Há ondas em São Tomé?

Como é que um país cuja cultura de surf é «zero» chega a um campeonato do mundo? É a primeira vez na história da modalidade que São Tomé e Príncipe se inscreve numa competição a nível internacional. Nos próximos dias, nos Açores, três atletas estarão em prova: José Guerra («Zezito»), de 12 anos, e Danilk Afonso e Edmilson Camblé («Jejé»), de 18. Das primeiras ondas em tábuas de madeira ao surf profissional há um salto gigante, só possível antes de mais graças a sonho português. Uma boa história mesmo para quem não percebe nada de surf.

Zezito, Danilk e Jejé estão no campeonato do mundo de surf júnior, etapa que arrancou hoje, sábado, na ilha de São Miguel, nos Açores. E só por isso já são campeões. É a primeira vez na história do surf que uma equipa são-tomense participa numa competição internacional. É, também, uma primeira grande aventura para estes miúdos: saírem do seu país, andarem de avião, em escadas rolantes ou numa autoestrada. Nasceram numa realidade diferente, num país sem cultura de surf. Zero. Ali, a relação com o mar é sobretudo de sobrevivência: a pesca. Não chegaram a Portugal perdidos e não começaram a pôr-se de pé numa prancha sozinhos. Estão bem acompanhados, com pessoas que acreditam e que lutam pelo sonho deles. Que é também o seu.

Os portugueses Paulo Pichel, Miguel Ribeiro e João Sousa são, neste momento, o suporte destes jovens, a juntar a todo o apoio – principalmente de amigos – que têm tido ao longo dos últimos anos e que torna possível mostrar-lhes o mundo, assim como mostrar ao mundo de onde vêm. Até ao dia 25 deste mês, estão em prova 36 seleções, entre elas Estados Unidos da América, Austrália, Havai, Brasil, Portugal… e São Tomé e Príncipe. «Se vamos para ganhar medalhas? Nunca se sabe, mas as hipóteses são muito pequenas. Se vamos dar nas vistas? Vamos, de certeza»: são as expetativas de Paulo Pichel, o coordenador desta seleção e residente em São Tomé há seis anos. «Assim que o mundo vir o surf do Jejé, o tricampeão nacional, vai querer saber de onde vêm estes miúdos». Eles vão estar dentro de água a competir contra países que têm décadas de experiência nesta modalidade, como explica Paulo, com um orgulho que não esconde por estar a acompanhá-los nesta oportunidade de vida: «O campeonato do ISA (International Surfing Association) é como se fosse os Jogos Olímpicos do surf».

Paulo é um dos responsáveis pelo «movimento do surf» em São Tomé e Príncipe, onde aterrou por questões profissionais. «Tudo começou quando estou a chegar a Santana – a comunidade da ilha onde, neste momento, está a base da modalidade –, e vejo umas ondas ao fundo.» Deparou-se com miúdos dentro de água a divertirem-se com tábuas de madeira.

«Mas há ondas em São Tomé?». A pergunta retórica que hipnotizou Paulo é a mesma que esperam despertar durante a prestação da seleção no campeonato do mundo.

Mas chegarem onde estão não foi de um dia para o outro. Nessa altura, Paulo conhece Pedro Almeida, português e ex-residente em São Tomé, que já surfava por lá e que «conhecia aquilo há imenso tempo». Começaram a chegar pranchas enviadas de Portugal, sobretudo graças à ligação que Paulo tem com a Xhapeland – um dos maiores fabricantes de pranchas nacionais. «A partir daí foi uma bola de neve.» Partilhas no Facebook, amigos do surf a interagirem e a quererem despachar material. Sempre distribuído de forma equilibrada, consoante o nível ou mesmo o aproveitamento escolar, garante Miguel Ribeiro, atual treinador da equipa, que chegou a São Tomé para visitar a namorada por uns dias e ficou oito meses. «Levei a prancha, claro», diz a rir-se. Passaram-se cinco anos. Começou a surfar e conheceu Paulo e Pedro. «Estava tudo a começar, o dito surf moderno, porque não sabemos há quantos anos havia pessoas a deslizar em tábuas de madeira», conta Miguel, que já praticava a modalidade em Portugal. Apaixonou-se pela ilha: «Água quente, boas ondas e sem ninguém, o que hoje é muito difícil encontrar.»

Tornaram-se os «embaixadores» do surf em São Tomé. E todos são da opinião de que tudo aconteceu naturalmente. Os miúdos tinham curiosidade por aquilo que viam, entravam na água com as tábuas, faziam «carreirinhas». Queriam ser como eles. Queriam pôr-se de pé. Perceberam que aqueles três tinham uma rotina: surfar antes de ir trabalhar. Aquilo que viam era um desporto diferente. Não era como o futebol. O «movimento do surf» trouxe a São Tomé uma filosofia de vida nova.


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À noite, perto da igreja, projetavam filmes de surf na parede e prendiam a atenção da população. Vieram os campeonatos nacionais. O primeiro foi em 2013, com um pódio improvisado: o primeiro lugar em cima de uma mesa, o segundo de pé numa cadeira e o terceiro classificado ao lado, no chão. Foi nessa altura que houve a necessidade de criarem uma federação de surf, a qual fez sentido juntar com a de canoagem – que já existia. Com o crescimento das competições, vieram os patrocinadores e mais apoiantes de Portugal com melhor material e a técnica começou a evoluir.

Mas o «rei das ondas em Santana», como é conhecido, é o Jejé. O tricampeão nacional de surf é uma promessa. «Está uns furos acima dos colegas e isso dá para ver porque começaram todos na mesma altura», conta Miguel Ribeiro, acrescentando que acaba por ser o menino bonito de quem toda a gente já ouviu falar. Nas outras comunidades de surf mais afastadas de Santana, o jovem de 18 anos é idolatrado. Vai a passar e ouve-se «Jejé, Jejé, Jejé…». Toda a gente o conhece. Todos os miúdos querem surfar como ele. Já apareceu na televisão e em reclames da CST (Companhia Santomense de Telecomunicações). A Moche CST é o principal patrocinador, que tornou possível trazer a equipa a Portugal.

João Sousa, fotógrafo que está a acompanhar a seleção, não vive em São Tomé, mas é um dos portugueses que os conhece melhor. É amigo de longa data de Miguel Ribeiro. Visitou-o, pela primeira vez, na altura em que tudo estava a começar. «Desde aí já fui umas sete ou oito vezes», diz. «É muito fácil sentir-se atraído pela ilha e criar uma ligação com estes miúdos.» Está a filmar-lhes o surf e o dia-a-dia para um projeto que já tem nome, Surf Próprio, mas que ainda não tem lançamento à vista.

João tem registado o crescimento, a evolução, a escola, o estarem em casa com a família. Admite que há um salto gigante e uma história que merece ser contada. E que tem Jejé como personagem principal. «É quem dá nas vistas, por ser o mais talentoso, mas é também quem se dedica mais e tem mais ambição.» O salto entre surfar em Santana com pranchas velhas e esta sua prestação num campeonato do mundo «é o culminar da história», diz João.

Reunidos os principais apoios, tudo tinha que dar certo para conseguirem ir aos Açores. Os atletas estão em Portugal desde o dia 3 de setembro. A comitiva quis vir com tempo para que pudessem adaptar-se não só às ondas como ao choque cultural. Paulo Pichel não esconde que é preciso ter paciência, porque a disciplina e responsabilidade necessárias são desconhecidas para estes jovens, em São Tomé: «Eles vivem para o dia, para o minuto, sem pensar no amanhã.»

Por isso, foi preciso tornar claro que primeiro estão os estudos, só depois o surf. «Quem chumbar, quem desistir da escola, não vai a campeonato nenhum», diz Paulo. O terceiro campeonato em São Tomé, que Jejé venceu, valeu ao rapaz «um envelope com as propinas, farda, tudo pago, para o ano letivo de 2015/2016», conta o mentor, que sublinha sempre a importância da escola e dos estudos e nem queria acreditar quando Jejé lhe ligou a dizer que tinha tido 19 a Português. «Alguma coisa conseguimos fazer.»

A vinda de São Tomé para os Açores, via Portugal continental, foi difícil de concretizar, sobretudo do ponto de vista financeiro, e por isso foi já uma primeira vitória e uma grande satisfação.

«Isto para nós não é trabalho. Acompanhá-los, perceber a maneira natural de verem o mundo, é extraordinário. É cansativo, não vou mentir, mas é muito giro. São os nossos miúdos».

Em Cascais, os miúdos apanharam ondas em São Pedro do Estoril, Azarujinha (São João do Estoril), Carcavelos, Guincho e Praia Grande. Durante dois dias, tiveram aulas com Nuno Telmo, um dos melhores treinadores de surf em Portugal, que quando soube que estavam a tentar trazer alguns jovens são-tomenses ao ISA dos Açores se dispôs logo a ajudá-los na parte do treino.

Paulo Pichel e Miguel Ribeiro agradecem a ajuda preciosa, porque, apesar de fazerem surf, não são profissionais e há muito conhecimento que os ultrapassa ao nível de competição. Nuno Telmo é treinador há 15 anos e por ele têm passado nomes portugueses da nova geração como Vasco Ribeiro, Zé Ferreira, Nicolau Von Rupp, Tomás Fernandes, Teresa Bonvalot. Esteve com Jejé, Danilk e Zezito e reconhece que de um dia para o outro foi completamente diferente, de ondas mal escolhidas para pontuações muito boas. Filmava tudo para, de seguida, ser debatido em conjunto, discutindo o timming das manobras, «que, na verdade, é aquilo que é importante e que eles precisam de melhorar».


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Nuno Telmo, que já mostrou disponibilidade para ir a São Tomé e Príncipe dar treino aos que não puderam vir a Portugal, considera que a prestação dos jovens surfistas são-tomenses num campeonato do mundo vai depender da pressão que vão sentir: «Têm algum nível e podem surpreender, mas quando vestimos a lycra… a lycra pesa.» Ainda mais quando os olhares vão estar postos na bandeira de São Tomé e Príncipe, que para muitos é – ainda – um país desconhecido.

No último campeonato, em Santana, com Jejé a vencer pela terceira vez consecutiva, participaram 28 atletas do surf e 16 na modalidade do bodyboard. Aos poucos, um país onde a cultura do surf passou de zero para zero vírgula algumas décimas vai ganhando adeptos e curiosos. Há turistas que chegam a Santana e já levam a prancha debaixo do braço. Paulo Pichel acredita que com o tal «movimento» e, agora, com a prestação num campeonato internacional, quem vai «ganhar» é São Tomé. E o turismo.

Aliás, praticantes entusiastas já reúnem esforços para criar instalações de apoio ao surf e receber quem vem de fora à procura das ondas que só eles conhecem. Tudo sem pressa, ao estilo do país.