Germano Silva, o Senhor Porto

Germano Silva, 85 anos, é um dos homens mais respeitados do jornalismo em Portugal. Reportagem sobre o autor de notícias, entrevistas e crónicas, que nesta semana será doutorado honoris causa pela Universidade do Porto, reconhecendo assim o trabalho deste contador de enredos e mistérios que dedicou a vida à cidade e às suas histórias.

O fato preto e a gravata já estão prontos. A próxima quinta‑feira, 3 de novembro, será, para António Germano Silva, ou Germano Silva, ou apenas Germano, um dia memorável: recebe o título honoris causa pela Universidade do Porto e envergará as vestes académicas que o padre Américo Aguiar, da Irmandade dos Clérigos, amigo de longa data, fez questão de lhe oferecer. Jornalista durante quarenta anos, contador de enredos e mistérios do Porto, historiador «com curso tirado no conhecimento da vida», como costuma dizer, celebrou 85 anos a 13 de outubro e teve direito a festa pública, na abertura da exposição que a Casa do Infante acolhe por estes dias.

O menino que andou descalço, que foi, ainda bebé, para a Invicta (nasceu em São Martinho de Recezinhos, Penafiel), que morou em duas ilhas (conjunto de casas com acesso comum), que aprendeu a amar o Douro como coisa quase sagrada, é hoje o «homem do Porto». Porque do Porto pouca coisa lhe resta conhecer, porque faz parte do «povo que gosta da partilha». E se há alguém que partilhe o que sabe sobre a cidade é o Germano. Nisso, é um doutor.


Veja aqui a reportagem multimédia: «Germano Silva, 85 anos da história do Porto»


Não faz a mínima ideia dos quilómetros percorridos nos passeios temáticos que começou a dar pela cidade em 2001, quando o Porto foi capital europeia da cultura, mantendo‑os até hoje, sem inscrições, aos domingos de manhã, gratuitos. Não darão, certamente, para ir da cidade até à China, onde esteve 15 vezes, mas fazem parte da «alta rodagem» que leva da vida.

«Fiz muita coisa: fui marçano numa retrosaria, trabalhei na fábrica dos fósforos, em Lordelo do Ouro, e na de lanifícios, na Rua de Serralves, estudei à noite na escola de Oliveira Martins, fiz a tropa em Penafiel, fui escriturário no Hospital de Santo António. Acabei jornalista aos 25 anos. No Jornal de Notícias. Entrava às 22h00 e saía de madrugada. Estava na “Última Hora”. Gostava da noite e de ver o corrupio que nascia, cedo, à volta do Mercado do Bolhão. Aprendi muito. Continuo a aprender. E continuo a ir ao jornal, a ver as gerações crescerem.»

O gozo de andar a pé pela cidade, calças de ganga vestidas, nasceu na busca de histórias. «O JN apostava nisso. Nas histórias, na proximidade das pessoas. E diziam que só poderia escrever sobre a cidade quem a conhecesse. Não me custa nada fazer duas horas dos passeios. Percorro… quê? Dez quilómetros? E vejo gente que vem de longe para ouvir. Alguns vêm do estrangeiro de propósito. Da Galiza e de França, sobretudo. Quando o grupo começou a crescer tive de arranjar um megafone.»

A cidade mudou muito? «Sim. Está mais cosmopolita, cheia de turistas. Mas ainda tem coisas que me fazem ficar triste. Dantes era mais intimista. As pessoas vinham ao Porto ver as montras. Os cinemas tinham estreias todos os dias. Os cafés estavam até às duas da manhã. Acho que o povo do Porto continua a ser muito esquecido, abandonado. O povo do Porto é especial, gosta de partilhar.»

E politicamente? «Quando chegarem as eleições autárquicas, já sei que vão andar atrás de mim para ir ali ou acolá. Mas não me meto nisso. Só fiz parte de uma lista e era suplente. Foi com o Fernando Gomes [PS] e ele perdeu para o Rui Rio [PSD] em 2001. Mais tarde, em 2005, Rio entregou‑me a medalha da Cidade.» Não aceitaria nenhum convite hoje? «Não. Mas apoio Rui Moreira. É um homem do Porto e independente.» Concorda, portanto, que o PS o apoie? O Germano é um homem de esquerda? «Sim, sou de esquerda, mas nunca me filiei em nenhum partido. Depois do 25 de Abril fui sondado por muitos. Até pelo CDS. Não quis nada disso. Fui amigo do Sá Carneiro, do António Macedo. E estou a gostar da geringonça do [António] Costa. Antes do 25 de Abril ia a jantares no 31 de Janeiro e no 5 de Outubro. Depois fui do MES [Movimento de Esquerda Socialista] com o Manuel António Pina, o Alberto Martins, o médico Roma Torres. Até ajudei a arranjar uma sede na Rua Alexandre Herculano. Hoje quero paz e sossego.»

Germano foi testemunha de mudanças decisivas para o país. Estava a trabalhar na Estação de São Bento quando Humberto Delgado, desafiando Salazar em 1958 como candidato à Presidência da República, foi recebido em apoteose pelos portuenses.

Em 1974, no 25 de Abril, ia comer umas iscas com o amigo jornalista Manuel António Pina quando se aperceberam de movimentações «estranhas». «O Pina tinha saído da tropa e tinha ligações com o meio. Soubemos que no quartel do Carmo se passava algo estranho. Ele disse “é hoje” e voltámos para o jornal. Começou tudo.»

Da infância, Germano fala sem rodeios. «Eram tempos difíceis. O meu pai, guarda‑freios, era um homem de causas. Não gostava de injustiças e quando via um colega ser mal considerado defendia‑o. Ficava de castigo, sem trabalho certo. Levantava‑se de madrugada e ficava à porta da Companhia de Carris, na Boavista. Se alguém faltasse, trabalhava. Se não, não ganhava. Eu, com 6 ou 7 anos, ia às quatro da manhã para a padaria, guardar vez para a minha mãe, Maria Helena, ir buscar o pão. E ia para a fila do sabão no Bonjardim. E para o Mercado do Anjo às batatas. Não passava fome, mas houve dias em que só tinha uma refeição. Vivíamos a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Civil de Espanha.»

Mesmo assim, sem tempo para ser menino, andou na escola. Primeiro, em Cedofeita, depois na que existiu em frente ao Palácio de Cristal, num imóvel que era da família Van Zeller, do vinho do Porto. Aí conheceu diferenças sociais, as que põem de um lado os descalços e do outro «os que não precisavam». «Os meninos e os rapazes.» «O Porto da minha meninice acordava com as sirenes das fábricas, com os pregões das leiteiras. Mas havia solidariedade. Podia andar‑se à bulha por coisa pouca, mas na hora do aperto havia união. Quem vivia melhor ajudava sem humilhar, não se dizia “pega lá, que precisas”. E era na rua que se convivia.» Quando fez a quarta classe, a mãe não deixou que continuasse. «Tinha de ajudar. Éramos muitas bocas. Dois rapazes e duas raparigas. Eu sou o mais velho. O meu irmão José Maria já morreu. Tenho a Maria, que ainda vive na ilha do Cruzinho, e a Adelaide, que é minha afilhada. Não eram tempos de livros, eram de sobrevivência.» Foi o nascimento de Adelaide que lhe trouxe outra mudança à vida. «A casa era pequena e eu, que conhecia o diretor do Lar da Nazaré, fui para lá. Teria uns 18, 19 anos. Era um lar para rapazes operários, pagava uma pequena renda. Foi a partir de então que comecei a frequentar o Café Piolho e onde um amigo me arranjou um lugar na secção administrativa da urgência do Hospital de Santo António. Comecei a conhecer jornalistas. E um incentivou‑me a colaborar no desporto do JN. Foi em 1956.»

Desses primeiros tempos recorda‑se de uma história que o marcou. E lhe marcaria a carreira. Estava há pouco tempo no jornal quando foi incumbido de conseguir a fotografia de uma jovem que se matara «por amor não correspondido».

«Corri tudo. Mas a rapariga era filha de gente de nome, abafara‑se a história, todos se fechavam. Fiz todos os contactos que podia. Quando vinha para a redação (que ainda era na Avenida dos Aliados) decidi ir ao Diário de Notícias para fazer um último telefonema. Nada. Estava tramado. Apareceu então um colaborador desportivo e viu‑me aflito. Contei‑lhe que andava à procura da fotografia da moça. Ele leva a mão ao bolso e mostra‑me uma fotografia. “É esta?” Tinham sido namorados. Deu‑ma. O chefe disse‑me que sabia com quem podia contar e eu fiquei todo contente. Pouco tempo depois, estava em casa e ligou‑me para vir trabalhar. Tinha ocorrido um acidente em Grijó [Vila Nova de Gaia] e havia quatro mortos. Cheguei ao jornal, estava lá muita gente e quis saber porque me chamara. “Tenho de explicar? Porque sei que vais fazer tudo o que é preciso.” As fotos das vítimas eram importantes porque eram um complemento das notícias. Ainda são.»

Foram os livros que lhe aguçariam a curiosidade pelo Oriente. «O pai de um colega da primária tinha estado em Espanha, na Guerra Civil, e voltara com problemas. O filho alugava livros para ajudar e eu comecei a ler o Sandokan, de Emilio Salgari. Aquelas descrições dos portos, dos barcos, da gente do mar, deixou‑me fascinado. Mais tarde, já jornalista, fui, como enviado especial, com um ministro à China. E eu, que na minha mocidade andei sempre rodeado de maoistas, queria conhecer a China por dentro. Mas com o ministro não via nada, só o institucional. Via a China pelas janelas. Conheci um rapaz da Agência Nova China e perguntei‑lhe como fazia para ir visitar o país dele. Ele lá tratou de saber e disse‑me que estava tudo bem, mas não podia ser como jornalista. Arranjei uma declaração de um amigo empresário e fui como fiel de armazém.» Quinze vezes? «Sim. Fui três vezes ao Tibete, andei nas minorias étnicas (só vi cinco das 46), fiz a Rota da Seda, a Montanha Amarela, a Floresta de Pedra. Mas fui a mais países. Viajei muito como jornalista e como dirigente sindical.»

Manuel Ramos, Freitas Cruz, Pacheco Miranda, José Saraiva, César Príncipe e, claro, o escritor Manuel António Pina, falecido há quatro anos, com quem teve uma amizade de décadas. Os nomes destes jornalistas, que tiveram papéis importantes no JN, vêm à baila quando Germano lembra tempos da redação. Mas também Cáceres Monteiro e José Carlos Vasconcelos. Afinal, há palavras de Germano nos arquivos do Expresso, do Jornal Novo, d’O Século Ilustrado, d’O Jornal. Naquele tempo os jornalistas podiam escrever noutras publicações, «desde que não fossem diárias». Hoje só escreve para o JN e para a Visão. Está reformado desde os 65 anos. «Saí em 1996. Queria publicar livros, crónicas. A reforma era boa e a situação no jornal mudara muito. Tinha passado do Pacheco Miranda para a Lusomundo, depois para a PT, a direção mudou e eu queria sair por mim, não depois de me perguntarem se queria sair.»

A partir de 1993, Germano Silva começou a escrever crónicas, publicadas na última página do jornal, a duas colunas, com gravuras e o título genérico À Descoberta do Porto.

O nome de ruas e de lugares, os imóveis desaparecidos e os existentes, as personagens perdidas, mistérios e lendas ganhavam, assim, contornos de literatura histórica. «São factos que eu torno em histórias.» E que acabaram em livro.

Todas as sextas‑feiras, o jornalista entrega religiosamente o material. Já não são duas colunas, mas uma página inteira, que o JN publica aos domingos. À Descoberta do Porto já faz parte da vida do diário, tal como Germano, que continua a ser o camarada sempre bem recebido. Afinal, ainda são muitas as caras familiares e que fazem parte das gerações «a crescerem». Atento, recusa a ideia de que o jornalismo de hoje é pior do que quando estava no ativo. «Faz‑me impressão ouvir dizer que “no meu tempo é que era bom”. Cada época tem a sua importância e o leitor deve ser sempre o objetivo principal. Há bons e maus jornalistas em qualquer altura.» Quando lhe perguntamos que conselhos daria a um estagiário, tem uma resposta rápida: «Nunca deixar o leitor com dúvidas. A notícia tem de explicar tudo. Claro que há diferenças. Há internet, telemóveis, um acesso mais rápido à informação. Eu sou do tempo dos telexes, das centrais telefónicas com cavilhas.» Germano subiu todos os degraus do jornalismo de então: colaborador, estagiário, repórter informador, repórter, redator, subchefe e chefe de redação. «Os salários eram fracos.» Só com a exclusividade, no início da década de 1990, começou a ganhar melhor.

No meio da conversa, Germano fala da família. Da mulher, Maria Celeste, da filha, Maria José, do sobrinho Fernando Silva, pároco em Cedofeita. «Casei tarde. Tinha 27 anos. Um ano antes apanhei uma gripe e o médico do jornal disse‑me que tinha de apanhar umas injeções e lá fui ao consultório dele. A Maria Celeste era funcionária. Começámos a conversar, a conversar, até ao dia em que a pedi em casamento. Fez‑se rogada, disse que os jornalistas não tinham boa fama, eram boémios, mas… Casámos. Estivemos juntos 56 anos. Faleceu há dois. Tenho uma filha, Maria José, professora de Física e Química.» Não se sente sozinho? «Tenho o tempo sempre ocupado. Levanto‑me cedo (quem me acorda é o meu cão, Gastão), tenho quem me trate da casa, vou comer fora quando quero, não devo nada a ninguém… vivo tranquilo. E um dia de cada vez.»

Na quinta‑feira, na cerimónia da atribuição do título honoris causa, na reitoria da universidade, Germano conta ter a filha na plateia. «Mentiria se dissesse que não estou emocionado. É o reconhecimento da Universidade do Porto pelo meu trabalho. Por unanimidade, o que é caso raro, disse‑me o reitor. Isso comove‑me. Se sou o que sou devo‑o ao jornalismo. E ao JN. Se não publicasse as minhas crónicas não era ninguém. Estou grato porque continuo a aprender com a cidade.»

Sebastião Feyo de Azevedo, reitor da universidade portuense, justificou a proposta de doutoramento de António Germano Silva, melhor, Germano Silva, melhor, Germano, desta forma: «Não haverá, em todo o panorama nacional, alguém que, de uma forma tão completa, seja identificado com o gosto pela história de uma cidade como Germano Silva o é pela do Porto.» Fica, no entanto, sem resposta o que Manuel António Pina escreveu sobre o jornalista: «Serão os portuenses o coração ou será o Porto o seu coração?»

UM DIA DE CADA VEZ… E SEM FRANCESINHAS (QUE NUNCA PROVOU)

Levanta‑se às 07h30. E deita‑se sempre antes da meia‑noite. «Já fui homem da noite. Sosseguei com a vida.» A agenda de Germano é cheia e as solicitações muitas, mas ele não deixa que nada o perturbe. «Ter a cabeça no lugar, sem preocupações, viver um dia de cada vez, andar a pé e ter prazer no que se faz» são os «segredos» do jornalista.

Não faz dietas. É avesso a vinho e não deixa a comida tradicional portuguesa de fora. Mas nunca comeu uma francesinha. «Não gosto de molhos. Um dia, fui ao Capa Negra [restaurante portuense conhecido pelo prato] para provar, mas vi na mesa da frente um nutricionista a dar‑me um sinal para não comer.» Se forem tripas à moda do Porto, não dispensa.

Vê pouca televisão. «Não há nada que me interesse. Ponho‑me ao computador e o canal Mezzo é o fundo que me acalma.»

Gosta de conversar. «Falar para uma plateia, mesmo pequena, dá-me muito prazer.»

Gere o tempo com «bom senso». «Por vezes tenho de recusar convites. Não tenho tempo para tanta coisa. Há quem pergunte “não tem tempo? Está reformado!”. Respondo que estou, mas não estou parado.»

Quando é preciso, para. «Vou até aos jardins da Quinta da Macieirinha, onde está o Museu Romântico. Fico por ali, a ouvir o murmúrio da água das fontes, a ver as camélias, a desfrutar da vista fantástica para o rio. Há alturas em que se faz eco de vozes. Ouvem‑se mães a chamar pelos filhos em Massarelos, frases soltas… Tenho lá uma paz que me faz bem.»

PARA SABER MAIS SOBRE O HOMEM QUE TANTO SABE

Porto Revisitado (Porto Editora). Livro com algumas das melhores crónicas de Germano Silva escolhidas por seis personalidades da cidade. Entre 3 de novembro e 12 de dezembro, será vendido com o Jornal de Notícias.

O Porto no Coração. Exposição no Arquivo Municipal do Porto (Casa do Infante) até 27 de novembro. O jornalismo, a divulgação do património e da história e outros marcos importantes da vida de Germano Silva. Quinta‑feira, pelas 18h00, o jornalista fará uma visita guiada.

Sentimento e Razão: os Historiadores da Cidade do Porto. Tema da conferência que terá lugar na quinta‑feira, pelas 15h30, no Pátio das Nações, Palácio da Bolsa, com Francisco Ribeiro da Silva (professor aposentado da Universidade do Porto), Amândio Barros (historiador), José Ferrão Afonso (doutorado em História de Arte) e Germano Silva. David Pontes, subdiretor do JN, é o moderador.

Próximo passeio. Para saber quando terá lugar o próximo passeio organizado por Germano Silva, consulte o Jornal de Notícias