Há dias, o treinador da equipa inglesa Manchester United tinha uma queixa a fazer. Aliás, Van Gaal tinha duas. Uma era daquele jogo que decorria, importante, com outro grande clube inglês, o Arsenal, em que os adversários estavam a abusar do mergulho. Esta é a palavra, no meio futebolístico, para as falsas quedas, de forma a levar o árbitro a apitar contra o adversário. A segunda queixa era sobre os adeptos do United, que andam há meses a achá-lo demasiado frio.
O ainda alourado holandês, já com 64 anos, levava essas queixas quando foi falar com o quarto árbitro. Este é uma espécie de Defesa do Consumidor, sem poder de decisão, nem dentro de campo está, mas com grande visibilidade. Refilar com ele ajuda a que o estádio perceba (jogava-se em Manchester) que o seu treinador não dorme. E, naquele momento, o estádio estava atento a Van Gaal, até porque no campo, mais uma vez, o jogo parara por causa de outro mergulho dum jogador do Arsenal.
Van Gaal dirigiu-se ao tal árbitro, e falou com volubilidade braçal dum italiano, como convinha a um indignado. Com a boca talvez não dissesse nada de jeito, o seu fito era outro. Agarrado o interesse dos espetadores, Louis van Gaal fez de grande ator (nessa noite, era a entrega dos Óscares em Hollywood).
Estava ele a meio metro do tal árbitro, e este com os braços pendentes, quando Van Gaal dá um salto e cai de costas. Fosse no MGM Arena de Las Vegas, julgar-se-ia ter havido um uppercut fulminante e KO. Mas não, depois da farsa, pois disso se tratava, o treinador, que afinal não era tão frio como se dizia, levantou-se e regressou ao seu cantinho do ringue, que continuava a ser o banquinho da equipa técnica.
Neste ano, o estádio do Manchester United ainda não tinha aplaudido o seu treinador como naquela tarde. A partir de agora, se o clube desata a ganhar, José Mourinho (que estaria na calha para substituir Van Gaal) ainda se arrisca a ter de procurar outro pouso. Nem tanto pelas vitórias futuras do clube mas porque o gesto paródico do holandês tornou-o humano e querido.
O gesto é tudo, diz uma nossa frase. Ela exagera, mas só um poucochinho. O gesto tem sobre as palavras duas vantagens: surpreende e vai direto ao assunto. Alguém, num vídeo que foi publicado no YouTube, desviou as imagens reais e, na fração de segundo do salto do treinador (que ao longo da semana se cravou na nossa memória), fê-lo desaparecer numa nuvem de fumo. Dissipa-se o fumo e aparece um galo. Em caricatura Van Gaal vai bem com essa imagem, mas o principal do vídeo é acentuar o lado mágico do episódio.
Nesta semana, do mestre das palavras Umberto Eco, a quem dediquei a minha crónica da semana passada, vi também uma homenagem à imagem (obrigado, blogue Malomil). Eco, largo e curvado, cigarro nos lábios, sai do gabinete. Está de pulôver sem mangas, o lugar é-lhe familiar. Atrás, a câmara segue-o. Vai por entre estantes com livros, vira à esquerda, estante e livros, vira outra vez à esquerda, depois à direita, estantes e livros, em frente, à esquerda, e dirige-se a uma estante. A um livro. Àquele. No meio da quarta prateleira, lombada clara. Pega no livro, abre-o, folheia-o, leva-o. A câmara para – e Eco e o livro vão, vão, entre estantes e outros livros, e desaparecem ao fundo…
Sobre um homem de palavras. E sobre palavras. Um minuto e 17 segundos de imagem.
[Publicado originalmente na edição de 6 de março de 2016]