Como se vende o cinema português no estrangeiro?

O sucesso internacional da trilogia As Mil e Uma Noites parece indiciar que sim. A partir da próxima quinta-feira, chegam ao Festival de Cinema de Berlim sete filmes portugueses – uma das maiores presenças de sempre em eventos do género. Três deles podem vencer o Urso de Ouro. 

Quatro longas-metragens e três curta. Em Berlim, há uma caça portuguesa sem paralelo nem precedentes ao Urso de Ouro. É uma prova de que os festivais e o mercado estão cada vez mais apaixonados pela especificidade da nossa arte cinematográfica. Em 2016, o cinema é o produto cultural português mais exportável, sobretudo depois do caso do ano passado: a trilogia As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, um sucesso mundial que começou na Quinzena dos Realizadores, no Festival de Cannes.

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O nome do realizador Miguel Gomes já fez correr tinta no estrangeiro.

Três volumes de cinema de autor, seis horas e vinte minutos, com uma liberdade sem contemplações. Um cinema selvagem e ousado, quase sempre falado em português, sem atores muito conhecidos internacionalmente e com desvios sérios no real (ai de quem diga agora «documentário!»). O filme conta a história de uma princesa das Arábias, Xerazade, obrigada pelo rei a contar histórias da crise portuguesa para não ficar sem cabeça. Mil e uma histórias baseadas em acontecimentos verídicos ocorridos durante o período da troika em Portugal. Um galo barulhento que vai a tribunal, um grupo de passarinheiros que se alheia da realidade ou um pacto suicida de um casal de meia-idade de um prédio dos subúrbios de Lisboa são algumas das histórias que formam uma odisseia pintada ao som de rock ‘n’ roll, discurso político e um humor capaz de inventar um primeiro-ministro e os seus ministros a contas com um embaraço sexual imediato.

Os três volumes foram o grande acontecimento do maior festival de cinema do mundo. O filme mais elogiado (para muitos, um escândalo não estar na competição oficial), críticos em delírio e a imprensa francesa extasiada. Resultado: As Mil e Uma Noites fez um frisson tão grande, que começou a ser requisitado para a maioria dos outros festivais ao longo do ano e foi comprado para muitos mercados (do Reino Unido aos EUA, passando por Espanha e Itália, acabando na Ásia e na Austrália), sem contar com a França e a Alemanha (países envolvidos na coprodução), onde teve honras de lançamento com campanha promocional realmente visível. De repente, As Mil e Uma Noites tornaram-se um fenómeno de internacionalização para o cinema português, uma visibilidade única. Miguel Gomes nas páginas do New York Times, do Libération, nas televisões e quase com rasto de pop star.

Foi este o maior fenómeno de internacionalização do cinema português? Não. Em 2012, depois do Festival de Berlim, ocorreu um caso ainda maior. As Mil e Uma Noites aproveitou o sucesso de Tabu, filme a preto e branco, metade mudo, do mesmo realizador, que também foi vendido para os quatro cantos do planeta e, segundo o produtor, terá tido cerca de quatrocentos mil espetadores em todo o mundo (duzentos mil só no Brasil). Luís Urbano é um dos homens fortes d’O Som e A Fúria, a produtora portuguesa que está a furar no mercado internacional.

«Claro que toda esta atenção em As Mil e Uma Noites aconteceu porque Tabu tinha sido um êxito internacional forte a nível de cinema de arte e ensaio», diz o produtor. «Mas tudo isto não acontece por acaso. Acontece porque tivemos anteriormente um percurso em festivais, primeiro em Cannes com Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes (2008), e com as nossas curtas-metragens, sobretudo as do João Nicolau e as do Sandro Aguilar. A Som e a Fúria hoje já é uma label, um nome reconhecível para qualquer programador de um festival internacional e que condiciona as suas prioridades de visionamento.»

Para Urbano, o case study do impacto internacional de As Mil e Uma Noites não chegou de paraquedas. Antes de Miguel Gomes, nomes como João Botelho, João Pedro Rodrigues e Pedro Costa, os cineastas vivos com maior reconhecimento internacional, trilharam um caminho notável que chega aos maiores festivais – Costa esteve em Cannes com Juventude em Marcha (2006) e Rodrigues em Veneza com O Fantasma (2000), bem como Botelho, no mesmo festival com Quem És Tu? (2001).

Ainda sem estrear em todos os territórios, Urbano congratula-se com a forma como a produtora geriu o buzz de Cannes. «Criou-se uma coisa viral em relação ao filme.» Mas em Portugal, e apesar do extraordinário impacto mediático, esperava-se mais: apenas cerca de 32 mil pagantes para os três volumes juntos. A consagração estrangeira não conseguiu furar a desconfiança do público nacional perante um estilo de cinema que não faz cedências ao mainstream. Veja-se o eterno caso de Manoel Oliveira: nunca foi cineasta de grande público entre nós e lá fora era considerado um dos últimos mestres.

Agora, depois de Tabu e As Mil e Uma Noites, há quem acredite que o cinema português ganha uma via aberta para criar um movimento de balanço internacional.
A pergunta do milhão de euros para o produtor que apostou sempre em Miguel Gomes é: como é que se coloca um filme made in Portugal nas bocas do mundo? «Quando produzo um filme há sempre um objetivo de calendário: tê-lo pronto para o lançar num festival internacional do circuito do grand slam: Cannes, Berlim e Veneza. Mas claro que não controlamos a seleção. Rio-me quando ouço dizer que tenho boas relações nos festivais. Isso é uma fantasia… Aposto em talentos e num certo tipo de cinema. Se os filmes não forem bons não vão a festivais nenhuns.»

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Montanha, de João Salaviza (na foto com a produtora Maria João Mayer) também teve um bom percurso nos festivais internacionais em 2015.

Outro filme com um bom percurso em 2015 nos festivais (mas sem vendas internacionais por aí além) foi Montanha, de João Salaviza, programado para a Semana da Crítica em Veneza, em Setembro passado. Depois disso esteve no prestigiado Festival de San Sebastián, em Espanha. Ainda não é a primeira divisão para o jovem cineasta lisboeta, mas é um sinal de que os holofotes internacionais não se esqueceram da Palma de Ouro das curtas-metragens em Cannes por Arena (2009) nem do Urso de Ouro por Rafa (2012), em Berlim, também nas curtas. Montanha pô-lo no mapa e pode ter sido beneficiado pelo arrastão de As Mil e Uma Noites – hoje, num festival internacional, a origem portuguesa é um trunfo.

Cada vez há mais boa vontade com o cinema português. A produtora do filme, Maria João Mayer, sabe disso, mas também alerta para os perigos do excesso de hype: «Sobretudo da imprensa francesa. Na prática, os filmes portugueses fazem poucas entradas lá fora. Mas mesmo que faça pouco numa estreia de nicho em França, já vale a pena. É lá que Montanha terá direito a uma pequena estreia cirúrgica em abril. Creio que é assim que tem de ser trabalhado… O nosso distribuidor, a Pyramide, interessa-se imenso pelo João Salaviza.»

Luís Urbano lembra que nos últimos anos a lógica dos financiamentos das coproduções
também ajudou muito a visibilidade do cinema português. As Mil e Uma Noites não poderia ter sido feito sem dinheiro das televisões internacionais e das produtoras francesas e alemãs. Foi isso que possibilitou um orçamento que ultrapassou os três milhões de euros. Mas depois de Tabu, Miguel Gomes começou a interessar aos financiadores, nomeadamente ao realizador Robert Guédigian (conhecido de filmes como Marius e Jeannette ou As Neves de Kilimanjaro), que decidiu investir pessoalmente no filme. «Com a qualidade de alguns cineastas, o cinema português ganhou um certo impacto e as portas dos financiamentos estrangeiros estão mais abertas, mesmo tendo em conta que a competição na coprodução é muito feroz», diz o produtor.

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Tabu correu festivais internacionais em 2012 e foi visto por 400 mil pessoas.

Priscila Rosário, da Tucaman Filmes, que distribuiu As Mil e Uma Noites no Brasil, tem um discurso no mesmo sentido quanto ao prestígio do cinema nacional: «No Brasil existem cinéfilos interessados no novo cinema português e isso fica visível nas mostras e festivais. Fiquei muito espantada ao ver a quantidade de fãs que o Miguel tinha aqui. Logo depois de ser anunciado que nós seríamos os distribuidores do filme, comecei a receber e-mails, desde estudantes de cinema a jornalistas, curadores de mostras e festivais.» Este foi o filme que poderia ter tido uma campanha séria para os Óscares se… tivesse sido nomeado pela Academia Portuguesa de Cinema (acabou por ser Sangue do Meu Sangue, de João Canijo) – o distribuidor americano estava convencido de que teria hipóteses e havia verba para uma promoção enorme em Hollywood. Tal como As Mil e Uma Noites, também Tabu esteve na lista dos melhores do ano das mais prestigiadas publicações, da Cahiers du Cinema à Sight and Sound.

Filomena Serras Pereira, presidente do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), acredita na expansão do portuguese cinema. E para isso poderá ajudar o projeto plurianual de internacionalização do setor, a desenvolver no âmbito das medidas do Portugal 2020, com recursos aos fundos estruturais da União Europeia. «Temos vindo a desenvolver trabalho preparatório nesse sentido e esperamos em breve pôr em prática esse projeto, que necessita de uma concertação de esforços com os profissionais e as empresas do setor e também, claro, com as autoridades de gestão dos programas do Portugal 2020.»

A responsável diz que tem havido sempre uma maior e mais concreta presença do instituto nos grandes festivais e que «desde 2014 o apoio ao desenvolvimento de projetos por parte do ICA contribui também fortemente para a internacionalização, já que inclui como despesas elegíveis a participação dos produtores em formações internacionais práticas (baseadas em projetos reais) e a participação em fóruns de coprodução, pesquisa internacional de parceiros, etc.». Talvez por isso não seja capricho de viajante a presença do ministro da Cultura na Berlinale, com João Soares a oferecer um jantar na embaixada aos cineastas presentes nesta invasão portuguesa da Alemanha. O cinema português e a sua internacionalização seguem dentro de momentos na montra de Berlim.

VOU PARA CASA
O PRIMEIRO CASO DE SUCESSO
Estávamos em 2001 e Manoel Oliveira era mais francês do que nunca. Vou para Casa tornou-se o filme mais visto de sempre do cineasta. Centenas de milhares de espetadores em França e vendas para todo o mundo – que nunca nenhum outro filme realizado por um português alguma vez conseguiu. Dizia-se, na altura, que era a sua obra mais acessível: a história de um grande ator dos palcos que se cansa da vida depois de uma tragédia. Vou para Casa tornou-se a obra mais bem-sucedida de Oliveira porque esteve em competição em Cannes e foi muito bem recebido pela crítica internacional. Estávamos no pique da aclamação do realizador, na altura com 93 anos, e o elenco que juntava Michel Piccoli, John Malkovich e Catherine Deneuve. Em Portugal não bateu recordes, obviamente, mas o produtor, Paulo Branco, voltou a espantar o mundo, anos mais tarde: Mistérios de Lisboa, de Raoul Ruiz, na prática um filme português, fez também números históricos de bilheteira. É ainda hoje uma das nossas produções com maiores vendas até à data no mundo inteiro. Eça ajudou o cinema português a chegar ao estatuto do melhor world cinema.

A INVASÃO PORTUGUESA DE BERLIM
Nunca se viu uma coisa destas. São sete filmes nacionais no maior festival europeu. A partir de quinta-feira, chegam à Berlinale quatro longas e três curtas-metragens portuguesas. O que isso quer dizer é simples: os programadores de cinema dos festivais acreditam que de Portugal sai o cinema de autor mais independente e livre que se faz na Europa em países sem indústria. Ivo M. Ferreira está nomeado ao Urso de Ouro, o prémio maior do festival, com Cartas da Guerra, a partir de António Lobo Antunes, enquanto no fórum, secção secundária do festival, temos cinema português em força, com destaque para a estreia mundial de Posto-Avançado do Progresso, de Hugo Vieira da Silva, uma adaptação ao romance homónimo de Joseph Conrad, com Nuno Lopes. Há ainda a incógnita de se perceber o que a artista e cineasta Salomé Lamas foi fazer em Rinconada, uma mina de ouro nos confins do Peru em Eldorado XXI, uma mistura de ficção e documentário. Excelente deve ser a receção ao vencedor do DocLisboa, Rio Corgo, do casal Maya Kosa e Sérgio da Costa. Nas curtas, a esperança portuguesa mora na competição da seleção oficial com Balada de Um Patráquio, de Leonor Teles, e Freud and Freinds, de Gabriel Abrantes. L’Oiseau de la Nuit, de Marie Losier, curta produzida e encomendada pelo IndieLisboa também marca presença no Forum Expanded.