Coreografia

Notícias Magazine

Permitam que vos apresente três homens – estes que podeis imaginar fechando os olhos e sentindo o cheiro do pó misturado com o suor que lhes escorre pelos flancos da face e desenha sulcos sujos de finíssima lama. Têm os olhos demasiado abertos (como se deliberadamente evitassem pestanejar) e esforçam-se por fixá-los num ponto distante do bosque para onde mais ninguém olha.

Os três homens são bailarinos mas não dançam. A dança é neles apenas uma possibilidade ou um acto em potência (como revólveres que não alvejam e balas que não matam). Caminham, correm, rebolam-se no chão de pó, gravetos, folhas e caruma, e movem-se de uma forma que faz lembrar lâminas. Golpes e cortes. Parecem capazes de derrubar árvores com um só gesto: que outra utilidade pode ter um bailarino?

Tanto quanto posso avaliar, os três homens são compostos de uma mistura complexa e bastante bem organizada de carne, osso e suor. A coreografia que executam implica, porém, que se deitem no chão e que levantem as pernas até ao nível onde estão as cabeças das outras pessoas. Depois deixam-se cair e parece que são coisas inertes quando o peso morto das pernas colide com o chão.

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Não sei que nome têm ou de onde vêm os três homens que são bailarinos que não dançam, ainda que pudesse ser fácil descobrir mais alguma coisa sobre as suas vidas e sinais particulares. O que vejo é suficiente: vestem-se com macacões largos e azuis, galochas brancas e aventais plásticos – como se fossem jardineiros ou pudessem sê-lo num qualquer estado quântico onde aos bailarinos não coubesse senão semear movimentos na orla do bosque.

Pergunto-me que frutos brotarão de uma plantação de gestos e não encontro respostas. É possível que seja necessário esperar que as estações sucedendo-se as façam nascer nas árvores – às respostas, quero dizer – e seja este o motivo para ali estarmos em torno dos três homens e dos seus movimentos. Viemos ao bosque para colher explicações e, pacientes como pescadores, estamos dispostos a aguardar que os cogumelos das certezas estejam maduros e já seja possível encher com eles os cestos que trouxemos como se viéssemos para um piquenique ocasional e sem segundas intenções.

(Fotografia de Manuel Jorge Marmelo)

[Publicado originalmente na edição de 7 de agosto de 2016]