jogos do Rio. Encontrou estabilidade a nível emocional, profissional e nos estudos. Agora, ninguém a para. «Este é o melhor ano da minha carreira. Está uma grande equipa por trás de mim e o Rui é uma das peças. Nós falamos em perspetivas de medalhas e muitos dos atletas tem‑se virado contra os media por só falarem nisso. Mas não tem nada que ver com isso, tem que ver com oportunidade. Se tens o treino, oportunidade e um bocadinho de sorte, tudo pode acontecer.»

FORAM MUITAS AS CRÍTICAS sobre a prestação portuguesa nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. A comitiva nacional só trouxe uma medalha, de bronze, conquistada por Telma Monteiro no judo. Contudo, Portugal manteve a média de medalhas que costuma conquistar: uma. Os atletas paralímpicos são quem traz mais medalhas. Em Londres 2012, apesar de ter sido a prestação menos medalhada de sempre, trouxeram três – duas de prata e uma de bronze.

A ex‑jornalista Inês Henriques acompanhou de perto a vida de alguns dos protagonistas do desporto adaptado em Portugal e decidiu imortalizar os seus feitos no livro Trazer o Ouro ao Peito (ed. Objectiva). «A deficiência é a condição que existe para eles terem conseguido fazer aquele percurso», diz. «São casos de superação. Para mim, não é a deficiência que os caracteriza, é serem atletas.»

O movimento paralímpico dá oportunidades desportivas a todos os atletas com deficiências físicas, visuais e intelectuais que podem dividir‑se em dez tipos: deficiente potência muscular, deficiente amplitude de mobilização passiva, diferença no comprimento das pernas, baixa estatura, hipertonia (aumento anormal da tensão muscular), ataxia (falta de coordenação dos movimentos musculares), atetose (movimentos descoordenados), deficiência visual, intelectual e perda ou deficiência de membro.

Telmo Pinão, de 36 anos, vai neste ano pela primeira vez aos Jogos Paralímpicos, mas não sonha sequer com medalhas. Quer aproveitar o que tanto lhe custou a alcançar.

Continuar a superar‑se. Viu a perna esquerda ser‑lhe amputada aos 22 anos após um acidente de motoquatro. O ciclismo, que não praticava antes do acidente, deu‑lhe forças para voltar a agarrar a vida. O acidente roubou‑lhe a profissão de comercial. Como sofre de osteomielite crónica, uma bactéria alojada no que lhe resta da perna amputada, não pode fazer os mesmos esforços que antes nas deslocações de trabalho. Hoje sobrevive apenas com o subsídio de desemprego, mas acabou por aproveitar o tempo que tem disponível para se empenhar na preparação para os Jogos. E sem treinador. «Se me dessem apoios, durante os próximos quatro anos eu dedicava‑me apenas a treinar para Tóquio e aí, sim, poderia lutar pelas medalhas. Ia fazê‑lo com todo o gosto.»

Para Inês Henriques, é óbvia a resposta à pergunta sobre onde os paralímpicos vão buscar força para chegar ao sucesso. «Eles têm uma grande vontade de fazer e encontraram pessoas que os ajudaram nesse caminho – treinadores que perceberam o potencial deles para ganhar essas medalhas. Eles próprios não impõem limites.»


Leia também: «Vidas de sofrimento depois dos Jogos»


OLÍMPICOS E PARALÍMPICOS

Nos Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro, Portugal conta com uma comitiva de 37 atletas, mais sete do que em Londres 2012. O número de modalidades representadas Também subiu de cinco para sete. Ao atletismo, boccia, natação, ciclismo e equitação juntou-se neste ano o judo e o tiro. Todos os atletas olímpicos e paralímpicos portugueses têm direito a uma bolsa mensal para cobrir as despesas de preparação, que varia consoante o seu nível (atribuído de acordo com os critérios de integração no Programa de Preparação Olímpica). Se estiver no nível 1 recebe 1375 euros, no nível 2 recebe 1100 euros e no nível 3 recebe 900. Mas estes valores são apenas para os atletas olímpicos. Os paralímpicos recebem menos: 518 euros no nível 1, 386 euros no nível 2 e 225 euros no nível 3. Em caso de conquista de medalhas, o valor dos prémios para os atletas paralímpicos também é inferior. Um atleta olímpico tem direito a 40 mil euros por uma medalha de ouro, 25 mil pela de prata e 17,5 mil pelo bronze. Segundo a portaria 103/2014 publicada em Diário da República, os atletas paralímpicos apenas podem aspirar a prémios monetários de 20 mil euros, 12,5 mil e 7,5 mil, respetivamente.